terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Africano - J. M. G. Le Clézio

A condição do tempo
Nobel de Literatura em 2008, Le Clézio encara o passado e recria imagem do pai em O Africano

por Itamar Cardin
Editor
[13/01/2009]

A memória é complexa. Apaziguadora, sonante, conclusiva, traiçoeira. Surge de pequenos sentimentos desconexos e esparsos, ganha corpo na aleatória seleção natural de vivências, amadurece como molde dos pequenos atos cotidianos e projeta-se por fim naquilo que é o homem. A memória também se induz como pequeno joguete dos desígnios humanos. Relação complementar e contraditória. O que existe de essência e de absoluto nessa projeção de sombras vistas da caverna?

É partindo dessa conflituosa relação que Jean Marie Gustave Le Clézio, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2008, esmiúça seu passado em O Africano – mais especificamente, no passado de seu pai, o africano cujo título do livro se refere. Como ressaltou a academia sueca ao premiá-lo, o escritor francês possui múltipla formação cultural, tendo já vivido em diversos países e continentes. E durante a infância, Camarões foi sua morada, acompanhando o pai que trabalhava como médico europeu enviado pela Metrópole.

Desse período conturbado e conflitante, Le Clézio guardou um sonho que o acompanhou durante anos, onde a mãe [de pele clara] era negra e responsável por entremear sua ligação com o continente. Foi somente décadas depois, quando o pai se aposentou, deixou a África e voltou a morar com a família na França, que o escritor de fato descobriu: o ‘africano’ na família sempre fora o pai. Assim, surge o livro. Um resgate no tempo para compreender - ou descobrir – esse passado esquecido, esse personagem de caráter tão marcante e tão sublimado pelo filho.

Parte dos louros de O Africano está na própria complexidade do pai, um médico aventureiro e humanista enviado a Camarões após ter fixado residência em três continentes distintos. Jovem e idealista, aprecia por anos seu envolvimento com a África. Mas a 2ª Guerra chega, a mulher precisa se afastar, os filhos nascem distantes, a violência aumenta entre os africanos. Em meio a esse cenário, seus ideais vão tombando. É quando termina a guerra que lhe ocorre uma verdade até então despercebida, segundo o escritor, que definitivamente o endureceria e transformaria no pai tão temido e respeitado: mais do que médico responsável em zelar pela saúde dos camaroneses, ele é um boneco da Metrópole utilizado como agente de controle social.

Se é sonoro o trabalho de reconstrução histórica e psicológica do pai, este não é o único, como o próprio Le Clézio deixa claro no início do livro. “Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças [...], provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós”. As descobertas abrigam-se como num espelho, onde a imagem reconstituída e projetada do pai acaba refletida no próprio escritor.

Nesse aspecto, é fundamental a maneira como o retrato é composto. Le Clézio foge das conclusões precipitadas. Parece sentir que o próprio esquecimento é, sobretudo, uma condenação inconsciente. Por meio desta imparcialidade, o livro se movimenta e fortalece: para resgatar o pai e recompor sua própria memória, o escritor sabe que não deve julgar. A capacidade em entender e interpretar os sofridos sentimentos de seu africano é não só notória como crescente com o transcorrer das páginas, como se a reabilitação com o passado lhe trouxesse mais e mais de uma admirável maturidade emocional.

Contribui para tanto a escrita fluida e sem muitos rodeios, quase elegante em sua objetividade. A simplicidade cai bem a Le Clézio. No entanto, o escritor parece se amedrontar com ela – medo esse tão recorrente na literatura contemporânea – e tenta inúmeras vezes transformar as frases curtas e contidas em construções poéticas e transcendentais. O recurso é recorrente, digno, belo quando em mãos mestras – Juan Rulfo e Graciliano Ramos foram gênios nessa arte. No caso do francês, a tentativa sempre soa equivocada. Aparenta pressa, falta de naturalidade, descuido, revela até certa contradição com o escritor que se enveredou por tão digna busca.

Mas a contradição permanente e sempre pungente é mesmo a do pai, tão bem representada e respeitada – aqui no bom sentido – no livro. Do marido livre ao pai disciplinador, do europeu humanista ao africano imperialista, do jovem realizado ao idoso soturno, a complexidade acompanha-o firme e insólita ao longo de cada página, de cada passagem de sua vida aventurosa. Bonito retrato, grandioso personagem. Faz esquecer por um instante o maniqueísmo hoje reinante.


O Africano
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Por J. M. G. Le Clézio
Cosac & Naify
$ 42
122 págs

Revista Paradoxo

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