domingo, 22 de fevereiro de 2009

A vontade de poder


NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira
Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Apresentação de Gilvan Fogel.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
Ernani Chaves
Doutor em Filosofia pela USP.Professor Associado I da Faculdade de Filosofia da Universidade
Federal do Pará. Belém, PA - Beasil, e-mail: erna.nic@hotmail.com

“A Vontade de Poder” não existe!
“Editores – sempre enganadores, animais desprezíveis, glutões preguiçosos.”
(Giorgio Colli)

“La volonté de puissance n’ existe pas” é o título de uma coletânea de artigos de Mazzino Montinari, organizada por Paolo D’ Iorio e publicada em 1996 pela Editora L’Éclat, de Paris. O livro tinha como pano de fundo as sucessivas publicações da coletânea de fragmentos póstumos de Nietzsche, intitulada “A Vontade de Poder”, na França, na Alemanha e na Itália, que vieram à luz nos anos 1990. Um fato singular nessa história: a própria e conceituada Editora Gallimard, que havia, corajosamente, se reunido às editoras Walter de Gruyter, de Berlim, e Adelphi, de Milão, para publicar a edição crítica Colli-Montinari, havia sucumbido à tentação de publicar uma obra que a edição crítica havia demonstrado, definitivamente, que nunca existira. Um pouco antes, no volume dos Nietzsche-Studien de 1995, Wolfgang Müller-Lauter, no artigo “Der Wille zur Macht als Buch der Krisis Philosophischer Nietzsche-Interpretation” (“A Vontade de Poder como livro da crise das interpretações filosóficas de Nietzsche”) realizava uma longa e elucidativa análise a propósito das dificuldades encontradas pelos grandes intérpretes alemães de Nietzsche, como Bäumler, Heidegger, Jaspers e Löwith para se posicionarem diante da situação editorial dos póstumos: se todos, por um lado, reconheciam em maior ou menor grau a ausência de um critério filológico rigoroso na edição dos póstumos, por outro lado sucumbiram, também em maior ou menor grau, à tentação de encontrar um “sistema” em Nietzsche. E para isso, não hesitaram em utilizar as coletâneas intituladas “A Vontade de Poder”, julgadas como espúrias por eles mesmos. Antecedendo essa discussão na Alemanha e na França, encontramse o artigo de Guiliano Campioni (“Nel deserto della scienza. Una nuova edizione della Volontà di potenza di Nietzsche”) na revista Belfagor de março de 1993, assim como o artigo escrito por Marco Brusotti e Federico Gerratana, “Dappertutto e in nessun luogo. Volontà e potenza di un’edizione nietzscheana”, publicado no número de setembro-dezembro de 1993 do Giornale critico della filosofia italiana, tendo em vista a republicação na Itália da Vontade de Poder. A mesma questão, a mesma discussão, só que agora referida às edições italianas. Quando pensávamos que essa discussão estava morta e enterrada, uma vez que a Nietzsche-Forschung em todo o globo passou a trabalhar a partir da edição crítica Colli-Montinari, a recente publicação de uma edição brasileira da Vontade de Poder reabre o debate. A edição brasileira é baseada na chamada “edição canônica”, que recebeu este nome por ter sido utilizada por intérpretes muito importantes como Jaspers, Löwith, Heidegger, Fink, Andler e Kaufmann, tendo sido publicada originalmente em 1906, organizada por Elizabeth Förster- Nietzsche e Peter Gast. Em relação à primeira edição, de 1901, esta edição continha 1067 “aforismos”, enquanto a edição de 1901, apenas 483. A dita “edição canônica” foi traduzida para o inglês em 1912 e para o italiano em 1927, tendo sido igualmente retomada na chamada Edição Musarion das obras de Nietzsche, em 1922, sob os auspícios de Friedrich Würzbach e alcançou grande prestígio por ter sido aclamada por Alfred Bäumler, que se tornou uma espécie de Secretário de Ensino Superior durante o nazismo e foi quem, de fato, tornou A Vontade de poder o livro que continha a “filosofia essencial de Nietzsche”. Não precisamos dizer o quanto essa posição estava na linha de frente da interpretação nazista de Nietzsche. O interessante nesta história é que o filólogo Otto Weiss, na retomada em 1911 da “edição canônica” no interior da edição “in octavo”, já havia escrito um aparato crítico onde deixava claro o “caráter arbitrário” da compilação. Este aparato desaparece das edições seguintes e mesmo Heidegger, tão cioso em questões de filologia, não deixava de recomendar o uso da edição de Bäumler, “para consulta cotidiana”, aos ouvintes de seu primeiro curso sobre Nietzsche em 1936.
Tanto na “Apresentação”, quanto nas notas “Sobre a tradução”, que acompanham a edição brasileira, podemos acompanhar a repetição de todos os artifícios já largamente utilizados para justificar uma nova edição de “A vontade de poder”. Não se trata de uma “obra” de Nietzsche, mas de“textos” de Nietzsche, diz-se logo nas primeiras linhas da “Apresentação” (p. 9), retomando um argumento já utilizado no Brasil por Gérard Lébrun, quando da publicação de alguns póstumos na coletânea organizada por ele para a Coleção “Os Pensadores” (a primeira edição é de 1974). Mas, o que é realmente espantoso é a afirmação de que os textos são “autênticos” e que “não foram, como já se disse e se insinuou, distorcidos ou adulterados pelos organizadores”. Comparando-os aos da edição Colli-Montinari, o que se verifica são apenas “pequenos erros e pequenos cortes, lacunas, não por alguma pretensa má-fé, mas por deslizes naturais de uma publicação que não segue normas críticofilológicas próprias da acribologia científica” (p. 10). Para me contrapor a esse tipo de argumentação, lembro apenas o trabalho exaustivo do pesquisador
David Marc Hoffmann, Zur Geschichte des Nietzsche-Archivs. Chronik. Studien und Dokumente. Berlin/New York, De Gruyter, 1991. A “Apresentação” da edição brasileira consegue assim um feito inédito, que certamente marcará a história da recepção da Vontade de Poder: como se viu, lê-se que a “pretensa má-fé de Elizabeth Förster-Nietzsche, a “irmã abusiva”, jamais existiu! Os problemas da edição organizada por ela e Peter Gast (o primeiro a perceber e a denunciar a “má-fé” e existe uma vasta documentação a respeito) são apenas “erros de impressão”. À retratação histórica e jamais pensada de Elizabeth Förster-Nietzsche e da ação de seus amigos em torno do “Arquivo-Nietzsche” de Weimar, após mais de um século da recepção de Nietzsche, segue-se também a retratação de Peter Gast, agora na nota “Sobre a Tradução”, pois é ele, dizem os tradutores, “por ter gozado de grande intimidade com Nietzsche”, que “respalda” e dá o “valor de organização da obra” (p. 17); a sua “autoridade”, é o “arrimo mais significativo para conferir valor à organização dos aforismos” (p. 17). Talvez porque não interesse aos responsáveis por essa edição nenhuma “acribologia científica”, não é apresentada aos leitores nenhuma justificativa compatível com a importância de tais afirmações. Principalmente, não há nenhuma contestação de qualquer das pesquisas filosóficas e históricas a propósito da (ir) responsabilidade de Elizabeth Förster-Nietzsche e Peter Gast pela publicação da Vontade de poder e do espólio de Nietzsche no seu conjunto e que apontaram diversos abusos, falsificações e deformações. Todo o trabalho de eminentes pesquisadores e intérpretes como E. F. Podach, Karl Schlechta e Richard Ross, ilustres antecessores de Colli e Montinari, desaparece na fumaça da “acribologia científica”. Um outro argumento utilizado pelos tradutores é a afirmação de que a tradução se baseia numa edição comparada com a edição Colli-Montinari, publicada pela Editora Kröner, a mesma que havia publicado a edição da Vontade de Poder organizada por Alfred Bäumler e publicada em 1930. Mesmo que isso seja inteiramente verdadeiro (o que apenas um outro estudo em curso, mais minucioso de minha parte, pode comprovar), não justifica, de modo algum, a publicação, pois a edição Colli-Montinari não se limita apenas a corrigir os “erros de imprensa” das edições anteriores, mas principalmente a organizar os fragmentos em ordem cronológica, tal como o próprio Nietzsche o fizera nas suas anotações. Essa organização, tentada sem pleno sucesso pela edição de Karl Schlechta em 1955 é, sem dúvida, o ponto central da edição crítica, responsável por uma profunda ruptura nos estudos sobre Nietzsche. Organizados cronologicamente, os fragmentos póstumos podem ser articulados mais corretamente com a obra publicada ou ainda, como acontece em muitas situações, constituem argumentos paralelos, não apenas complementares, mas também explicativos. Esse movimento entre fragmentos póstumos e obra publicada,
acrescido pela correspondência, torna possível ao leitor de Nietzsche acompanhar o seu pensamento em processo e, com isso, destruir a legenda de um Nietzsche
intuitivo, visionário, inspirado, “louco”. Ao contrário, o que aparece é o Nietzsche leitor infatigável, pesquisador minucioso, interessado nas questões de seu tempo, um solitário, certamente, mas que não estava isolado do mundo.
Aquele que disse que a confecção de um aforismo assemelha-se ao trabalho do ourives deu-nos inteira mostra disso nos seus inúmeros pequenos, médios e grandes cadernos de anotações, que sempre o acompanhavam. Estas questões não são um mero exercício de pedantismo acadêmico, como já observava Paolo D’Iorio no seu “Posfácio” à coletânea de artigos de Montinari acima mencionada. Elas são absolutamente necessárias, pois se podemos afirmar que o especialista ou estudioso de Nietzsche no século XXI está imune às publicações dessa natureza, o mesmo não se pode dizer dos estudantes de filosofia, dos leitores não especializados de Nietzsche, incluindo se aí os “entusiasmados” de todas as tribos, o público em geral, enfim. Qualquer edição dos póstumos de Nietzsche intitulada A vontade de poder elimina a possibilidade de que se entre em contato com o pensamento de Nietzsche, no seu próprio processo. E, com isso, apenas fomenta o arsenal de equívocos e clichês que a recepção de Nietzsche não deixou de acumular. “Se eles querem ler Nietzsche [esses outros leitores], eles têm esse direito, desde que possam dispor de um texto confiável e de todos os instrumentos que as ciências histórica e filológica podem colocar-lhes à disposição,” conclui Paolo D’Iorio.Infelizmente, a recente edição brasileira de A vontade de poder nos obriga a repetir um refrão que pensávamos não ser mais necessário: “A vontade de poder não existe!”. Nesta perspectiva, esta edição brasileira em nada contribui para os estudos de Nietzsche no Brasil, muito menos para a (in)formação do leitor em geral.
Revista de Filosofia Aurora

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