sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI


Tatiane Oliveira Zanfelici

Universidade Federal de São Carlos. Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos, SP


JANUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados, 2004.

No ano de 2004, a Editora Autores Associados lançou uma obra muito esperada no âmbito dos estudos em educação especial. Até os momentos atuais, a mesma obra é presença constante nas referências bibliográficas de aulas, projetos de pesquisa, teses e dissertações da área, bem como leitura recomendada em inúmeros processos seletivos de linhas de pós-graduação dedicadas ao estudo de métodos e processos educacionais relacionados às pessoas com necessidades especiais. Trata-se do livro A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI, de autoria de Gilberta de Martino Januzzi, professora livre docente pela Universidade Estadual de Campinas, autora de diversas publicações na área de educação, orientadora de trabalhos, pesquisadora e autoridade no que concerne aos estudos sociais e históricos em educação brasileira.

Fruto de outra obra lançada em 1986 e revisada em 2004 (A luta pela educação do deficiente mental no Brasil), o livro aqui resenhado foi baseado principalmente em documentos governamentais, tais como leis, decretos, portarias, relatórios e publicações, além de sólida revisão de literaturas e pesquisas de pós-graduação publicadas a partir de 1970. Contém prefácio elaborado pelo professor Pedro Goergen (Universidade Estadual de Campinas) e se divide em três capítulos: Primeiras iniciativas de encaminhamento da questão, Cresce o engajamento da sociedade civil e política nesta educação e Caminhos trilhados em busca da equidade. Permeada pelos diversos conceitos de normalidade e sempre consciente do momento histórico do país, a obra visa retratar o desenvolvimento da educação especial no Brasil desde os tempos coloniais - quando, num contexto social isento de instrução, os deficientes e suas necessidades passavam despercebidos pela sociedade - até o momento em que foi publicada.

O primeiro capítulo (Primeiras iniciativas de encaminhamento da questão) trata da educação do deficiente desde o século XVI, durante a colonização do país, até o início do século XX, no Brasil já industrializado. Há quase 400 anos, quando a sociedade era predominantemente agrícola e rudimentar, numa época quando apenas 2% da população eram escolarizados, e mesmo o ensino regular era tímido, a educação do deficiente praticamente nem existia, sendo pouco a pouco desenvolvida com o apoio de pessoas interessadas, mas respaldadas por um governo de segundas intenções. A educação do deficiente se concentrava basicamente no ensino de trabalhos manuais aos mesmos, na tentativa de garantir-lhes meios de subsistência e assim isentar o Estado de uma futura dependência desses cidadãos. A abordagem que fundamentava o conceito de deficiência naquele momento era o modelo médico, que perdurou até meados de 1930, quando foi gradualmente substituído pela pedagogia e psicologia, especialmente pela ação dos educadores Norberto Souza Pinto e Helena Antipoff. Durante o predomínio das ciências médicas, o momento histórico destaca a presença dos asilos, das classes anexas aos hospitais psiquiátricos (ilustrando as primeiras preocupações com a pedagogia para o ensino especial) e mais adiante, das classes anexas às escolas regulares.

Em 1890, após a realização de uma reforma nos métodos educacionais do Instituto Benjamim Constant (anteriormente denominado Imperial Instituto dos Meninos Cegos), o eixo científico começa a ser um pouco valorizado no ensino do deficiente. A referência para a normalidade passa a ser o posicionamento no rendimento escolar, e não havia qualquer orientação que balizasse o tratamento dos ditos "anormais". Assim, embora a ênfase fosse a educação em coletividade, os alunos com desenvolvimento atípico eram segregados em diferentes salas de aula para que não ocorressem interferências no ritmo de aprendizado dos demais alunos. Durante esse período histórico, educava-se em nome da "ordem e progresso", na tentativa de evitar que deficientes não educados se tornassem criminosos ou perturbadores da ordem social.

No segundo capítulo (Cresce o engajamento da sociedade civil e política nesta educação), a autora se concentra na educação do deficiente a partir do início do século XX, quando a sociedade civil começava a engajar-se nas causas a favor do deficiente, criando centros de reabilitação e clínicas psicopedagógicas, porém ainda mantendo as classes anexas aos hospitais. Esse capítulo situa a educação no tempo e na história até a década de 1970. Destacou-se nos anos sessentas a criação da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), prevendo que os alunos com deficiências estivessem inseridos "quando possível" na educação regular e indicando serviços especiais caso não existissem possibilidades de inserção desse alunado nas salas regulares. O conceito de anormalidade modificou-se novamente, passando a ser disseminado de acordo com o que era adequado às expectativas escolares ou sociais do momento histórico. Aqueles que não alcançavam os resultados esperados não se ajustavam à norma corrente e eram excluídos. Mesmo com a legalização da integração do indivíduo com necessidades especiais no ensino regular, já predominava a atuação do setor privado nos serviços educacionais de atendimento ao deficiente (inclusive filantrópicos), reforçando a idéia de educação para camadas mais favorecidas.

Com o advento dos anos setenta, aumentou também a valorização da produtividade do deficiente, porém seguindo o princípio de que "cada um valia aquilo que produzia". Além dos fatores "ocupação de tempo" e "participação social", o trabalho das pessoas com necessidades especiais tinha em vista o desenvolvimento social do país, engajando as mesmas em pequenos serviços industriais. Contudo, mesmo diante de alguns progressos, a educação do deficiente era pauta ausente das Conferências Nacionais de Educação. As reformas em educação especial visavam educar o normal dentro dos padrões de excelência, sem realmente favorecer as pessoas com necessidades especiais.

O terceiro capítulo (Caminhos trilhados em busca da equidade) continua retratando a evolução da educação especial a partir dos anos setentas. A década foi considerada pela autora um marco no assunto, ganhando visibilidade diante de alguns fatos, tais como a criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP, posteriormente Secretaria da Educação Especial - SEESP) em 1973, constituindo o primeiro órgão federal de política específica para o ensino do deficiente. As organizações filantrópicas e campanhas pela causa da deficiência continuaram se consolidando no país e a escolarização do deficiente ganhou valor, tendo em vista o desenvolvimento do país e a produtividade do indivíduo. O discurso pedagógico da época ressaltou a integração ou normalização da deficiência, inserindo as pessoas com necessidades especiais no cotidiano dos considerados normais (mainstreaming). Ainda na esperança de que um órgão nacional conseguisse melhorias e integração social ao deficiente, foi criado em 1985 um novo órgão para integração das populações, a Coordenação Nacional para a Integração da Pessoa com Deficiência (CORDE), que visou aspectos mais amplos do que o CENESP e oportunizou a participação dos deficientes em suas decisões, colaborou não só com a divulgação de orientações que viabilizassem a integração social do deficiente, mas também apontou os motivos que pareciam dificultar tal feito.

Na década de 1990, com o advento da declaração de Salamanca, o governo concebeu o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), avaliador e aprovador do plano anual do CORDE. O intuito desse órgão seria facilitar gestões descentralizadas e possibilitar a comunicação entre sociedade civil e governo. Porém, mesmo com a criação de tantos conselhos, permanecia a escola pouco democratizada e a educação especial como um sistema de ensino paralelo ao ensino popular. Este estigma perdurou até os idos do ano 2000, quando mesmo que tantas vezes influenciada pelos valores da ideologia dominante, a ênfase da escola começa a centralizar-se em seu poder transformador, necessitando que os educadores atentem às particularidades dos alunos e valorizando métodos e técnicas de ensino que atendam às "necessidades especiais" de cada um.

O século XXI trouxe em sua bagagem fatores como avanços tecnológicos e direitos conquistados, que preenchem diversas lacunas importantes para o bem-estar do homem, mas ao mesmo tempo, as desigualdades sociais, o progresso desenfreado, as cobranças acerca da produtividade e a competitividade ameaçam a todo tempo tudo o que foi conquistado. Nos dias atuais, ainda se luta para que a educação especial seja reconhecida como parte integrante de uma educação para todos. Nesse contexto, não cabem preconceitos, protelações ou isenções de responsabilidade.

Direcionado a educadores, estudantes e interessados pela área de educação especial, o livro constitui uma obra muito importante, que contextualiza esse segmento educacional na história brasileira no decorrer dos anos, conduzindo o leitor a uma reflexão sobre esse movimento, bem como os seus desdobramentos na educação atual. Utilizando-se de recursos de narrativa que ora avançam no tempo, ora retornam em importantes fatos históricos passados, a autora conseguiu reunir sistematicamente dados oficiais e literários de quase um século compondo um texto completo, agradável, e que prima por despertar o interesse no aprofundamento do assunto quando ressalta importantes autores, documentos e leis.

Educar em Revista - UFPR

Nenhum comentário:

Postar um comentário