domingo, 12 de abril de 2009

O DIALETO DOS FRAGMENTOS


Onde começa a poesia

Marcio Seligmann-Silva
FRIEDRICH SCHLEGEL
Certa vez Valéry expôs com muita verve o "problema" diante do qual Baudelaire se colocava: "Ser um grande poeta, sem ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset". Hegel, por sua vez, tinha como "alter-ego" Kant ou Schelling, mas seus modelos negativos por excelência foram os românticos de Iena e, dentre eles, sobretudo Friedrich Schlegel.
Se é verdade que todo ódio esconde uma incontida atração e identidade, Hegel procurou exorcizar os "fantasmas" que rondavam a sua teoria ao criticar o "subjetivismo exacerbado" dos românticos e ao denunciar o seu "culto do feio, do mal, da mentira -da ironia". Para ele, a arte autêntica deveria "apresentar em si a visão de uma harmonia". Segundo Hegel, "é muito mais fácil interromper-se constantemente o duto da matéria exposta, iniciar, dar continuidade e terminar de modo arbitrário, lançar confusamente uma série de chistes e de sensações, gerando desse modo caricaturas da fantasia, do que aparar as pontas, desenvolver a partir de si um todo em si sólido como testemunho do verdadeiro ideal". A polaridade entre a concepção clássica e a romântica não poderia ser mais gritante.
A concepção hegeliana encontrava-se umbilicalmente conectada a uma determinada visão do conhecimento. Enquanto Hegel visava à construção de um sistema do pensamento e julgava ser possível a redução do mundo ao conceito -"o real é o racional"-, para Schlegel tal representação do mundo é uma tarefa impossível. Ao invés da adequação entre o sujeito e o objeto levada a cabo pelo trabalho do entendimento e dos seus agentes, os conceitos, Schlegel -juntamente com o seu amigo Novalis e na senda aberta por Fichte- propõe uma nova concepção de conhecimento que recusa a tutela milenar do paradigma da representação, ou, se se preferir, da "mimesis". Hegel compreendera essa revolução e foi contra ela que investiu com todo o peso de sua autoridade. O resultado da sua crítica aos românticos de Iena não poderia ter sido mais desastroso: com raras e nobres exceções, tais como Nietzsche, o círculo de Stefan Georg, Walter Benjamin, o primeiro Lukács e Peter Szondi, poucos são os autores que se debruçaram de modo sério sobre as obras de Schlegel e Novalis.
Por outro lado, não deixa de ser sintomático o fato de que essa obra tenha sido resgatada justamente após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, numa época em que o discurso filosófico encontra-se em profunda crise. No volume de fragmentos que agora o público de língua portuguesa tem ao seu alcance -traduzido pelas mãos extremamente competentes de Márcio Suzuki, que aparelhou-o com uma apresentação tanto necessária quanto exata e com notas eruditas e inteligentes- o leitor encontrará a resposta ao porquê dessa recepção tardia. Os fragmentos dividem-se em três grupos. O primeiro denominado "Fragmentos Críticos" foi publicado em 1797 na revista "Lyceum der Schõnen Künste"; o segundo e mais volumoso grupo abarca os fragmentos publicados na revista "Athenãum" em 1798, e o terceiro grupo, também publicado nessa mesma revista -o principal órgão de divulgação das idéias do românticos de Iena- em 1800, recebeu o nome de "Idéias".
Há uma clara "evolução" no pensamento de Schlegel que pode ser acompanhada ao longo desses três grupos de fragmentos. Em 1797, a temática gira em torno da superação da "querela entre os antigos e modernos" e documenta a "distância" que Schlegel tomou com relação a sua primeira fase de filólogo, historiador e tradutor de obras da cultura clássica greco-romana. A forma em si mesmo crítica do fragmento -em oposição à exposição sistemática- já é aplicada aqui com maestria, e conceitos fundamentais do assim chamado primeiro romantismo -que teve seu auge justamente entre os anos 1798-1800 com a publicação da revista "Athenãum"- apresentam-se também desenvolvidos, tais como o de ironia e o de chiste ("Witz").
A filosofia, como Schlegel a definiu então, seria "a verdadeira pátria da ironia" (e esta, por sua vez, foi definida como "beleza lógica"). Evidentemente Schlegel estava sendo kantiano a seu modo: estava apenas desdobrando o "topos" iluminista da autonomia do sujeito. Para o indivíduo moral manter a sua autonomia intacta, ele deve limitar-se a si mesmo antes que isso ocorra por intervenção externa. Por sua vez, Schlegel encontrara na própria poesia esse modelo de sujeito que se auto-regulamenta: "A poesia é um discurso republicano; um discurso que é sua própria lei e seu próprio fim, onde todas as partes são cidadãos livres e têm direito a voto". A consequência -lógica!- desse modelo criativo (vale dizer: auto-criativo) do ser como um poema ("poiesis" significa justamente criação) levou a uma superação da divisão estanque entre o discurso filosófico e o poético, ou seja: "Poesia e filosofia devem ser unificadas".
Nos fragmentos de 1798 assistimos ao auge desse movimento de fundação de um novo modo de pensar baseado na ironia -quer dizer: na reflexão- e na poesia. Esses fragmentos realizam a utopia moderna do livro total; a garantia dessa totalidade é dada pela sua abertura, pela construção de um caos produtivo. Além de F. Schlegel, também Novalis, Schleiermacher e August Wilhelm Schlegel alternam-se na autoria dos fragmentos que não levam uma assinatura. O pensamento deve caminhar para F. Schlegel não em linha reta (que seria o caminho do logos tradicional conduzido pelas amarras da lógica), mas antes num constante movimento de criação e destruição.
Como Schleiermacher afirma -kantianamente!- num desses fragmentos, "sem poesia não há nenhuma realidade, assim como, a despeito de todos os sentidos, não há mundo externo sem fantasia". Esses fragmentos tematizam não apenas a teoria do conhecimento, mas também enfocam o amor, a mulher, a amizade, os diversos gêneros poéticos (com destaque para a teoria do romance, que teria sua origem na doutrina política de Platão), os gêneros da pintura, o próprio fragmento como síntese entre o subjetivo e o objetivo, entre o sistema e a sua ausência, a filosofia da história, o chiste, a morte, o belo, a teoria aristotélica da catarse, o trabalho do filólogo, a noção de gênio e o conceito de exposição, entre muitos outros temas. O último bloco de "fragmentos" -que Schlegel preferia qualificar com o epíteto de idéias- já aponta para o apagar-se de um dos movimentos mais férteis da história do pensamento ocidental.
A genial desconstrução/reconstrução da tradição filosófica aos poucos cede lugar a uma espécie pouco produtiva de misticismo, que pode ser lida sobretudo na teoria que Schlegel elabora de uma nova religião -e que na prática se concretizou com a sua conversão espetacular ao catolicismo em 1808. Também o nacionalismo germânico do futuro Schlegel, ministro e participante do Congresso de Viena, já pode ser detectado aqui. Nem por isso as "Idéias" deixam de documentar a força do intelecto desse autor e a sua tentativa de dar continuidade à reflexão filosófica mediante a fusão entre a filosofia e a poesia ("ali onde cessa a filosofia, a poesia tem de começar").
Schlegel definiu aqui a filosofia como uma elipse com dois centros: para os românticos, todo centro -assim como toda origem- deve ser duplo. Não há "eu" sem um "não-eu". Schlegel, de resto, define a exposição das suas idéias como dependente de sua "visão", como marcada "a partir do meu ponto de vista". A filosofia tradicional até hoje não aceitou esse hiperbolismo do subjetivo e muito menos a definição romântica do "eu" como alternância entre ser e não-ser. Justamente nessa revolução do conceito de identidade -na coragem de se apresentar o "eu" como "poiesis" e jogo de diferenças- encontra-se o núcleo da revolução romântica.
Marcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária e literatura comparada pela Universidade Livre de Berlim e professor de comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

Folha de São Paulo

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