sábado, 31 de janeiro de 2009

A POESIA DE BRECHT E A HISTÓRIA - LEANDRO KONDER


O fácil tão difícil de se fazer

Marcus Mazzari
LEANDRO KONDER

Entre as grandes obras líricas do século 20, a de Bertolt Brecht, nascido em 1898, é possivelmente aquela que com mais intensidade se defrontou com a história dessa "era dos extremos". A Primeira Guerra Mundial, marcando sua estréia literária, inspira-lhe o pacifismo que tomou forma antológica na balada expressionista "Lenda do Soldado Morto", a qual lhe valeu o honroso 5º lugar numa "lista negra" preparada em 1923 pelos adeptos de Hitler. Ao acirramento dos conflitos ideológicos, no decorrer dos anos 20, sua poesia reage com a adesão crescente ao marxismo e, em consequência, ao movimento comunista. Depois, ao longo de 12 anos, têm-se os poemas que tematizam as angústias e esperanças do exilado obcecado com a resistência ao nazismo e que acompanha, de maneira exasperada, os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial; e, por fim, o retorno em 1948 à Alemanha dividida, seguido do engajamento na construção de um estado socialista.
Essas as experiências históricas moduladas em sons e ritmos, plasmadas em imagens de força inexaurível, de tal forma que Adorno, no mais votando tão pouca simpatia ao homem Brecht, menciona o seu nome, na "conferência sobre lírica e sociedade", como sendo o do "lírico contemplado com a integridade da linguagem, sem que para isso tenha rendido tributo ao esotérico". Poemas mais longos, de cunho narrativo, como o dedicado "Aos que Vão Nascer" ou a "Lao-Tsé a Caminho da Emigração", ilustram esse juízo, mas também aqueles poemas em que sentimento e reflexão (que em Brecht jamais se separam) adensam-se na mesma proporção em que a linguagem se despoja, como em "Percepção", de 1949: "Quando eu retornei/ O meu cabelo ainda não estava grisalho/ Então fiquei contente.// Os esforços das montanhas ficam atrás de nós/ Diante de nós ficam os esforços das planícies".
Portanto, a proposta de enfocar a poesia de Brecht e a história estará adentrando em terreno dos mais fecundos, em vista tanto de uma obra que se universalizou pela sua dimensão estética como de acontecimentos vivenciados com paixão no mundo todo. Consciente do risco de rebaixar a poesia brechtiana à condição de mero documento da história, Leandro Konder postula de imediato a necessidade de atentar para a especificidade dessa linguagem, "a força das suas imagens, de seus recursos rítmicos, da sua sonoridade, das suas metáforas". Isso o leva a apresentar traduções próprias dos versos citados (uma vez que traduzir significa também interpretar), mas seguidas do texto original, para que o leitor possa acompanhar as opções do tradutor e, eventualmente, "divergir" de suas propostas.
Se algumas opções passíveis de discussão podem justificar-se pelos critérios assumidos, há um ou outro "cochilo" indiscutível: a palavra "Adler", por exemplo, na estrofe abaixo (que faz parte da peça didática "Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas") é traduzida por "nobres", o que parece decorrer da semelhança com o adjetivo "adlig" e o substantivo "Adel", nobreza; o correto, porém, é "águias", o que também faz mais sentido no contexto de analogias zoomórficas: "Já tivemos muitos amos:/ Amos-tigres, amos-hienas/ Águias e porcos-dezenas!/ E a todos alimentamos./ Seus coturnos? Quem viu um/ Viu todos... Não comparamos./ Não queremos novos amos: Não queremos amo algum!".
Caberia observar aqui que Konder recorre não poucas vezes a versos inseridos nas peças teatrais. Acontece, porém, que não é nesse contexto que a expressão lírica alcança suas maiores realizações. Pois atrelada mais diretamente ao projeto de conscientização política, em especial nas peças didáticas, a poesia brechtiana perde o tom reflexivo e contido que atravessa os seus grandes símbolos, alija-se muitas vezes das qualidades estéticas que Konder enfatiza na "Introdução" e se propõe a considerar em sua especificidade. Concretizar essa proposta implicaria certo aprofundamento crítico na estrutura linguística dos poemas escolhidos (e que fosse mediante as opções da tradução), a elucidação, ainda que parcial, dos procedimentos que criam poesia tão forte e complexa a partir de meios aparentemente tão simples (não teríamos aqui, também, "o fácil tão difícil de se fazer", como o poeta diz no "elogio do comunismo"?).
A "integridade" lírica de Brecht se evidenciaria numa análise mais detida de um poema como "Tudo Se Transforma", comentado apenas em linhas gerais; ou então -rompendo a relação direta com a história- "Recordação de Marie A.", que Brecht escreveu aos 22 anos e em sua dialética de lembrança e esquecimento (o rosto da amada esgarçado na memória e a evocação intensa de uma nuvem que "floresceu" apenas por breve instante) é considerado um dos mais belos poemas de amor em língua alemã. A análise imanente poderia ainda revelar ao leitor brasileiro algo mais da canção "Jenny dos Piratas", que Ernst Bloch não se cansava de admirar, enxergando nela, como relata o próprio Konder, uma mescla de "ambiente de alegre restaurante ordinário com algo do clima de uma solene catedral", mescla na qual "os temas jazzísticos jocosos combinam com um "ritmo em quatro tempos, que se transforma -tão facilmente- em marcha fúnebre'±".
Infelizmente, porém, o estudo de Konder esquece-se muitas vezes da proposta explicitada de início, limitando-se a comentários que convertem a lírica brechtiana em notas de rodapé de uma história de vida em si admirável (a despeito de suas contradições), pois marcada pela solidariedade incondicional com os "de baixo" e empenhada ao mesmo tempo na construção de um mundo em que se possa ir tão longe -como formulado no tom elegíaco do poema "Aos que Vão Nascer"-, "a ponto de o homem ser um apoio para o próprio homem".
Contudo, mesmo sem aprofundar-se na dimensão estética da lírica de Brecht, o livro de Konder não deixa de ser uma boa introdução (sobretudo para um público jovem) ao tema explicitado no título. Mais ainda: contextualizando essa poesia nos embates de seu tempo, Konder contrapõe-se a muitas simplificações grosseiras que escamoteiam as circunstâncias históricas que levaram milhares de pessoas a engajar-se na causa comunista. Essa abordagem da trajetória de Brecht busca então sua síntese final na perspectiva esboçada no poema "Perguntas de um Trabalhador que Lê". Assim o autor incorpora ao próprio estudo a postura indagante, inconformista, sempre lúcida, que atravessa toda a obra brechtiana, manifestando-se por fim no tom melancolicamente irônico das "Elegias de Buckow" (1953), que desvendam o descompasso crescente entre as aspirações acalentadas ao longo de toda uma existência e os rumos tomados pelo "primeiro Estado alemão dos operários e camponeses", como dizia o discurso oficial.
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP.

Folha de São Paulo

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