segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

UM DIÁRIO NO SENTIDO ESTRITO DO TERMO


A tristeza nos trópicos

Márcio Goldman

Os quase dois anos passados, entre 1914 e 1918, pelo polonês Bronislaw Malinowski na Nova Guiné -principalmente no arquipélago das Trobriand, situado a nordeste da ilha principal-, geraram uma série de livros que, publicados a partir de 1922, seriam responsáveis pela inclusão do autor na história da antropologia.
Tornou-se impossível desde então iniciar-se nessa disciplina sem aprender que Malinowski é o responsável pela invenção de sua técnica central (o trabalho de campo) e da forma de apresentação de seus resultados (a monografia etnográfica). Ou, para sermos mais exatos -já que uma e outra são anteriores a ele-, aprendemos que Malinowski redefine o trabalho de campo como um esforço intensivo de longa duração, realizado na língua da população estudada e possibilitado por uma longa permanência entre os "nativos", com o máximo possível de adesão ao modo de vida estudado: a observação participante se converte na pedra de toque do trabalho do antropólogo.
O começo dos "Argonautas do Pacífico Ocidental" é sintomático: convida o leitor a imaginar-se só numa ilha longínqua, vendo o navio que o trouxera afastar-se lentamente; em seguida, define o que deve ser feito em tal situação, incitando o etnógrafo a coletar dados relativos a três dimensões da vida social: a "constituição", ou forma, da sociedade; os acontecimentos mais corriqueiros que compõem "os imponderáveis da vida cotidiana", as fórmulas e os relatos mais cristalizados. Se, em geral, a primeira e a terceira dimensões (o "esqueleto" e o "espírito" da vida social) podem ser abordadas por meio de questionários e perguntas diretas e apresentadas sob a forma de transcrições, diagramas, esquemas etc., tudo é diferente quando tratamos da segunda dimensão.
É aqui que se construiu a fama de Malinowski. Pois, se o trabalho de campo permite a obtenção dos dados relativos à vida mais cotidiana, como registrar e transmitir "a carne e o sangue" de uma sociedade? A "solução" é a elaboração de um "diário etnográfico", que fornecerá a matéria-prima da monografia antropológica.
Não é este tipo de diário, contudo, que acaba de sair em português, em uma tradução, aliás, cheia de problemas, sobre os quais não vale a pena insistir. O texto traduzido foi encontrado após a morte de Malinowski em 1942 e publicado em 1967 por decisão da viúva do autor. Trata-se, de fato, de um diário "no sentido estrito do termo", em que, aparentemente, o autor escreve para si mesmo tudo o que lhe vem à mente de 1914 a 1915, entre os mailu, e de 1917 a 1918, em Trobriand. O diário foi redigido em polonês, o que parece reforçar a evidência de que não se destinava à publicação -o que o distingue de relatos semelhantes que povoam a história da antropologia, como "Afrique Fantôme", de Leiris, ou "Tristes Trópicos", de Lévi-Strauss.
Por outro lado, a semelhança com o pouco conhecido "Itinéraires", de A. Métraux, faz recordar que o sucesso de Malinowski também está ligado a um cuidadoso cultivo de certas relações pessoais, bem como a uma personalidade ávida por sucesso e reconhecimento. No entanto, para além destes pontos, o nome de Métraux ressoa em função do que Pierre Clastres relata ter dele ouvido, que uma sociedade tem que estar já meio apodrecida para poder ser estudada.
Pois, para um leitor dos "Argonautas", a frequência das referências a "brancos", "mestiços", missionários , comerciantes, criados, guardas, presídios, correio, sífilis, gonorréia, é chocante. Como é chocante a tristeza que permeia o texto: aqui os trópicos parecem de fato tristes e têm o poder de amedrontar o autor. Não se trata da má consciência que assombra o etnógrafo, mas de uma irritante mescla de preocupação consigo mesmo (que chega ao narcisismo e à hipocondria) e preconceito em relação aos outros (que por vezes chega à violência).
O mais chocante, pois, não é a presença da sexualidade do pesquisador ou dos acessos de raiva contra os nativos, que fizeram -injustamente, aliás, já que ocupam pouquíssimo espaço- a fama do diário e que em parte explicam sua publicação e tradução. O que choca, por exemplo, é a dificuldade de saber onde se encontra nesse relato a famosa "observação participante", que sugere que podemos (quase) agir como "nativos", ou mesmo pensar e sentir como eles.
Em diversas passagens, Malinowski explica por que escreve o diário: para se controlar, para manter a sanidade, para trabalhar enfim. Em certo sentido, diário pessoal e diário etnográfico se opõem, e não é difícil perceber que o primeiro rende mais quando o autor fica paralisado frente ao segundo. A questão que permanece é por que se publica, e se traduz, este diário. Além de seu (falso) sensacionalismo, isso se deve possivelmente a esse gosto, tão ocidental e moderno, em saber dos outros o que supostamente apenas eles sabem. Gosto que se encontra na raiz da própria antropologia e que faz crer que, quando alguém fala consigo mesmo, é mais sincero do que quando se dirige a outrem. É esse sentimento que produz a crença de que o diário é mais verdadeiro que os livros de Malinowski, o que foi posto em questão pela recente publicação das cartas escritas para sua futura mulher no momento em que redigia o diário.
Afinal, como disse Guimarães Rosa, "redigir honesto um diário seria como deixar de chupar no quente cigarro, a fim de poder recolher-lhe inteira a cinza".
Márcio Goldman é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Razão e Diferença - Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl" (Grypho/UFRJ).

Folha de São Paulo

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