sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O DEFENSOR DA PAZ

O poder do papa

Floriano Jonas Cesar

MARCÍLIO DE PÁDUA

Publicado em 1324, este é sem dúvida o trabalho mais interessante de Marsílio de Pádua (1280-1343). Penso primeiro nas passagens, dispersas, sobre a situação italiana no início do século 14: um quadro tomado por conflitos e decadência, que Marsílio atribui à interferência do papa no governo do imperador sobre a Itália. Há também aquelas sobre a corrupção da igreja, vista como resultado da centralização empreendida durante séculos pelo papado. São como imagens de uma época cuja mentalidade e formas de organização social já nos escapam em grande parte.
Diria que "O Defensor da Paz" é um livro de momento, escrito com um olho no conflito entre o papa João 22 e o imperador eleito Luís de Baviera. Mas seria um erro imaginar que não veja nada além. A primeira condenação pela igreja se apressou exatamente em enquadrá-lo no cenário daquele conflito. O enquadramento é bem suspeito, pois tira a força do livro. A recusa de João 22 em reconhecer a eleição de Luís de Baviera como imperador é vista por Marsílio de uma perspectiva bem mais abrangente, como mais um capítulo numa história, então quase milenar, na qual os papas forjaram seu lugar no Ocidente cristão. Insere-se na verdade num grupo de eventos que mostram estar o papado interessado em submeter todo governante, e não apenas o imperador.
Mais do que o conflito imediato entre João e Luís, o alvo de "O Defensor" era os fundamentos que conferiam legitimidade ao papel político e religioso desempenhado pelo papado e às suas novas pretensões. Seu grande feito foi talvez ter posto abaixo os pilares sobre os quais muita gente no fim do século 13 e início do 14 imaginava que o mundo cristão devesse ser governado.
Não me refiro apenas a gente do papa, como Egídio Romano e seu "Sobre o Poder Eclesiástico", segundo o qual todo poder e propriedade legítimos existem somente enquanto concessão do pontífice. Falo também do moderado João Quidort e seu "Sobre o Poder Régio e Papal", que defende o equilíbrio de poderes e a correção mútua entre rei e papa. Ao contrário de Egídio e Quidort, Marsílio sustenta uma forma de organização social em que nenhum sacerdote, o papa inclusive, pode invocar sua condição para atribuir-se ou subtrair-se à autoridade política.
O impacto de tal ponto de vista talvez nos escape, porque tarefas como legislar nada têm a ver entre nós com a autoridade religiosa enquanto tal. Mas a situação no início do século 14 é outra. Fico apenas em "O Defensor", que podemos ler como uma descrição in loco de sua própria época. Muito do poder que o papa se atribuía é por ele referido. Cito o de confirmar no cargo, corrigir e mesmo depor imperador e reis; de chamar para si o julgamento de crime ou disputa, religiosa ou civil; de estabelecer e revogar leis. Eram atribuições que se apoiavam em diversos argumentos, dentre os quais Marsílio destaca (e critica) a doutrina segundo a qual o papa ocupa no mundo o lugar de Cristo. É tal posição que o papa continua a invocar no início do século 14, agora para concluir que governantes e súditos, clérigos e leigos, indivíduos ou grupos estão submetidos à sua jurisdição.
Marsílio não nega haver um lugar devido à religião na comunidade política. É talvez o que há de particularmente desconcertante em "O Defensor", que se constituiu, mesmo assim, numa das mais incisivas críticas ao papado de que se tem notícia em sua época. Apoiando-se principalmente em Aristóteles e nas Escrituras, mostrou que toda autoridade política está submetida à vontade do conjunto dos cidadãos. Reduziu a quase nada o papado, ao deixar claro que ele é de instituição humana, não divina, e que a suprema jurisdição na igreja pertence ao conjunto dos fiéis.
A agenda político-religiosa do início do século 14 no Ocidente cristão vai assim como que se revelando ao longo de "O Defensor": a emergência da figura do cidadão, a discussão sobre a natureza do domínio sobre bens, a relação entre religião e política etc. Mas é preciso vê-la por meio de um estilo com o qual já não estamos acostumados, sobretudo com o comentário dos textos clássicos, incluindo os religiosos.
Há, no entanto, muita novidade a ser descoberta por trás dessa repetição de obras passadas. Há sobretudo uma maneira de tratar os textos antigos que já perdemos em grande parte. Marsílio cita o que lhe interessa, enfatiza determinados aspectos, acrescenta seu próprio comentário e, quando nos damos conta, estamos diante de pontos de vista inusitados. De nada se suspeita quando, mencionando Aristóteles, Marsílio diz serem a legalidade e o consentimento dos cidadãos as marcas do bom regime político. Afirma logo em seguida ser mais importante o consentimento. Não demora, vem ele dizendo que a lei deve ser aprovada pelos cidadãos, que, de outra forma, não seriam livres. Estariam em tal caso subjugados pelo arbítrio alheio (e não importa se a lei é útil ou prejudicial) e, assim sendo, se revoltariam.
Dessa forma, vemos por terra, como num final inesperado, a idéia de que os cidadãos precisam de tutor, mentalidade tão bem difundida no tempo de Marsílio. E descobrimos ainda como a autodeterminação estava então na ordem do dia.

Floriano Jonas Cesar é doutorando no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

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