domingo, 12 de abril de 2009

ALEMÃES - A LUTA PELO PODER E A EVOLUÇÃO DO HABITUS NOS SÉCULOS 19 E 20


A auto-análise de Elias

Federico Neiburg

NORBERT ELIAS
último livro que Norbert Elias ofereceu à publicação, "Os Alemães" contém a elaboração mais sofisticada de um dos problemas que o autor perseguiu quase obsessivamente ao longo de sua vida: demonstrar a relação constitutiva entre as biografias individuais e as de seus mundos sociais; compreender a um só tempo macroprocessos de longa duração, como a formação de Estados nacionais, e formas de sensibilidade, as paixões e ilusões que dão sentido à vida das pessoas.
Embora não seja propriamente uma autobiografia, mas um estudo de ciência social histórica e comparada, o livro oferece princípios que permitem compreender a gênese social do ponto de vista do autor. Quer dizer: a própria vida de Elias, o mundo social do qual essa vida foi uma parte e também algumas de suas marcas, como seus escritos anteriores -talvez fornecendo ainda algumas chaves de suas leituras e do que pode ser qualificado como o reconhecimento "tardio" da importância de sua obra. Reconhecimento que o coloca entre as figuras mais importantes das ciências sociais neste século.
Poucos intelectuais tiveram o privilégio de tal longevidade (1897-1990) e souberam explorar as possibilidades que essa experiência pessoal pode abrir para a sociologia histórica. Uma das coisas que faz de "Os Alemães" uma obra absorvente é a forma como aí se tece a compreensão por meio de fatos extraídos da própria vida do autor e de seus contemporâneos mais próximos (parentes, amigos e professores). Assim, a imagem que melhor descreve a relação de Elias com os processos sociais e culturais tratados no livro é aquela de um antropólogo que teve o raro privilégio de acompanhar durante quase um século a história de seu "objeto", observando e participando dos mundos sociais que tratou de compreender e que também sempre foram os seus; transformando os traços de sua trajetória pessoal -uma quase constante condição de "outsider"- em uma disposição analítica construída a partir de um equilíbrio racional entre proximidade e distância.
A fim de compreender a conflitante relação entre os povos germânicos e seus vizinhos eslavos e latinos, Elias nos convida a retroceder vários séculos; mas a história que lemos em "Os Alemães" começa de fato em 1871, quando, em consequência de uma série de vitórias militares, a unidade da Alemanha ganha uma densidade peculiar, marcada tanto por uma percepção jamais tão nítida das fronteiras externas quanto, no plano interno, por um agudo processo de homogeneização social e de nacionalização. Era uma época -a do "Kaiserreich" do imperador Wilhelm 2º e do chanceler Bismark- em que os alemães se sentiam orgulhosos de seu presente e confiantes em seu futuro.
Em um dos capítulos mais singulares do livro, Elias retrata por uma via original o fundamento social e o conteúdo de tais sentimentos entre as elites da época: a etnografia do duelo e das confrarias de estudantes e jovens militares que formavam a "satisfaktionsfãghe Gesellschaf" -uma sociedade fundada num ideal militar de honra e de status, tal como o exprimiam a atitude de pedir satisfação face às ofensas e a utilização recorrente e ritualizada da força física na definição das identidades pessoais e coletivas. A persistência e a generalização dos duelos entre os alemães do fim do século passado distinguem-nos de outros povos europeus, entre os quais este traço do "habitus" militar desde muito havia praticamente desaparecido; também exprimem os paradoxos de um Estado que se auto-representava como forte e que, no entanto, tolerava como legítimas formas de fazer justiça e exercer violência situadas fora de seu controle. Revela ainda as características de uma "boa sociedade" que exigia a adesão aos valores da aristocracia militar e a certeza em seu papel de protagonista do futuro da nação alemã.
Elias nasceu e cresceu em um dos domínios do mundo guilhermino: aquele das famílias de judeus burgueses que durante o Segundo Império não hesitavam em identificar-se como alemães. Seu pai era um industrial têxtil e sua mãe, formada na cultura clássica, por ocasião do Barmitzvá do filho, o tradicional rito judaico de entrada no mundo dos adultos, escolheu, para presenteá-lo, obras de Schiller e Goethe. Alguns anos mais tarde, Elias se alistou no Exército e combateu por seu país na frente ocidental, durante a Primeira Guerra. A derrota alemã pôs fim às certezas que fundavam o mundo de sua infância e adolescência e transformou os de sua geração em protagonistas de um capítulo da história da Alemanha e da Europa (a república de Weimar, sua crise e a ascensão do nazismo) caracterizado por uma forte politização e pela generalização do uso da violência como forma de regular as relações, primeiro, "entre" os alemães e, depois, a partir de 1939, entre estes e outras nações.
Até 1924, Elias viveu em Breslau, onde estudou medicina e filosofia. Especializou-se depois em sociologia em Heidelberg e em Frankfurt, onde frequentou o seleto grupo de herdeiros de Max Weber, os cursos de seu irmão Alfred e o salão de sua viúva, Marianne, e se tornou assistente de Karl Manheim. Como outros intelectuais judeus progressistas da época, deixou a Alemanha em 1933, quando muitos ainda hesitavam em acreditar na capacidade de mobilização social do nacionalismo autoritário e anti-semita preconizado pelos nazistas. Seu pai morreu em Breslau em 1940; sua mãe, um ano mais tarde, foi assassinada em Auschwitz.
Ler, porém, "Os Alemães" como uma interpretação das "origens do nazismo" é reduzir o alcance desta obra, que é sem dúvida o trabalho mais importante de Elias desde "O Processo da Civilização". Em "Os Alemães", Elias aponta para o equívoco daqueles que tomaram sua análise da pacificação do mundo social no Ocidente como uma filosofia da história e não como um estudo psico e sociogenético da interiorização das coerções sociais e da monopolização da violência pelos Estados. Se é possível utilizar expressões como "colapso da civilização" para falar da explosão de violência que atingiu a Alemanha e a Europa no segundo quarto deste século, não será no sentido de diagnosticar algum tipo de "retrocesso no curso da história". Trata-se antes de compreender as condições sociais que possibilitaram a consagração de certos valores, contrários aos da tradição humanista em que se baseavam os ideais da civilização.
A comparação entre dois momentos da história dos alemães, ambos marcados pela progressiva utilização da violência para se fazer política, sugere algumas constantes de alcance mais geral. O primeiro momento é aquele imediatamente posterior à derrota de 1918, quando muitos jovens oficiais (da geração de Elias) formaram as "Freikorps" com o intuito de se contrapor ao que entendiam como uma inadmissível renúncia aos ideais nacionalistas por parte das velhas elites imperiais -em um só ano, formações das "Freikorps" assassinaram mais de mil "inimigos políticos", entre eles Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo e alguns amigos próximos de Elias.
O segundo momento é a Alemanha do final dos anos 1960, quando jovens, tão frustrados quanto os de quatro décadas antes, alistaram-se em grupos terroristas de inspiração marxista, como o Baader-Meinhof. A busca de um sentido para a vida no uso da violência por parte daqueles que censuravam o establishment das repúblicas de Weimar e Bonn, permite a Elias imprimir densidade sociológica à análise das relações intergeracionais e, ainda, à própria noção de geração, muito em voga entre os que foram seus professores em Heidelberg e Frankfurt.
O título do livro de Elias evoca dois fantasmas. Um é o da reificação que ameaça uma boa parte dos estudos sobre identidades nacionais; o outro é o da relação entre Estados nacionais e violência, sintetizada na associação inevitável e imediata entre os alemães e o nazismo. Quanto ao primeiro, o livro mostra, por um lado, como nada é natural nas fronteiras nacionais e tampouco nos sentimentos que unem os indivíduos a seus países; por outro, que, quando falamos de os alemães, os brasileiros ou os mexicanos, o perigo de reificação não é maior nem menor do que quando nos referimos a qualquer outra identidade social, como os judeus, os negros ou os operários.
O segundo fantasma, que, por evocar os dilemas da relação do passado do país com seu presente e futuro, assombra profundamente as consciências dos próprios alemães, permite a Elias desenvolver uma avaliação positiva do lugar das identidades nacionais no mundo contemporâneo -avaliação que poderia surpreender em um livro quase inteiramente dedicado à compreensão dos horrores do nacionalismo e da violência política. Àqueles que hoje se regozijam anunciando o advento de uma ordem pós-nacional baseada na lógica do mercado, os capítulos finais do livro, onde Elias fala da necessidade de elaborar os fantasmas do passado a fim de construir um futuro para os alemães, lembram que o mundo de nações também se baseia em mecanismos de democratização, em ideais de igualdade, em sentimentos de solidariedade -valores que também eram os do humanismo alemão com o qual Elias nunca deixou de se identificar.
Federico Neiburg é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)

Folha de São Paulo

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