domingo, 22 de fevereiro de 2009

Eros e Tânatos: a vida, a morte, o desejo


ALMEIDA, R. M. de. Eros e Tânatos: a vida, a morte, o desejo. São Paulo:
Loyola, 2007.
Fábio Robson Búfalo
Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR - Brasil,
e-mail: fabiusbufalus@gmail.com
Notável por apontar nuanças e comparar diferentes pensadores da história da filosofia e interpretar com incomparável maestria os seus temas principais, o filósofo e teólogo Rogério Miranda de Almeida1 atenta, mais uma vez, para o paradoxo do entre-dois, expressão de inspiração lacaniana que Miranda de Almeida adotou e que, segundo ele, pode notar-se na escrita de todo pensador e, sobretudo, no texto nietzschiano. Neste, a questão do meio está ligada de maneira essencial, radical, ao paradoxo da “exclusão interna” que – nas palavras do próprio autor – se pontilha dentro e através do texto enquanto espaço por onde se desdobra, se satisfaz e se refaz a tensão do desejo. Com o termo paradoxo – que, por ser um paradoxo, não pode ser definido – o autor parece querer significar a multiplicidade de visões, de interpretações, de leituras e de perspectivas que todo texto, ou toda escrita, não cessa de acarretar. O seu último livro, Eros e Tânatos: A vida, a morte, o desejo, é dividido, do ponto de vista formal, em duas partes principais: na primeira, ele trata da filosofia antiga, ou seja, dos pré-socráticos e de Platão; a segunda parte se volta para a filosofia contemporânea e, mais precisamente, para Schopenhauer, Nietzsche e Freud. Com relação à primeira parte, temos dois capítulos, que se
intitulam: I. Os pré-socráticos: geração – corrupção – morte – vida. II. Eros, imortalidade, mediações. No interior do primeiro capítulo, o autor analisa a relação entre a vida e a morte em Hesíodo, Heráclito e Empédocles, usando das metáforas da noite e do dia, do sono e da vigília. Trata também de Parmênides 1 Autor também de Nietzsche e o paradoxo (2005) e Nietzsche e Freud: Eterno retorno e compulsão à repetição (2005), ambos publicados pela Edições Loyola, São Paulo. Escreveu e publicou vários artigos, em revistas nacionais e internacionais, sobre a mesma temática. Professor do programa de pós-graduação de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, campus Curitiba. Faz um paralelo entre Hesíodo e Hegel, entre Empédocles e Freud. No segundo, retorna à questão da relação entre a vida e a morte com uma ênfase especial
sobre os “intermediários”, ou o entre-dois, em Platão. “Vitam mortalem, an mortem vitalem?” (vida mortal, ou morte vital?), assim Miranda de Almeida inicia seu livro, citando Agostinho, para afrontar e analisar a problemática das pulsões de vida e de morte. Todavia, o
autor chama a atenção para o fato de que, mesmo antes de Agostinho, Sêneca já havia utilizado a expressão libido moriendi para significar aquilo que, mais tarde, Freud chamaria de pulsão de morte, isto é, uma tendência ou um impulso para recuperar um estado que, em priscas eras, o organismo vivo teria abandonado. É neste mesmo contexto que o autor estabelece uma comparação entre Hesíodo e Hegel para, mais uma vez, enfatizar que vida e morte não se opõem de maneira absoluta, mas, antes, estão numa constante relação uma com a outra. Em seguida, Heráclito é invocado para fazer ressaltar a ambiguidade das oposições ou, mais exatamente, o paradoxo dos contrários. Este paradoxo, ou esta tensão, é ilustrada pela figura do “Conflito”, que Heráclito denomina “o pai de todas as coisas”. Em Empédocles, que o autor, para acentuar os contrastes, coteja com Parmênides, presenciamos novamente o jogo ambivalente, e constante, da geração e da corrupção, expresso pelos elementos originários: terra, água, ar e fogo. Na última seção deste capítulo, intitulada: “Empédocles e Freud”, Miranda de Almeida começa evocando uma carta que Freud endereçara a Albert Einstein sobre as duas pulsões que ele considerava básicas: as que tendem a unir, chamadas pulsões sexuais ou eróticas, e aquelas que, ao contrário,
procuram desunir, destruir, e que são, por isso mesmo, as pulsões de agressão ou de destruição. Em Empédocles, estas duas pulsões são descritas, respectivamente, sob os nomes de “concórdia” e “discórdia”, as quais disputam entre si a preponderância sobre o curso do mundo, ou dos elementos. Se no primeiro capítulo o autor examinou as doutrinas dos présocráticos, dando destaque a Heráclito, Parmênides e Empédocles, no segundo, é Platão a ocupar o centro de suas análises, sobretudo no que se refere à questão do paradoxo do entre-dois, ou dos intermediários. Mais precisamente, ele focalizará os diálogos: O Banquete, A República e O Fédon. Com relação ao primeiro diálogo, nota-se a ênfase que o autor porá sobre o discurso de Sócrates-Diotima para fazer sobressair, ainda mais, a sua tese de fundo, qual seja, a questão do entre-dois. Aqui, ele mostra, mais uma vez, o caráter ambíguo e ambivalente que atravessa a figura do semi-deus Eros: pobre-rico, carentetransbordante, belo-feio, presente-ausente, desejoso e dispensador de bens. Na República, o autor chamará a atenção para os impasses em que Platão estava para deixar-se enredar ao efetuar uma divisão bipartida da alma: a parte racional e a parte irracional. O filósofo no entanto – acentua Miranda de Almeida – introduz um elemento essencial nesta divisão (o thymós) que, literalmente, funciona como um vínculo, uma ligação, uma passagem ou, na linguagem do autor, um entre-dois, dentro destas duas partes. Isto significa que o thymós, ao
situar-se entre o racional e o irracional, faz as vezes de um e de outro. Em seguida, ele analisará a questão da imortalidade da alma que, na República, está intrinsecamente relacionada com os conceitos de bem e mal. Este capítulo se termina com a problemática da imortalidade no Fédon, cujos argumentos são: 1) A união dos contrários, 2) Das substâncias compostas às substâncias
simples, 3) A participação às Idéias.
A segunda parte da obra se divide, ela também, em dois capítulos:
III. Schopenhauer: Vontade de vida e vontade de nada. IV. Nietzsche, Freud e o desenrolar das pulsões. O terceiro capítulo, do ponto de vista material, se revela visivelmente menos abrangente e menos extenso do que os demais capítulos. Com esta constatação, porém, não se trata de concluir que o autor tenha propositadamente dado menos importância ao lugar que ocupa Schopenhauer na sua teoria do paradoxo do entre-dois. A verdade é que ele não deixa menos de ressaltar o caráter essencialmente paradoxal da vontade no pensamento e nos escritos do autor de O mundo como vontade e representação. Esta ambiguidade se exprime sobremodo nas comparações que Miranda de Almeida estabelece entre Schopenhauer e Freud no que diz respeito à problemática das pulsões de vida e de morte. Freud, relembra o autor, se diz tributário das intuições do solitário de Frankfurt quanto ao papel fundamentalmente ambivalente que representam as pulsões de morte na sua luta, nunca acabada, por restaurar um
estado que ela deverá abandonar no momento preciso em que a vida irrompera no seu seio. Assim, conclui Miranda de Almeida, tanto em Schopenhauer quanto em Freud não existe uma Aufhebung terminal, pois vida e morte, construção e destruição, satisfação e insatisfação desenrolam um jogo que não conhece nem trégua nem fim. Para o autor, o paradoxo da vontade schopenhaueriana consiste, portanto, em que a sua saciedade está justamente na sua infinita insatisfação. Mas de que trata finalmente o quarto e último capítulo que, explicitamente, está mais relacionado com o tema deste número da Revista de Filosofia? Como dissemos acima, este capítulo se intitula: Nietzsche, Freud e o desenrolar das pulsões. Aqui, o autor efetua uma original e acurada comparação entre Nietzsche e Freud no que concerne às pulsões de vida e de morte. Para Miranda de Almeida, não somente Nietzsche, mas também Empédocles, Platão
e Schopenhauer anteciparam em muitos aspectos aquilo que a experiência analítica, os paradoxos do corpo e a própria escrita iria servir para Freud como uma chave de leitura para as suas próprias descobertas e intuições. Aliás, o autor sublinha com insistência que é o próprio Freud quem declara que a sua teoria sobre uma tendência para a morte, ou para um estado originário, já fora intuída por estes mesmos pensadores: Empédocles, Platão e Schopenhauer.
Sintomático é que este capítulo se subdivide da seguinte maneira: 1) As pulsões segundo Freud, 2) Nietzsche e a vontade de potência, 3) Pulsões de vida e pulsões de morte em Freud, 4) O orgânico e o inorgânico segundo Nietzsche, 5) A vida, a morte e as vontades de potência, 6) Nietzsche e as pulsões de destruição. Como pode perceber o leitor, em Freud a ênfase recai sobre as pulsões de vida e as pulsões de morte, enquanto que em Nietzsche é mais propriamente para o orgânico e o inorgânico que o autor dirige as suas análises. Todavia, mais do que o orgânico e o inorgânico, Miranda de Almeida ressalta a relação essencial que, em Nietzsche, se dá entre a vida, a morte e a vontade de potência ou, mais exatamente, as vontades de potência. Neste sentido, o autor não se cansa de acentuar o papel essencialmente ambivalente, paradoxal, que representa a vontade de potência na medida em que ela pode ser uma vontade de vida, de dominação, de apropriação, de expansão, mas também de morte, de destruição, de aniquilação ou, numa palavra, de nada. Não é por acaso que o autor termina este último capítulo analisando as pulsões de destruição que intuíra, interpretara e diagnosticara o discípulo de Dioniso. Não é também por acaso que, mais uma vez, retorna no final de sua obra a questão que desde o início vinha acompanhando-o como um leitmotiv, qual seja, o paradoxo do entre-dois, do meio, do vínculo, da passagem ou da inclusão. Por isso, ao escrever a última frase, ele retoma a interrogação de Agostinho que ele havia evocado já no início do primeiro capítulo: “Trata-se de uma vida mortal ou de uma morte vital? Ou de ambas ao mesmo tempo?[...]” Como podemos constatar, o autor não termina a sua obra, porque – sublinhe-se uma vez mais – o que está em jogo em todo este percurso é, para usar os seus próprios termos, a tensão do desejo na sua infinita “satisfação-insatisfação”.
Cabe pois ao leitor fazer a sua própria leitura, a sua própria interpretação...
Revista de Filosofia Aurora

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