terça-feira, 28 de abril de 2009

Recepções de Nietzsche


Scarlett Marton
Até setembro de 1888, Nietzsche permanecia praticamente desconhecido. Três meses depois, mergulhava nas trevas do enlouquecimento e sua obra vinha à luz. Com o tempo, multiplicaram-se os trabalhos a respeito de suas idéias. Em 1971, a "International Nietzsche Bibliography" registrava cerca de 5.300 títulos, entre livros e ensaios, em diversas línguas: alemão, inglês, francês, italiano, espanhol e português, além de japonês, finlandês e grego.
Quem se disporia, então, a reunir num único volume artigos sobre o filósofo assinados por vários autores? E com que objetivo se entregaria a essa tarefa, se nenhum deles fosse inédito? Em 1980, Jõrg Salaquarda não hesita em tomar tal iniciativa. Agora, acaba de lançar a segunda edição da coletânea de 15 trabalhos intitulada "Nietzsche", que organizou.
É um objetivo aparentemente modesto que Salaquarda persegue. Quer oferecer ao leitor uma visão de conjunto da pesquisa filosófica em torno do pensamento nietzschiano, enfatizando as principais linhas por ela desenvolvidas. Ao eleger textos originalmente publicados na Alemanha, na França e nos EUA entre 1950 e o final dos anos 70, almeja apresentar uma seleção desse período que seja antes de tudo representativa. Por isso mesmo, adota como critério de escolha dos trabalhos que compõem o volume a importância objetiva que possuem, a extensão de efeitos que provocam, as tendências específicas que expressam.
Autor de diversos artigos sobre Schopenhauer e Nietzsche, co-editor dos "Nietzsche-Studien" e professor de filosofia junto à Universidade de Viena, Salaquarda propõe na coletânea que organiza diferentes interpretações, leituras diversas da obra do filósofo. E presenteia o leitor com a máxima diversidade, diversidade de temas, abordagens, perspectivas. Muito se engana, pois, quem supõe que os textos se achem apenas justapostos. Apresentando múltiplas perspectivas, eles se cruzam e entrecruzam em incessante diálogo.
Heidegger e Jaspers procuram fazer de Nietzsche o representante de determinadas espécies de filosofar; Camus e Bataille realçam o aspecto sobretudo crítico de suas idéias. Se Heidegger entende que o filósofo é o último metafísico, Jaspers julga que ele é o pensador existencial "par excellence". Por outro lado, enquanto Jaspers busca inscrevê-lo na história da filosofia, Josef Simon espera investigar sua relação com a tradição metafísica. Kaufmann, por sua vez, examina a posição que Nietzsche assume face a Sócrates e o próprio Salaquarda analisa sua atitude para com o apóstolo Paulo. Em contrapartida, enquanto Simon explora a questão da verdade no contexto da crítica à linguagem, Alfred Schmidt quer investigá-la no quadro da teoria do conhecimento.
Temas como a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo são objeto de trabalhos instigantes que apontam em diferentes direções. Heidegger considera que a vontade de potência designa o ser do ente enquanto tal, sua essência, e o eterno retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente é, em totalidade, sua existência. Em seu ensaio "A Doutrina de Vontade de Potência em Nietzsche", Müller-Lauter entende, contrapondo-se a Heidegger, que a reflexão nietzscheana exclui a pergunta pelo ente, no sentido da metafísica tradicional. Para tanto, a cada passo do texto, destitui a concepção de vontade de potência das conotações com que os intérpretes a carregaram: unicidade, permanência, substancialidade, fixidez, universalidade. Bernd Magnus, por fim, julga que, em vez de tese metafísica, a doutrina do eterno retorno constitui um "imperativo existencial"; sua veracidade real ou possível desempenha apenas um papel heurístico. Exemplificando a atitude necessária para superar o niilismo, a atitude que se opõe à decadência e ao declínio, ela exprime a afirmação da vida ascendente.
A escolha dos textos que Salaquarda reúne em seu "Nietzsche" também documenta controvérsias. Assim é que, em "A Ariadne de Nietzsche", Podach polemiza com Heidegger e os que seguem a sua interpretação. E, no artigo "Os Limites da Elucidação Psicológica de Nietzsche", Heftrich questiona a metodologia adotada por Podach. Por outro lado, enquanto Lukács pretende apresentar "Nietzsche enquanto fundador do irracionalismo do período imperialista", Bataille espera desfazer o equívoco que ligou o seu nome ao de Hitler.
Avaliando a importância dos fragmentos póstumos para a compreensão da filosofia nietzscheana, Mazzino Montinari e Karl Schlechta discutem, a partir de diferentes pontos de vista, as formas de editá-los. Em 1954, Schlechta levara a termo uma edição das obras de Nietzsche em três volumes, limitando-se a divulgar pequeno número de inéditos. Nos anos 70, ao lado de Giorgio Colli, Montinari organizou uma edição crítica das obras completas do filósofo, ordenando e publicando os póstumos, na íntegra, de acordo com a cronologia original.
O organizador acrescenta, ainda, extensa e pormenorizada bibliografia, que distribui em torno de diferentes itens: edições das obras de Nietzsche, incluindo as cartas e os trabalhos musicais; biografias do filósofo; periódicos, coleções e coletâneas acerca de seu pensamento; apresentações gerais de sua filosofia; monografias e ensaios sobre problemas específicos de sua obra. Para a segunda edição do livro, agrega as referências bibliográficas dos textos que apareceram nos últimos 15 anos em torno do pensamento nietzscheano, suprindo em parte a lacuna deixada pela "International Nietzsche Bibliography". E, em cuidadoso posfácio, examina o estado atual dos estudos acerca do filósofo. Este esforço bastaria, sem dúvida, para fazer deste trabalho importante fonte de informação.
Contudo, bem mais que obra de referência ou coletânea de artigos, o livro organizado por Jõrg Salaquarda espelha quase 30 anos da pesquisa filosófica em torno de Nietzsche. Constitui assim importante capítulo da história mesma da recepção deste filósofo sempre controvertido e jamais esquecido.
Scarlett Marton é professora do departamento de filosofia da USP e autora de vários livros sobre Nietzsche.

Folha de São Paulo

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