A moderação cética
Jessé De Souza
RENATO LESSA
Renato Lessa convida o leitor a uma experiência ao mesmo tempo interessante e algo inusitada. Faz uma releitura da tradição cética helênica, de modo a torná-la operante e acessível à mente moderna. O primeiro capítulo do livro é dedicado a uma introdução histórica e analítica dos argumentos originais do ceticismo pirrônico. Os capítulos subsequentes apresentam o ponto forte do livro: uma provocativa recepção do ceticismo clássico a fim de transformá-lo num remédio para certas patologias modernas.
Lessa procura, logo de início, desfazer alguns mal-entendidos. O mais importante deles talvez seja o da recepção do ceticismo como uma filosofia meramente negativa. Nesse contexto é ressaltada somente a crítica a toda forma de dogmatismo, tomado como universalização infundada de juízos privados e não-evidentes. Dogmatismo, nesta acepção, abrange tanto a esfera cognitiva em sentido estrito quanto a esfera moral e prática. Está em jogo aqui não só a crítica dos postulados que admitem uma verdade consensual e objetiva, precisamente como afastamento do hábito e do senso comum, como também a crítica à representação de um mundo social estruturado por uma definição axiomática do bem. A crítica ao dogmatismo, apesar de central, não esgota o ceticismo, pois, segundo Lessa, é preciso explorar também o seu potencial construtivo e inovador.
É na defesa deste ponto que o autor mostra suas melhores virtudes. Defende uma visão contemporânea do ceticismo como alternativa viável para se pensar a gênese e a dinâmica da sociabilidade e da política modernas.
A recusa cética ao dogmatismo não significa recusa à vida. Ao contrário, a negação de verdades dogmáticas vai de par com aceitação e afirmação da vida cotidiana. Uma proposição não-evidente torna-se verdadeira se for consensual no mundo ordinário. O único critério de verdade para o cético é, portanto, a utilidade. Apesar desta cumplicidade com o homem comum, a imersão do cético no cotidiano não é a mesma daquele. Existem, com certeza, uma adesão automática, posto que não refletida, e uma adesão sentimental que são comuns aos dois. O cético, no entanto, distingue-se do homem comum por uma "adesão moderada". Este aspecto é fundamental. A moderação é uma espécie de distanciamento privado produzido pela distância racional ("detachment") dos sentimentos. Os sentimentos são compartilhados, mas não a racionalidade. Fundamental aqui é a idéia de que o distanciamento não produz efeitos públicos ou práticos. Nesse sentido, "por fora" são todos iguais, tanto os céticos quanto os homens comuns. A diferença do cético se dá na introspecção, no domínio privado, o qual é caracterizado por variedade simbólica não compartilhada nem pelo dogmático nem pelo homem comum.
Temos aqui já um tema eminentemente moderno. Com uma interpretação original e ousada de vários pensadores importantes para a modernidade, como Montaigne, Mandeville, Bayle, Hume, Fergusson e Burke, Lessa procura mostrar como cada um contribuiu para uma versão contemporânea da tradição cética. Nesta variante moderna do ceticismo temos, além do anti-racionalismo clássico, o antietnocentrismo (Montaigne) e, especialmente, a ênfase no aspecto da ação.
Neste contexto, ganha todo sentido a máxima mandevilliana dos vícios privados levando a virtudes públicas. Pela distinção entre motivos individuais e resultados agregados, pode-se ter uma reflexão social desprovida de finalidades éticas últimas. A ação humana particular pode obedecer mais ao vício que à virtude e, precisamente por conta disso, mostrar-se útil para o todo. Para Lessa, Mandeville inaugura a possibilidade da ação social e política num mundo social de bases céticas. Existe o elogio das faculdades humanas ordinárias, os homens possuem todos as mesmas inclinações e paixões, não existe apelo a axiomas morais com fundamento na razão, uma visão da experiência humana como radicalmente particular etc.
O quarto e penúltimo texto trata da relação entre ceticismo e teoria política contemporânea. A aproximação defendida por Lessa é aquela entre ceticismo e liberalismo. À primeira vista, com boas razões. Afinal, tanto os céticos quanto os liberais recusam princípios últimos que definam um bem axiomático, válido para todos. Desde Mill, o qual, como enfatiza Lessa, defendia a proteção das minorias como forma de manter aberto o campo de experimentação social e humana, até os liberais modernos, como Dworkin, Rawls ou Habermas, temos a primazia do procedimento sobre os valores substanciais.
A distinção entre procedimento e valores substantivos é problemática. Lessa está perfeitamente consciente disso. É de se lamentar, no entanto, que o autor não retire todas as consequências desse fato. É apenas na última página desse capítulo que se ocupa dessas questões, sem desenvolvê-las, o que teria enriquecido enormemente o argumento do autor. Assim, se Lessa reconhece que a ênfase no procedimento já implica adesão a certos valores e até a uma cultura específica, como os melhores liberais reconhecem, dentre eles o próprio Dworkin, como fica a ênfase cética no antietnocentrismo? Como garantir a multiplicidade simbólica e a equipolência entre valores que são, segundo o próprio Lessa, os fundamentos da atitude cética? Para Charles Taylor, por exemplo, o liberalismo transforma subrepticiamente uma posição particular em universal. Para Michel Sandel, ele representa uma forma bem particular, nomeadamente "americana" de justiça, com sua ênfase nas revisões judiciais às expensas do processo político ordinário.
Estamos, é claro, no meio do debate entre liberais e comunitaristas sobre as possibilidades e limites do individualismo. Teria sido interessante perceber uma possível contribuição cética a esse debate, com um desenvolvimento mais consequente da posição do autor neste ponto. Esta crítica, de qualquer modo, não retira a extrema relevância e oportunidade do livro. É um trabalho que propicia ao leitor, como poucos, a experiência de ver em ação uma reflexão estimulante e corajosa de ângulos insuspeitos. Renato Lessa não fala sobre o veneno pirrônico, ele o exercita.
Jessé de Souza é professor de sociologia da Universidade de Brasília (Unb).
Folha de São Paulo
Jessé De Souza
RENATO LESSA
Renato Lessa convida o leitor a uma experiência ao mesmo tempo interessante e algo inusitada. Faz uma releitura da tradição cética helênica, de modo a torná-la operante e acessível à mente moderna. O primeiro capítulo do livro é dedicado a uma introdução histórica e analítica dos argumentos originais do ceticismo pirrônico. Os capítulos subsequentes apresentam o ponto forte do livro: uma provocativa recepção do ceticismo clássico a fim de transformá-lo num remédio para certas patologias modernas.
Lessa procura, logo de início, desfazer alguns mal-entendidos. O mais importante deles talvez seja o da recepção do ceticismo como uma filosofia meramente negativa. Nesse contexto é ressaltada somente a crítica a toda forma de dogmatismo, tomado como universalização infundada de juízos privados e não-evidentes. Dogmatismo, nesta acepção, abrange tanto a esfera cognitiva em sentido estrito quanto a esfera moral e prática. Está em jogo aqui não só a crítica dos postulados que admitem uma verdade consensual e objetiva, precisamente como afastamento do hábito e do senso comum, como também a crítica à representação de um mundo social estruturado por uma definição axiomática do bem. A crítica ao dogmatismo, apesar de central, não esgota o ceticismo, pois, segundo Lessa, é preciso explorar também o seu potencial construtivo e inovador.
É na defesa deste ponto que o autor mostra suas melhores virtudes. Defende uma visão contemporânea do ceticismo como alternativa viável para se pensar a gênese e a dinâmica da sociabilidade e da política modernas.
A recusa cética ao dogmatismo não significa recusa à vida. Ao contrário, a negação de verdades dogmáticas vai de par com aceitação e afirmação da vida cotidiana. Uma proposição não-evidente torna-se verdadeira se for consensual no mundo ordinário. O único critério de verdade para o cético é, portanto, a utilidade. Apesar desta cumplicidade com o homem comum, a imersão do cético no cotidiano não é a mesma daquele. Existem, com certeza, uma adesão automática, posto que não refletida, e uma adesão sentimental que são comuns aos dois. O cético, no entanto, distingue-se do homem comum por uma "adesão moderada". Este aspecto é fundamental. A moderação é uma espécie de distanciamento privado produzido pela distância racional ("detachment") dos sentimentos. Os sentimentos são compartilhados, mas não a racionalidade. Fundamental aqui é a idéia de que o distanciamento não produz efeitos públicos ou práticos. Nesse sentido, "por fora" são todos iguais, tanto os céticos quanto os homens comuns. A diferença do cético se dá na introspecção, no domínio privado, o qual é caracterizado por variedade simbólica não compartilhada nem pelo dogmático nem pelo homem comum.
Temos aqui já um tema eminentemente moderno. Com uma interpretação original e ousada de vários pensadores importantes para a modernidade, como Montaigne, Mandeville, Bayle, Hume, Fergusson e Burke, Lessa procura mostrar como cada um contribuiu para uma versão contemporânea da tradição cética. Nesta variante moderna do ceticismo temos, além do anti-racionalismo clássico, o antietnocentrismo (Montaigne) e, especialmente, a ênfase no aspecto da ação.
Neste contexto, ganha todo sentido a máxima mandevilliana dos vícios privados levando a virtudes públicas. Pela distinção entre motivos individuais e resultados agregados, pode-se ter uma reflexão social desprovida de finalidades éticas últimas. A ação humana particular pode obedecer mais ao vício que à virtude e, precisamente por conta disso, mostrar-se útil para o todo. Para Lessa, Mandeville inaugura a possibilidade da ação social e política num mundo social de bases céticas. Existe o elogio das faculdades humanas ordinárias, os homens possuem todos as mesmas inclinações e paixões, não existe apelo a axiomas morais com fundamento na razão, uma visão da experiência humana como radicalmente particular etc.
O quarto e penúltimo texto trata da relação entre ceticismo e teoria política contemporânea. A aproximação defendida por Lessa é aquela entre ceticismo e liberalismo. À primeira vista, com boas razões. Afinal, tanto os céticos quanto os liberais recusam princípios últimos que definam um bem axiomático, válido para todos. Desde Mill, o qual, como enfatiza Lessa, defendia a proteção das minorias como forma de manter aberto o campo de experimentação social e humana, até os liberais modernos, como Dworkin, Rawls ou Habermas, temos a primazia do procedimento sobre os valores substanciais.
A distinção entre procedimento e valores substantivos é problemática. Lessa está perfeitamente consciente disso. É de se lamentar, no entanto, que o autor não retire todas as consequências desse fato. É apenas na última página desse capítulo que se ocupa dessas questões, sem desenvolvê-las, o que teria enriquecido enormemente o argumento do autor. Assim, se Lessa reconhece que a ênfase no procedimento já implica adesão a certos valores e até a uma cultura específica, como os melhores liberais reconhecem, dentre eles o próprio Dworkin, como fica a ênfase cética no antietnocentrismo? Como garantir a multiplicidade simbólica e a equipolência entre valores que são, segundo o próprio Lessa, os fundamentos da atitude cética? Para Charles Taylor, por exemplo, o liberalismo transforma subrepticiamente uma posição particular em universal. Para Michel Sandel, ele representa uma forma bem particular, nomeadamente "americana" de justiça, com sua ênfase nas revisões judiciais às expensas do processo político ordinário.
Estamos, é claro, no meio do debate entre liberais e comunitaristas sobre as possibilidades e limites do individualismo. Teria sido interessante perceber uma possível contribuição cética a esse debate, com um desenvolvimento mais consequente da posição do autor neste ponto. Esta crítica, de qualquer modo, não retira a extrema relevância e oportunidade do livro. É um trabalho que propicia ao leitor, como poucos, a experiência de ver em ação uma reflexão estimulante e corajosa de ângulos insuspeitos. Renato Lessa não fala sobre o veneno pirrônico, ele o exercita.
Jessé de Souza é professor de sociologia da Universidade de Brasília (Unb).
Folha de São Paulo
Olá
ResponderExcluirGostei muito do seu blog
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achei interessante o livro!dá uma lida/comentada no meu blog?
ResponderExcluirOpa
ResponderExcluirobrigado pelo comentário
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Vlw