quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

COMPUTADORES, MENTES E CONDUTA

Os limites da mente
13/Jun/98
Maria Eunice Gonzales

Uma luz parece ter surgido na infindável controvérsia entre cognitivistas da linha neomecanicista e filósofos preocupados com o estudo da natureza do mental. Essa é a impressão de uma primeira leitura desta instigante obra. Entretanto, uma leitura mais cuidadosa faz desaparecer a tão desejada solução da querela.
Num primeiro momento, seu projeto consiste em desenvolver uma investigação crítica das principais teorias em voga na filosofia da mente e na moderna ciência cognitiva. Na esteira da lúcida metodologia analítica de Ryle e Wittgenstein, os autores procuram rastrear a gênese das dificuldades ilusórias e dos supostos problemas tratados por tais teorias, que resultariam da confusão conceitual dominante nos estudos cientificistas da mente. Demonstrando fluência e domínio, eles traçam uma "geografia lógica" do desenvolvimento dos programas de pesquisa cognitivista sobre a natureza "mecânica" da mente, situando o seu eixo central em torno do problema da relação mente/corpo a partir do tratamento cientificista computacional. Os pontos cardeais dessa geografia correspondem aos quatro temas principais do livro.
O primeiro diz respeito à suposição "de que as ciências físicas descrevem um universo que aparentemente impede a possibilidade do humano". O segundo consiste na discussão sobre a (in)adequação dos modelos computacionais propostos na ciência cognitiva como modelos explicativos da atividade mental inteligente. O terceiro trata da proposta de uma psicologia científica que considera a conduta humana como o produto (externo) da atividade mental (interna) modelável, em princípio, pelo computador. Por fim, focaliza-se o papel da linguagem no estudo cognitivista do mental, que ignora "a relevância do fato de que a linguagem é uma instituição social".
Tal projeto crítico não tem como meta a análise do trabalho técnico das ciências computacionais ou da engenharia de "software/hardware" da inteligência artificial, uma vez que não há qualquer problema filosófico a ser tratado aí. Os problemas surgem apenas quando se supõe que os computadores constituem instrumentos apropriados para simular as atividades mentais, que essas máquinas incorporam propriedades explicativas da nossa vida mental. É nesse domínio que se situam suas críticas à ciência cognitiva, nas duas vertentes: a inteligência artificial tradicional e o conexionismo ou redes neurais artificiais.
Mediante cuidadosa reconstrução das idéias de Ryle, eles julgam que os erros responsáveis pelos pseudoproblemas sobre a relação mente/corpo se iniciaram a partir do pensamento cartesiano, que teria classificado o mental em oposição ao físico. Tal oposição daria lugar a um "erro categorial cartesiano" que, no caso da mente, consistiria em classificá-la segundo uma categoria conceitual à qual não pertence.
Como consequência, a mente seria entendida como um tipo de fantasma que habita e conduz, de maneira obviamente problemática, um corpo mecânico. Essa concepção teria deixado como herança uma família de pseudoproblemas, entre os quais o das "outras mentes" (que elementos disponho para saber que outro ser, além de mim mesma, possui estados mentais?), a controvérsia entre materialistas eliminativistas e representacionalistas sobre a natureza do mental, o problema da possível identidade entre estados mentais e estados cerebrais etc.
Mas tal projeto de análise crítica não parece escapar dos problemas de confusão conceitual que procura dissolver. Assim é que, de maneira reiterada (e sintomática), os autores afirmam que não tencionam propor uma "teoria alternativa da mente e do comportamento", mas apenas "combater a concepção de filosofia que dá origem ao fetichismo do computador e do papel da pretensa racionalidade científica que nos forneceu essa máquina realmente impressionante". Com efeito, parece ser uma perspectiva humanista (que concebe o homem e alguns dos seus semelhantes como os únicos detentores da capacidade de pensar) que os impede de analisar com tranquilidade a chamada "revolução copernicana" realizada pela ciência cognitiva no domínio do mental, que, ao tentar desconstruir a metafísica da subjetividade, propõe uma filosofia da mente sem sujeito, conforme ressalta Dupuy.
É também sintomático que, ao analisar a vertente conexionista da ciência cognitiva, eles não façam qualquer referência ao conceito de "auto-organização", que desempenha um papel fundamental na concepção "neomecanicista" preponderante nos estudos conexionistas. É com base no conceito de auto-organização (que caracteriza a dinâmica de interação das partes constituintes de sistemas que se organizam independente de regras fixas preestabelecidas e de um centro organizador único) que o projeto de desconstrução da metafísica da subjetividade se desenvolve por meio dos estudos de modelos de redes neurais.
Questões filosóficas interessantes surgem nessa perspectiva "neomecanicista" da mente, que tem como um de seus pilares o conceito de auto-organização, tão familiar aos conexionistas e curiosamente ausente na investigação dos autores. Enredados pela trama da razão analítica, nas suas críticas ao projeto mecanicista da mente predominante na década de 70, eles perderam a oportunidade de examinar as implicações filosóficas dessa "nova" metafísica, no contexto social de constituição da linguagem e do pensamento.
Como nem tudo é perfeito, esta excelente obra crítica deixou parte do trabalho de limpeza conceitual para que os futuros filósofos, devidamente vacinados, possam analisar a metafísica do neomecanicismo no estudo do mental.

Maria Eunice Quilici Gonzales é professora de filosofia e coordenadora do programa de pós-graduação em filosofia da mente e ciência cognitiva na Universidade Estadual Paulista.

Folha de São Paulo

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