terça-feira, 28 de abril de 2009

Um filósofo político?


Thelma L. Da Fonseca

Há temas, dignos e relevantes, que não podem ser tacitamente atribuídos a um autor, por não serem evidentes no conjunto de sua obra. Isso ocorre quando se quer achar preocupações políticas em certos filósofos. Temos, aqui, um caso exemplar: "Nietzsche Como Pensador Político" parece ser uma idéia a ser expressa primeiramente na forma de uma questão, pois, ao que se sabe, jamais fez parte das intenções explícitas desse autor a construção de um projeto político.
Ao se apresentar com esse título, um livro pode indicar três intenções: abordar os pontos da obra em que o autor se referiu a temas políticos e, para isso, seria necessário apenas recensear os trechos em que o assunto aparece; buscar estabelecer confrontos com a tradição de comentário defensora de uma apropriação política do autor; ou, enfim, defender a tese de que os textos nietzscheanos estão umbilicalmente ligados à questão política, propósito que suporia as duas tarefas anteriores.
Diante do subtítulo, "Uma Introdução", seríamos levados a crer que o objetivo do livro se atém a um rol de referências comentadas, destinado a auxiliar iniciantes. Entretanto, o autor anuncia que não é bem esse o caso: "Nietzsche é um pensador preocupado com o destino da política no mundo moderno. Basta passar os olhos em suas abrangentes preocupações (...) para se compreender que ele é primeira e primordialmente um pensador 'político'±". Com essa posição, Ansell-Pearson se distingue da grande maioria dos comentadores anglo-saxões de Nietzsche, que, frequentemente, costuma privilegiar os temas relacionados à linguagem e ao conhecimento.
Enquanto muitos desses comentadores tomam como evidente o fato de que Nietzsche tenha formulado uma "teoria do conhecimento", Ansell-Pearson apresenta sua abordagem como uma via diferenciada: "O consenso que se manteve dominante por várias décadas (...) foi de que Nietzsche não era de modo algum um pensador político". A cautela diante da problematicidade do tema escolhido, já manifestada, pode ser lida como indicação de que se trata de uma tese.
O capítulo três, entre outros, traz intuições instigantes. Ora, todos conhecem o teor da disputa de Nietzsche com Platão, bem como as ambiguidades desta, expostas por diversos autores (como Heidegger). Sabe-se, também, da acusação dirigida a Nietzsche por não ter se decidido entre o terreno da arte e o da filosofia (Habermas, por exemplo). Diante dessas críticas, Ansell-Pearson esboça outro caminho, pois, em vez de encontrar nele um simples antípoda não consumado da filosofia platônica ou um poeta não convicto, entende que "o problema de Platão, para Nietzsche, é que ele não conseguiu reconhecer a base artística da própria filosofia e apresentou-a como verdade eterna e objetiva. Para Nietzsche, tal verdade é uma ilusão; o que o artista ou poeta faz é inventar um mundo 'verdadeiro'. Na política, contudo, pode ser necessário disfarçar a produção artística da verdade de modo a dar a aparência, a ilusão, de uma ordem natural das coisas".
E, no momento em que se pergunta pelo sentido atribuído ao termo "política", começa a se diluir a impressão de que o livro sabe afastar-se da tentação de se apoiar em um suposto "common sense". Isso porque o texto prossegue com citações de Nietzsche e de autores que reivindicam sua herança (Thomas Mann, Camus, entre outros), até chegar ao capítulo quatro, em que "política" é aproximada à idéia de "um novo modo de filosofar histórico", o que é vago. Aí, sua crítica à modernidade é confrontada (não pela primeira vez) com as de Hobbes, Locke e Rousseau, e é legada ao leitor a tarefa de extrair, pela negação, aquilo que Nietzsche, ou o próprio comentador, estaria entendendo por "política".
Ansell-Pearson não deixa dúvidas sobre sua intenção de apartar Nietzsche das tendências liberais (ver sua leitura do aforismo 472 de "Humano, Demasiado Humano"). Entretanto, o que se está supondo como definição de "política" não é, ainda, esclarecido. Resta, pois, a expectativa de que, ao cabo de tantos confrontos e citações, seja extraída do próprio Nietzsche uma chave para essa inquietação. É, então, que se desenha um Nietzsche que, ao recusar também o socialismo, "apoia sua crença no governo aristocrático recorrendo a sua noção da vida como vontade de poder, que ele postula sob o aspecto de uma lei da natureza". Essa política seria exercida por um "indivíduo soberano", identificado por Ansell-Pearson como aquele capaz de fazer promessas mencionado na segunda dissertação da "Genelogia da Moral". Ora, segundo a mesma dissertação, o prometer exclui o esquecimento, supõe uma vontade adestrada e é excludente em relação a toda criação. Bem, de que maneira esses fatores poderiam ser constituintes da "grande política", a "única política patente ou explícita que é possível associar a Nietzsche"?
Contornando esses e outros paradoxos, Pearson conclui haver dimensões "reacionárias" e "positivas" nas posições políticas de Nietzsche, o que não parece acrescentar muito aos dados iniciais, sobretudo porque continua como uma incógnita o referencial desses adjetivos.
Os últimos anos conheceram um "boom" de publicações sobre Nietzsche em inglês. Grande parte parece sofrer de um fenômeno que se poderia denominar "contaminação": interpretações de trechos e de conceitos são pressupostas, de modo que o leitor não filiado a essa recente tradição se sente excluído por uma leitura esotérica. Se "Nietzsche Como Pensador Político" se destaca da grande maioria delas em virtude do tema eleito, ainda assim parece carecer do distanciamento necessário para discriminar a tese e a paráfrase. Deste modo, é prudente atentar para o subtítulo e não esperar do livro mais do que uma introdução.
Thelma Lessa da Fonseca é professora do departamento de filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Folha de São Paulo

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