segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

DESCONVERSA


As diferentes tarefas do crítico
Antonio Candido
PREFÁCIO

Quando Walnice Nogueira Galvão prestou concurso para o cargo de professora titular de teoria literária e literatura comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, eu, já aposentado, fiz parte da banca examinadora. Tive então a oportunidade de dizer, adaptando uma frase famosa de Juscelino Kubitschek, que Deus me poupou o sentimento da inveja, salvo quando esta é uma forma de admiração pelo trabalho melhor dos outros. Assim, quando leio certos estudos de alta qualidade, lamento não os ter escrito, e foi o que se deu depois da leitura de um admirável de Walnice sobre "Meu Tio o Iauaretê", de Guimarães Rosa, que me parece um dos momentos mais bem realizados da crítica brasileira. Para mim, é o exemplo perfeito do que o nosso trabalho pode ter de mais satisfatório, porque, fundindo saber e intuição, reúne a pesquisa erudita à percepção analítica mais penetrante, transfigurando o texto na medida em que o desvenda por meio de uma escrita certeira.
As qualidades condensadas nesse ensaio se encontram em toda a produção de Walnice, que vai do levantamento paciente e minucioso de "No Calor da Hora" (sua tese de livre-docência), ou do rigor incansável que esgota o assunto na edição crítica de "Os Sertões", até as engenhosas conjeturas críticas da tese de doutorado ("As Formas do Falso") e tantos ensaios reunidos sob títulos despretensiosos (como "Saco de Gatos"). Ela é uma estudiosa tenaz e obstinada, que não se satisfaz com os achados da sensibilidade e da inteligência, mas procura a cada passo inseri-los na verificação, na comprovação, na demonstração trabalhosa, que parece não obstante ao leitor conclusão leve e espontânea. Um conhecimento seguro expresso com a estratégia da elegância.
Essa firmeza com flexibilidade se encontra no presente livro, que mostra além disso a versatilidade da autora. Nem todos os críticos são versáteis, e alguns se caracterizam por aplicar metros invariáveis com os quais medem os textos, rejeitando os que ultrapassam ou não alcançam a medida. José Veríssimo foi um pouco assim, e assim foi o Alceu Amoroso Lima dos anos de 1930. Mas como a obra literária é "ondulante e vária", são mais universais os capazes de esposar da maneira mais ampla possível a variedade infinita dos textos. É o caso de Walnice, como este livro comprova.
"Desconversa" parece uma demonstração das diferentes tarefas do crítico, e por esse lado é uma verdadeira lição. Aqui, tanto o leitor desinteressado quanto o profissional aprendiz podem entrar em contato com diversos aspectos do nosso trabalho: levantamento, demonstração por meio de trechos escolhidos, estudo de gênero, análise temática, investigação sobre a linguagem de autor, comparação, interpretação e até política cultural. Ao abrir o leque de suas capacidades, Walnice vai assumindo os diferentes papéis que integram a personalidade intelectual do crítico, e o faz por meio de ensaios mais simples e ensaios mais complexos.
Neste livro, ensaios comparativamente mais simples são, por exemplo, os que traçam panoramas, como "As Falas, os Silêncios", ou os que focalizam certo tipo de personagem: "Forasteiros", sobre estrangeiros na ficção brasileira, ou "As Mandonas nos Textos", que, por meio de trechos escolhidos, apresenta mulheres fortes na ficção e fora dela. Neste último, o discernimento de Walnice aparece na visão inesperada de um dos personagens mais líricos da nossa literatura: "E que o mel de Iracema não iluda o leitor; Lovelace de tanga, é ela quem droga e possui o titubeante Martim" etc.
O gosto pela crítica, digamos documentada, que aparece nestes dois ensaios, encontra-se também nos três que consagra a Euclides da Cunha, uma de suas especialidades. Inclusive iniciando o leitor em importantes filões desconhecidos da sua correspondência, como as cartas a Reinaldo Porchat e João Luis Alves. Para não falar nas indicações a respeito do rigoroso cuidado com que costurou certas missivas a Oliveira Lima, conhecidas por fragmentos ou má reconstituição. Essa faina levou-a a escrever "À Margem da Carta", um dos três ensaios referidos, de muito interesse para o estudo do gênero epistolar.
Escrito de tipo mais complexo é "Uma Cidade, Dois Autores", que sugere como é possível compreender aspectos essenciais de um autor por meio do estudo do ambiente onde viveu e sobre o qual escreveu. No caso, Machado de Assis e Lima Barreto em relação ao Rio de Janeiro. Com segurança, Walnice procede a uma análise diferencial, mostrando o que têm de diverso sobre a base comum das afinidades, no quadro da cidade que amaram e souberam transpor para as suas criações.
Um texto como este abre o caminho para aqueles que lhe permitem demonstrar o mais fino da sua capacidade de investigação e reflexão -como "Modernismo: Intertextos", brilhante análise comparativa que ilumina textos de Gonçalves Dias, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; ou "Demiurgos", onde o escritor é visto, menos segundo o que registra do que segundo o que cria. No caso, trata-se de Jorge Luis Borges e Clarice Lispector, cujas obras refinadas e essenciais requerem leitura em profundidade, como a que faz Walnice com sensibilidade e penetração.
No ensaio "Heteronímia em Guimarães Rosa" e "Metáforas Náuticas" (também sobre Rosa) ela se move em esferas mais raras do nosso trabalho, aquelas onde o crítico tem, ele próprio, alguma coisa de criador. O primeiro é um estudo engenhoso e original sobre os pseudônimos (bastante provincianos, digo eu) do grande escritor quando faz poesia, o que leva a sugerir certa relação, nele, entre o prosador (assumido) e o poeta (envergonhado, diz Walnice). "No fundo do cidadão bem-sucedido, do narrador aclamado, haveria um (uns) poeta(s) irrealizado(s)..." O segundo ensaio, talvez o mais brilhante do livro, é magistral e mostra uma bela aliança entre a percepção linguística e sua aplicação ao estudo da língua literária, com exemplos que são verdadeiras descobertas a respeito da invenção de Guimarães Rosa, no âmbito do vocabulário e no âmbito da frase, elucidando a sua capacidade de refazer a linguagem. Ensaios como este são boas amostras do tom de Walnice, que pressupõe paciência infinita, denodo de investigação e intuições certeiras, alimentadas por uma enorme cultura.
É oportuno que ela tenha fechado o livro com um estudo alentado e desalentador sobre a má política cultural do Brasil no exterior, numa demonstração de que, nela, a crítica e a professora se completam pela intelectual consciente da função social da cultura. Baseada na observação direta, em documentação expressiva e muita lucidez, ela expõe a situação calamitosa das atividades oficiais brasileiras nos países estrangeiros e o lugar insignificante que a nossa produção ocupa neles. Ao mesmo tempo, informa sobre a atitude completamente diversa de Portugal, que leva a sério o problema e organizou um sistema poderoso e eficiente que assegura a sua presença fora.
Devo dizer que o estudo de Walnice me encheu de melancolia, pois, no fim de 1961 e começo de 1962, tempo do governo João Goulart, fui à França por encargo do Ministério das Relações Exteriores fazer uma visita aos leitorados e verifiquei que a situação era pouco mais ou menos a que Walnice expõe 36 anos depois. Parece que estamos condenados à exclusão cultural e ainda não passamos, neste terreno, de apêndice ocasional da América espanhola ou de Portugal.
Finalmente, não posso deixar de exprimir a alegria que tenho quando vejo a qualidade dos estudiosos de literatura que tive a sorte de ter, primeiro como alunos, depois como orientandos e, alguns deles, como colaboradores na Universidade de São Paulo. Essa sorte me ligou a um número ponderável de moças e rapazes, hoje madurões, de um nível que raramente se encontra nas instituições de ensino superior. O livro de Walnice, antiga aluna e companheira de trabalho, é mais uma prova disso.
Antonio Candido é crítico literário e autor, entre outros, de "Formação da Literatura Brasileira". Este texto é o prefácio ao livro "Desconversa", com lançamento previsto para março próximo.

Folha de São Paulo

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