Inventário do pensamento teatral
Maria Sílvia Betti
MARVIN CARLSON
O livro de Carlson constitui-se num oportuno estímulo no sentido de recuperar, para o debate sobre a arte teatral, todo um riquíssimo veio analítico e interpretativo de elaborações críticas produzido ao longo da história do teatro no Ocidente.
No percurso teórico abrangido -de Aristóteles até as teorias pós-estruturalistas e feministas dos anos 80-, Carlson manipula confortável e fluentemente um imenso número de trabalhos e fontes de referência, acompanhando o desenvolvimento paralelo de estudos gerais de áreas como a poesia, a teoria literária e a história.
Via de regra sua abordagem evita explicitar visões pessoais, parecendo querer ostentar uma suposta neutralidade. É inevitável, porém, que em alguns trechos essa intenção fique involuntariamente comprometida em função do fato de o próprio discurso construir-se a partir de uma perspectiva em parte européia e em parte anglo-americana. É o que ocorre, por exemplo, no tocante à ausência praticamente total de menções a quaisquer formas de reflexão crítica pertinentes ao universo cultural pós-colonial ou ao Terceiro Mundo. Carlson contenta-se, a esse respeito, com a referência ao "latino-americano" Augusto Boal, centrada na menção a seu "Teatro do Oprimido" e às teorizações relativas ao Sistema Coringa, sem quaisquer outras referências a trabalhos posteriores do autor ou à maneira como ele leva adiante ou reformula muitos dos conceitos que elaborara nesses trabalhos.
Sob a perspectiva dos blocos temáticos abordados, o ponto de partida é o estabelecimento de um roteiro geral das formulações desenvolvidas no tocante à tragédia no interior da tradição crítica européia. A ampla e diversificada gama de reflexões desenvolvidas no século 20 é assinalada, em seguida, mediante o levantamento das reflexões registradas no interior de campos tão diversos como os da psicanálise (Freud, Jung), da filosofia (Jaspers, Husserl, Sartre), da literatura (Albert Camus), da crítica literária (George Steiner, Roland Barthes), da antropologia (grupo de Cambridge), da crítica política e sociológica (Lukács) e da própria dramaturgia (Tchekhov, Shaw, Wilde, Dürrenmatt, Eugene O'Neill, Brecht).
Mais de um terço do livro é dedicado a esse levantamento de teorias e propostas produzidas no século 20. O grande fio condutor, neste caso, é a abordagem das concepções de Stanislavski, Brecht e Artaud, que Carlson considera os teóricos fundamentais do século. O trabalho de Stanislavski é apresentado com ênfase na ressonância obtida por seu método de trabalho na América, especialmente após a publicação de "A Preparação do Ator", sob a égide de seus amigos Norman e Elizabeth Hapgood, em 1936, dois anos antes da publicação da versão final do texto na Rússia.
Brecht é apresentado como "o teórico que mais se ocupou da dimensão social e política da arte". A visão dos escritos teóricos brechtianos é apresentada a partir de três textos básicos: as notas introdutórias à ópera "Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny", o "Pequeno Organon", que considera o mais consagrado resumo da teoria brechtiana, e os "Diálogos Sobre o Comércio de Latão". A complexidade das concepções brechtianas é registrada, paralelamente, a partir da controvérsia com Lukács nos anos de 1937-38 no jornal "Das Wort", editado em Moscou como fórum internacional antifascista e como campo de debate das novas teorias literárias soviéticas.
A abordagem das concepções de Antonin Artaud procura ressaltar, desde o início, o teor de diversidade que as formulações deste viriam a desempenhar quanto às brechtianas. Para Carlson, Brecht visa essencialmente ao raciocínio e à análise, enquanto Artaud encara o pensamento discursivo como barreira para a liberação do espírito, "aprisionado às cadeias do corpo".
Observando a radicalização do pensamento do autor após 1936 -precisamente quando este desenvolve um trabalho mais fortemente voltado para o corpo como elemento expressivo e erradica a palavra como centro irradiador de sentido-, Carlson a seguir rastreia toda uma descendência teatral e teórica de base artaudiana, passando por Grotowsky (defensor da idéia do ator arquetípico, com ênfase sobre a relação espectador-espetáculo), por Arrabal (ligado à realização do teatro-pânico, vinculado, paralelamente, a Jarry, ao dadaísmo e ao surrealismo), por Tadeusz Kantor (com a idéia de "teatro autônomo" ou de "teatro zero", despreocupado em sugerir interpretações ou simbolismos) e por Peter Brook (que postula a primazia do diretor e vê em Artaud uma forma "sacra" de realização teatral); no que se refere a grupos teatrais, passa pelo Living Theatre (combinando a idéia de luta contra a opressão política com a do impacto dramático prescrito por Artaud como tentativa de libertação do indivíduo) e pelo American Theatre of the Ridiculous (fascinado com a idéia da teatralidade sob o prisma da perversão).
O segmento final do livro, intitulado "O Século 20 a partir de 1980", procura rastrear as principais diretrizes de discussão do teatro em vertentes teóricas diversificadas. Em termos sucintos, Carlson procura delinear as características principais do universo teórico sob a forma de inventário de suas principais frentes: a da pesquisa semiológica (Pavis e Erika Fichter-Lichte), a da teoria da recepção (Hans Robert Jauss) e a da perspectiva desconstrutivista (Jean Alter).
O vasto e complexo inventário das "Teorias do Teatro" encerra-se com um mapeamento das metodologias de análise mais recentes e mais diretamente ideológicas: aí se situam o materialismo cultural britânico, no qual se destaca Raymond Williams, o "new historicism" (de Stephen Greenblatt e Stephen Mullaney), rico em abordagens de Shakespeare e em análises do papel do teatro dentro das relações de poder, e as diversas vertentes do pensamento crítico feminista, cuja inserção foi feita na edição revista e ampliada que serviu de base ao texto publicado em português.
Em tempos como os nossos, em que a crise do capitalismo e das utopias produz a inconsistência econômica e a fragmentação cultural, o livro de Carlson é sem dúvida um excelente estímulo ao debate acerca de todas as contribuições que o teatro tem apresentado ao debate de idéias de nosso tempo.
Maria Sílvia Betti é professora de teatro no Departamento de Letras Modernas da USP e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp)
Folha de São Paulo
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