quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945)


Petrônio Domingues

Professor Doutor – Departamento de História – Centro de Educação e Ciências Humanas – Universidade Federal de Sergipe – UFS – 49100-000 – São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail: pjdomingues@yahoo.com.br


DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). Trad. Claudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006. 400p.

Por que estudar as relações raciais brasileiras a partir da educação? O que ocorreu com o negro no sistema educacional brasileiro nas primeiras décadas do século XX? De que maneira o fator racial determinou o sucesso ou o fracasso escolar das crianças e jovens de cor? As políticas públicas educacionais influenciaram ou foram influenciadas pelas idéias do racismo científico daquela conjuntura histórica? Como as políticas de expansão e reforma do sistema escolar articularam os marcadores raça, classe, gênero e nação? Não são perguntas fáceis de serem respondidas, mas é em torno delas e de outras questões correlatas o tema do livro Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945), de Jerry Dávila.

Nascido em Porto Rico, Dávila é historiador, professor associado da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. Já foi professor visitante na Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. O livro é fruto da sua tese de doutorado, defendida na Brown University, sob a orientação de Thomas Skidmore. Em 2003, foi publicado nos Estados Unidos e, agora, traduzido no Brasil. A proposta de Dávila é investigar a relação entre raça e políticas públicas na área educacional no Brasil entre o período da Primeira República e a Era Vargas (1917-1945). Para tal empreendimento, consultou uma ampla (e diversificada) quantidade de fontes: decretos, regulamentos, programas oficiais de ensino, censos demográficos, relatórios, jornais da grande imprensa, da imprensa negra paulista, revistas, boletins, memorialistas, cartas, depoimentos, fotografias, etc.

A idéia é demonstrar que educadores, intelectuais, cientistas sociais, médicos tinham a expectativa de que a criação de uma escola universal poderia embranquecer a nação, livrando o Brasil do que eles caracterizaram como a degeneração de sua população. Implementando políticas públicas tanto influenciados pelas matrizes intelectuais e científicas exógenas – sobretudo a eugenia1 – quanto pelas leituras endógenas dos problemas do povo brasileiro, os condutores da educação brasileira acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou pessoas de cor, estavam subjugados à degeneração – condição adquirida por meio da falta de cultura, saúde e ambiente, o que comprometia a vitalidade da nação. Também acreditavam na capacidade de mobilizar ciência, técnica, política estatal para "curar" essa população, transformando-a em cidadãos-modelo. Para tanto, era necessário embranquecê-la, fosse em sua cultura, higiene, comportamento e, eventualmente, na cor da pele.

As políticas públicas educacionais – conduzidas ou compactuadas por intelectuais como Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Fernando de Azevedo, Antônio Carneiro Leão e Edgar Roquette Pinto – tiveram um sentido duplo. Se, por um lado, criaram novas oportunidades no sistema escolar público como um todo, beneficiando alguns segmentos da população historicamente excluídos; por outro, reforçaram uma imagem negativa desses mesmos segmentos. Alunos pobres e de cor foram estigmatizados de doentes, problemáticos e de limitados quanto ao potencial intelectual e cultural. Dávila examina de que maneira a educação pública foi expandida e reformada tendo em vista a reprodução das desigualdades raciais e sociais. Especificamente, "sugeri que o conceito de mérito usado para distribuir ou restringir recompensas educacionais foi fundado em uma gama de julgamentos subjetivos em que se embutia uma percepção da inferioridade de alunos pobres e de cor" (p. 13).

A obra está dividida em seis capítulos. O primeiro mostra como uma elite intelectual brasileira, formada por médicos, cientistas e cientistas sociais, acreditava que a partir da educação pública poder-se-ia solucionar os problemas raciais da nação. O segundo evidencia o entrelaçamento de raça, nacionalismo, ciência e Estado nas agências de obtenção e interpretação estatísticas criadas após 1930. O terceiro capítulo revela que, embora as políticas estatais tivessem ampliado as oportunidades educacionais na rede de ensino público, elas não beneficiaram os afrodescendentes na mesma proporção. As políticas de seleção e treinamento dos professores eram norteadas pelas questões como raça, classe e gênero. Baseando-se em fotografias tiradas com 35 anos de diferença, o autor percebe uma mudança "drástica" no tipo de pessoa que podia se tornar professor no Rio de Janeiro. Em 1911, uma foto mostrava um grupo de professoras afrodescendentes na escola vocacional Orsina da Fonseca. Já uma outra foto mostrava apenas professores formandos brancos, no baile de formatura de 1946 da antiga Escola Normal, que em 1932 se tornou o Instituto de Educação. Talvez por isso Dávila intitulou esse capítulo com uma interrogação: "O que aconteceu com os professores de cor do Rio?". Não precisa acabar de lê-lo para saber que houve um gradual branqueamento do quadro de professores do Rio de Janeiro. Não só lá, mas também do quadro discente da escola de formação de professores. O quarto capítulo pauta a principal reforma do sistema escolar carioca, comandada por Anísio Teixeira, entre 1931 e 1935. Já o capítulo seguinte aborda a reforma de Anísio Teixeira na década posterior ao seu afastamento do sistema escolar pelos adversários católicos conservadores. Apesar das divergências no que diz respeito às políticas educacionais, as elites – tanto a progressista como a conservadora – continuavam concebendo raça, ciência e nação de modo similar. O quinto e último capítulo indica como a educação secundária qualificava um grupo reduzido de pessoas cujos sonhos de ascensão social eram permeados pelos valores da brancura. Um estudo de caso da escola considerada modelo, o Colégio Pedro II, exemplifica bem esse processo.

Desde o compositor Heitor Villa-Lobos, o autor de livros didáticos de história Jonathas Serrano, o antropólogo Arthur Ramos, o psicólogo infantil Manoel Lourenço Filho até o ministro da Educação e Saúde do governo Vargas, Gustavo Capanema, defendiam a idéia da superioridade da "raça branca", não numa perspectiva biológica, mas cultural – ou, sendo mais preciso, de acordo com a "metáfora" da época: o passado do Brasil seria negro, o presente mestiço e o futuro branco, inexoravelmente. Heitor Villa-Lobos – que iniciou sua carreira no ensino musical no sistema escolar do Rio de Janeiro em 1933 –, por exemplo, associava negritude à rebelião, aos maus hábitos e aos problemas de hereditariedade, já brancura, relacionava ao progresso, à beleza e à virtude.

Dávila adverte que seu escopo não foi julgar as idéias desses e outros educadores, como Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, mas entender como as idéias orientaram suas práticas políticas e reverberaram nas instituições que eles criaram ou reformaram. Dotados da "incumbência de forjar um Brasil mais europeu e presos a um senso de modernidade vinculado à brancura, esses educadores construíram escolas em que quase toda ação e prática estabelecia normas racializadas e concedia ou negava recompensas com base nelas" (p. 25). A brancura simbolizava as virtudes desejadas de saúde, cultura, ciência e modernidade.

Por sinal, o título da obra, Diploma da brancura, não foi escolhido pelo autor aleatoriamente. Ele se inspirou numa reportagem da revista Veja de dezembro de 2000, que mostrava a possibilidade de as pessoas serem vistas como brancas apesar da cor de sua pele. Na avaliação de Dávila, esse imaginário racial expressa bem o que a educação pública significava para os líderes do movimento pela expansão e reforma escolar no período entre as duas guerras mundiais: a educação seria um valioso pólo difusor de saúde e cultura básicas, permitindo que todos, independentemente de sua cor, fossem alçados a condição de brancos.

Retomando a pergunta que abre essa resenha, por que estudar as relações raciais brasileiras a partir da educação? Segundo Dávila, o sistema educacional foi uma das principais áreas sobre as quais os especialistas da questão racial no Brasil atuaram e se engajaram para a construção de uma nação social e culturalmente branca. Como a educação é um universo de políticas públicas, revela as maneiras pelas quais esses especialistas traduziram suas idéias em práticas sociais. Mais do que isso. A educação pública fornece subsídios históricos para se pensar os padrões de desigualdades raciais no Brasil e, simultaneamente, entender uma das características mais significativas das relações de raça e nação: a ambivalência. Embora a raça fosse um marcador diacrítico que podia selar a sorte educacional de centenas de milhares de pessoas de cor no Rio de Janeiro, e milhões no Brasil, ela normalmente ficava travestida num discurso médico e científico-social mais amplo sobre a degeneração. A conclusão básica do autor é: intelectuais e gestores públicos impingiram seus valores de raça e lugar social nas políticas educacionais do país, mas o fizeram sem declararem ou, antes, a partir de uma retórica médica, científica, técnica, meritocrática. Essas políticas não pareciam, superficialmente, prejudicar nenhum indivíduo ou grupo. Como conseqüência, "essas políticas não só colocavam novos obstáculos no caminho da integração social e racial no Brasil como deixavam apenas pálidos sinais de seus efeitos, limitando a capacidade dos afro-brasileiros de desafiarem sua justiça inerente" (p. 22).

Ao ler Diploma de Brancura, observa-se que a mensagem da obra é desconcertante: o sistema escolar da Primeira República a Era Vargas foi influenciado por questões de raça, classe e gênero, em todos os seus níveis: do currículo à seleção de alunos, distribuição e promoção; testes e medidas; seleção e treinamento de professores; programas de saúde e higiene (p. 363). Embora houvesse controvérsia sobre a suposta degeneração do negro e mestiço e da possibilidade de aperfeiçoamento eugênico da raça, havia consenso acerca do significado e o valor da brancura. Intelectuais, políticos e gestores públicos confiavam no futuro branco do Brasil e no papel estratégico da educação nesse processo. Isso significa dizer que o sistema educacional brasileiro era racista e excluía os negros deliberadamente? Se for para adotar como parâmetro o conceito de racismo dos Estados Unidos – cuja característica básica é a segregação e hostilidade raciais –, Dávila conclui que a resposta seria negativa. Todavia, ele não tem dúvida que o sistema escolar daquele período foi refratário à inclusão racial, limitou as oportunidades educacionais de crianças e jovens de cor e legitimou as desigualdades sociais entre pessoas brancas e negras no Brasil.

O livro padece de alguns problemas. A despeito de o subtítulo informar que a área de abrangência da pesquisa é "Brasil" e o autor fazer alusão, aqui e acolá, a alguns Estados, o recorte espacial fica notadamente circunscrito ao Rio de Janeiro. Quanto ao uso das fontes, Dávila incorre em um ou outro deslize. Para reforçar a "pista" de que alguns professores de fenótipos mais escuros no Rio de Janeiro se viam como afrodescendentes, ele lança mão de uma fonte atinente à experiência histórica do negro em Campinas, em São Paulo (p. 157). Isto volta a acontecer alhures. Para patentear o desaparecimento gradual dos professores de cor, novamente no Rio de Janeiro, ele apresenta o discurso do líder negro de Pelotas/RS, Miguel Barros, no Congresso Afro-Brasileiro de Recife em 1934, denunciando a situação dos afro-gaúchos (p. 160). Outro problema da pesquisa diz respeito à ausência ou, antes, a não explicitação do referencial teórico-metodológico. Embora hoje seja consenso de que é de fundamental importância o conhecimento histórico ser produzido a partir de uma relação dialógica entre as categorias analíticas e as fontes, os conceitos e as evidências, a teoria e a empiria, o autor não revela quais são os pressupostos teórico-metodológicos de sua prática historiográfica. Aliás, essa característica não é uma exclusividade de Dávila; vários outros historiadores brasilianistas costumam dar muita (ou total) importância para a interpretação das fontes documentais e obliteram a discussão das questões epistemológicas.

Com efeito, esses problemas não chegam a comprometer a qualidade da obra. Num momento em que o debate sobre a questão racial no sistema educacional brasileiro é candente, a publicação de Diploma de brancura é bem oportuna. A partir dessa obra, não é mais possível negar que as políticas públicas educacionais desfavoreceram a população negra no período do pós-Abolição, produzindo (e reproduzindo) distorções raciais crassas. Como o papel da história não é conhecer o passado com uma perspectiva meramente contemplativa, é escusado dizer que são necessárias medidas compensatórias concretas no presente para corrigir essas distorções.



NOTA

1 O termo "eugenia" – eu: boa; genus: geração – foi criado em 1883 pelo cientista britânico Francis Galton. Noção popular por toda a Europa e América no período entreguerras, a eugenia foi uma tentativa de "aperfeiçoar" a população humana por meio do aprimoramento de traços hereditários. Uma eugenia "pesada", baseada na eliminação do acervo reprodutivo de indivíduos que possuíam traços indesejados por meio da esterilização ou do genocídio, foi implementada na Alemanha nazista, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Grande parte da América Latina assimilou uma eugenia "leve", que preconizava "que o cuidado pré e neonatal, a saúde e a higiene pública, além de uma preocupação com a psicologia, a cultura geral e a forma física melhorariam gradualmente a adequação eugênica de uma população" (p. 31).


Revista Historia - UNESP

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