segunda-feira, 8 de junho de 2009

Borges ou do conto filosófico


Davi Arrigucci Jr.

Não é nada fácil dizer em que consiste a novidade de um grande livro como "Ficciones" (1935-1944), que deu fama internacional a seu autor e marcou para sempre a memória de várias gerações de leitores no mundo todo. No entanto, é a tarefa ingrata destas poucas páginas.
Diante de um livro tão complexo e de tantos lados -por vezes nele se alude à vasta imagem do universo-, é preciso escolher logo um ponto de vista, uma chave de leitura. Preferi não percorrer o custoso labirinto da construção desses contos de execução admirável, nem buscar-lhes saídas interpretativas, que se multiplicam em cada caso. Quis saber antes como lidam com as convenções de gênero e, por essa via, sua relação com a História. O leitor, como sempre, tem a última palavra e dirá se fui feliz.
Borges começou escrevendo poemas e ensaios e tardou a escrever contos. Quando estes vieram, no final da década de 30, por um lado se pareciam muito a seus primeiros escritos (1). Causavam idêntica estranheza ou o mesmo redobrado encanto, mostrando uma liga de inteligência com imaginação sempre rara em toda parte, em qualquer época.
A agudeza podia despontar com o corte lapidar de cada frase, revelando poder de síntese e rigor de construção similares aos do verso. A atitude inquisitiva, de busca intelectual, do narrador lembrava o ensaísta e podia cristalizar em sentenças de tom aforismático, às vezes casadas com muita graça e uma perspectiva de humor desconcertante. E naquela prosa de clareza, concisão e elegância clássicas, cada termo reverberava com uma inesperada ironia. Assim, tudo no conjunto confluía de algum modo para um resultado único, de efeito artístico avassalador.
Por outro lado, porém, os contos eram de uma novidade espantosa e não se deixavam explicar apenas pela filiação à literatura fantástica, a que pertenciam em sua maioria. O fantástico tinha já uma longa tradição no Rio da Prata, formando uma corrente importante, vinda do século passado, quando surge Borges. Este deu-lhe a devida atenção, destacando a obra de vários escritores que o precederam no gênero principal a que se dedicou. Foi o caso, por exemplo, do contista uruguaio Horacio Quiroga, ou do argentino Leopoldo Lugones, a quem se refere muitas vezes, sem falar num caso ímpar, mas muito presente, como o do amigo Macedonio Fernández, ou em outros que praticamente tirou do esquecimento, como Santiago Dabove. Fora, havia decerto os grandes representantes do gênero, dos quais cita vários, como Poe, Hawthorne, Wells, Chesterton ou Henry James, e, claro, Kafka à frente, com quem suas histórias sustentam um elo permanente de afinidade profunda.
Mas a filiação borgiana a esta linhagem de narradores fantásticos, seja interna ou externa, não basta para se compreender o que havia de novo em suas ficções. Ajuda a situá-las no contexto de origem e talvez possa esclarecer traços de sua composição. É provável, contudo, que aqui a novidade ou o espanto não dependam tanto do fantástico, mas antes de uma conjunção insólita de arte com pensamento.
Ainda na década de 40, quando só haviam sido publicados uns poucos relatos, Adolfo Bioy Casares, seu amigo e colaborador constante, assinalou que Borges havia criado "um novo gênero literário que participa do ensaio e da ficção", destinando-o "a leitores intelectuais, estudiosos de filosofia, quase especialistas em literatura" (2). Talvez não seja bem assim, mas a observação é sagaz pelos traços decisivos que detecta, quanto à mistura de gêneros e ao teor intelectual e filosófico das narrativas. Pode ainda orientar no reconhecimento crítico da singular fisionomia dessas histórias.
A questão é que Borges impôs desde logo o desconcerto -talvez a mesma perplexidade que dizia sentir diante do universo. A tarefa agora é compreendê-lo em seu modo de ser particular, até o limite do irredutível -aquilo que atua desde o instante de impacto inicial de seus memoráveis contos. Convém buscar, sem pressa.
Arte e pensamento
Benedetto Croce, cujas idéias estéticas são tão influentes na época em que surgem esses contos, opõe arte a pensamento, oferecendo um parâmetro à tentativa de compreensão de Borges.
Considera a poesia uma forma de conhecimento, mas conhecimento intuitivo do particular, capaz de ir além do mero sentimento, que ela transfigura, encontrando a universalidade na própria particularidade, como uma expressão imediata e ritmada do universo. Ao contrário, o pensamento, fora da esfera intuitiva, seria antes a sistematização do universo, reduzido aos signos prosaicos do conhecimento conceitual. O ritmo, alma da expressão poética, é para ele inerente a toda intuição artística e, por isso, característico também das outras artes, manifestando-se em todas elas com esse ou outro nome. Forma ritmada do universo, a arte pertenceria assim a uma esfera diferente, oposta ao conhecimento sistemático próprio do pensamento. A presença de qualquer mediação reflexiva destrói, segundo ele, a imediatez necessária à expressão poética genuína, a qual só na plenitude da imagem alcança a universalidade e a totalidade que lhe dão o caráter de poesia (3).
Não obstante essa distinção, e contrariamente à opinião do filósofo italiano, nosso tempo escolheu reconhecer o pensamento como inerente ao modo de ser da arte. A reflexão artística, voltando-se muitas vezes sobre si mesma, acabou por se fazer uma característica interna das obras de arte, frequentes portadoras de poéticas inclusas, apaixonada e especularmente debruçadas sobre o próprio processo de sua constituição. E assim, também os artistas pensadores se tornaram centrais à nossa tradição, caracterizada por alto grau de autoconsciência do fazer artístico.
Essa é, como se sabe, uma das marcas da modernidade nas artes. Sob esse aspecto, elas se enraizam fundamente no século passado e mesmo antes, nas diversas manifestações em que a simbiose de criador e crítico, a concepção do estilo sem ingenuidade ou a presença de uma consciência artística auto-reflexiva já anunciavam o reino da crítica dos tempos modernos.
Jorge Luis Borges é decerto um desses artistas centrais de nosso século, herdeiro da tradição de lucidez moderna, saído de uma literatura até então mal conhecida internacionalmente, que ele logo marcou com o raro exemplo do rigor intelectual e o alto padrão de sua escrita. É impossível tratar de sua obra, sem considerar seu perfil de poeta douto, reflexivo e crítico, pois ele está imiscuído nela como projeção dessa consciência autoral que a torna arte pensamenteada (4) todo o tempo.
Ele, que abomina o romance psicológico, é uma espécie de anti-Proust, um escritor absolutamente não confessional. A todo momento, entretanto, por ilimitados meios de espelhamento, por citações inumeráveis, constrói mil e uma imagens de si mesmo, de uma persona literária interna aos textos, autor multiplicado, demiurgo ou deus do labirinto especular -o "hacedor" recorrente e inapreensível. Um inventor de ficções invadidas por uma autoconsciência tão pronunciada, que levou Octavio Paz a considerá-lo, a certa altura, como o criador de uma "obra única, edificada sobre o tema vertiginoso da ausência de obra" (5).
Na verdade, Borges soube ritmar o próprio pensamento, dando expressão artística a uma constante reflexão sobre a literatura e a certas generalizações abstratas sobre o universo, por vezes mais contundentes que as imagens concretas que deste se pudesse ter. Seu poder de impacto e novidade se deve, em larga medida, a essa junção original de arte com pensamento que soube operar desde o começo de sua produção literária na década de 20. Chegado da Europa, depois da Primeira Guerra, se entregou à paixão ultraísta que de lá trouxera: metaforizava com fervor, cumprindo o papel de jovem introdutor da vanguarda na Argentina, o que logo renegaria.
Desde cedo, talvez por impulso das idéias vanguardistas, tendeu a dissolver as fronteiras dos gêneros literários (ou talvez porque aceitasse, nesse sentido, a famosa postulação de Croce, a quem gostava de citar). O fato é que mescla as formas do poema, do ensaio e da narrativa, mas sempre com a marca do escritor que pensa por abstrações e não apenas por imagens. Isto contribuiu realmente para dar uma forma singular aos textos que escreveu desde então. Mostram-se muito marcados pela mola inquisitiva do pensamento ensaístico, que arma reiteradas hipóteses e conjeturas sobre os mais variados assuntos, em geral com alto teor intelectual ou dimensão teórica, mesmo dentro dos poemas e, pouco depois, dos contos, que demoraram mais a surgir autonomamente, mas desde o princípio se misturavam dissolutamente às poesias e aos ensaios.
Penso que essa posição reflexiva do escritor, ao ser levada ao espaço da ficção na figura do Narrador, onipresente, como se disse, em seus relatos, transforma profundamente a matriz do conto literário que ele trabalha. Por esse ângulo, provoca mudanças substanciais no modo de ser da narrativa curta, a que imprime uma fisionomia de fato singular, em grande parte responsável pelo impacto de novidade de suas "Ficções".
(continua)

Folha de São Paulo

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