segunda-feira, 8 de junho de 2009

Borges ou do conto filosófico


Davi Arrigucci Jr.

(continuação)
A matriz do conto
Pode-se imaginar o "frisson" que deve ter causado nas páginas do nº 68 de "Sur", em maio de 1940, a leitura de um conto como "Tlõn, Uqbar y Orbis Tertius". Seguindo, na mesma revista, a "Pierre Menard, autor del Quijote", de maio de 1939, instalava a narrativa fantástica na linha de frente da literatura argentina (6).
O primeiro impacto vinha da civilização fantástica que, de repente, pela conjunção famosa de um espelho e de uma enciclopédia, se intrometia em nosso universo. Depois, era o mundo do autor que também se intrometia no da ficção: Borges e seus amigos apareciam como personagens do conto. E assim se multiplicavam os mundos em osmose, para horror dos heresiarcas de Tlõn (7) e assombro do leitor.
Mas, o verdadeiramente novo em tudo isso era o modo como se construía o conto por obra de outro leitor mais terrível e tenebroso: o narrador. O leitor da história se deparava com um duplo no fundo do espelho da ficção: uma espécie de comentador, inquiridor e intelectualizado, dado a minúcias, abstrações e ironias, que quase só narrava argumentos conjeturais, tirados de outros livros incontáveis que sempre tinha lido ou cuja existência inventava. Lembrava por vezes um bibliotecário ilusório que recolhesse zelosamente a uma biblioteca ilimitada e lacunar os volumes imaginários sempre em falta.
Entre os motivos do espanto, figuravam, pois, o livro e a biblioteca como imagens labirínticas do universo. O Narrador bibliotecário era quem multiplicava os espelhos e o assombro: muito da novidade residia no jogo intelectual com os elementos ambíguos da ficção e da realidade, ou seja, com o fantástico. Borges, o ficcionista, era um manipulador intelectual do espanto. O fantástico, espécie de quintessência da ficção -nele os jogos do "como se" que instauram o universo ficcional se radicalizam- se faz uma forma de expressão da perplexidade quanto à natureza da realidade. A metafísica se converte efetivamente num ramo da literatura fantástica.
Fascinado também pelo rigor de construção das narrativas de aventura e das intrigas policiais, cujo artifício preciso e desnorteante gosta de percorrer, Borges retorna por vezes a esses gêneros, modificando-os substancialmente no mesmo sentido com que joga com o fantástico. Quer dizer: para adulterá-los pelo teor de perquirição filosófica e explicitação irônica do jogo intelectual que neles introduz. Assimila, portanto, fórmulas desses gêneros a esquemas que na verdade pertencem a outra modalidade de narrativa, para a qual aquelas são propriamente deslocadas.
Na esteira das histórias policiais ou de aventura, se refere muito a Poe, Stevenson, Chesterton, De Quincey e a muitos outros mais, como se os tomasse por modelos. Todos eles podem ter eventualmente pesado em seu ideal de prosa, de construção do relato ou mesmo lhe terem valido enquanto solução pontual de aspectos técnicos ou temáticos, mas não lhe forneceram os esquemas básicos, mais fundos e característicos do conto em que inova.
Creio que, em suas mãos mais do que hábeis, o conto, da perspectiva da inovação que o torna único e surpreendente, reata raízes não da herança romântica do século 19, nem sequer precisamente da tradição do fantástico (embora também o faça), mas recua até a tradição do conto filosófico do século 18, de corte voltairiano.
Com efeito, é ali que se encontra uma abertura da fantasia aos espaços exóticos, imaginários e utópicos de outros mundos estranhos onde é permitido desconfiar do nosso. Ali se acham os canais livres para a perplexidade metafísica, para os jogos com a filosofia idealista e as dúvidas irônicas sobre nossa própria condição, assim como um padrão similar de leveza e mobilidade intelectual, associadas a certas tomadas de distância e modulações relativizadoras da expressão muito ao gosto borgiano. Ali, por fim, se acha ainda uma abertura para o fantástico, que se casa perfeitamente vem à vertente fantasiosa ou extravagante desse tipo de conto.
Não é apenas pela qualidade do estilo que se pensa em Borges, ao reler Voltaire, a quem o primeiro cita inúmeras vezes e talvez nenhuma sem um elogio. Há realmente uma afinidade grande na situação e nos movimentos do Narrador dos contos borgianos com relação aos "Contes Philosophiques". Mas não ficam aí os traços constitutivos que podem depender dessa herança fundamental, enlaçada na base ao sentimento da alteridade, profundamente arraigado no espírito do escritor argentino (8).
Borges, evidentemente, terá trabalhado a fundo no rumo da invenção pessoal, com o domínio e a força de grande escritor que tudo transforma, mesmo quando retoma a matriz histórica de um gênero ou um feixe de convenções artísticas bem conhecidas. Vale, no entanto, a pena repensar a fórmula básica do conto voltairiano para melhor reconhecimento do modo de ser específico do conto borgiano.
Como observou Jean Starobinski a propósito das dualidades do estilo e da filosofia de Voltaire, esse tipo de conto é dominado pela lei da dualidade, que o obriga a desdobrar-se: de um lado, o plano da história (em que prestamos atenção no destino das personagens); de outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas idéias do narrador e em sua destreza em exprimi-las) (9).
Na verdade, essa dicotomia latente em toda narrativa e reconhecível pela análise, aflora no conto filosófico pelo papel sobressalente que nele se atribuiu ao narrador. Este tende a impor sua visão do mundo intelectualizada, dando livre curso à fantasia intelectual e à observação humorística. Além disso, costuma estender-se em digressões, fazendo uso irônico de vasta erudição e, por vezes, tende à simplificação das personagens, descarnando-as em atitudes mentais ou reduzindo-as a caricaturas. A mistura de fantasia com reflexão moral, como se dá em Voltaire, parece essencial à forma dessa modalidade de narrativa. Logo se vê que ela depende em profundidade de uma disposição espiritual específica que tem suas raízes prováveis na tradição da sátira.
Northrop Frye fornece elementos para que se trate o "conte philosophique" voltairiano como uma forma breve de anatomia. Esse é o termo com que ele designa a forma moderna da antiga sátira menipéia, também conhecida como sátira de Varrão, apoiando-se no modelo inglês da "Anatomia da Melancolia" (1621), de Robert Burton (10). Em sua forma longa, a anatomia em geral guarda certa independência com relação à tradição do romance, ao qual muitas vezes se combina (como no "Tristram Shandy", de Sterne), distinguindo-se por traços diversos de estruturação, pois se trata de uma modalidade de prosa de ficção extrovertida e voltada para o mundo exterior como o romance, mas muito mais intelectualizada, estilizada e digressiva, centrada na dissecação analítica de temas e atitudes intelectuais, dando asas à erudição enciclopédica e, por vezes, a certa dose de pedantismo (11). (Em Borges, em cuja obra se reconhecem vários desses traços, o humor sempre leva vantagem sobre o pedantismo).
Petrônio, Apuleio, Rabelais, Swift e Voltaire, entre tantos outros, seriam exemplos ilustres de avatares dessa tradição. Num ensaio sobre "Bouvard et Pécuchet", cuja afinidade com essa tradição também foi assinalada por Frye, Borges demonstra aguda consciência dessa linhagem de escritores a que vincula a obra do último Flaubert. Ao assinalar que ela rompe o padrão do romance realista criado com "Madame Bovary", mostra também que ela "mira, hacia atrás, a las parábolas de Voltaire y Swift y de los orientales y, hacia adelante, a las de Kafka" (12). Parece estar delineando assim sua própria filiação.
(continua)

Folha de São Paulo

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