sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A ALEMANHA DE SCHREBER - UMA HISTÓRIA SECRETA DA MODERNIDADE


Os delírios de Schreber
09/Mai/98
Iray Carone

ERIC L. SANTNER /AUTOR/; A ALEMANHA DE SCHREBER - UMA HISTÓRIA SECRETA DA MODERNIDADE
um leitor desatento deste livro pode perder o fio da meada de sua argumentação, que atravessa uma floresta de citações, livros, autores e remete sobretudo a Freud, Kafka, Foucault, Canetti e Benjamin. Daí que nem sempre atinge o ponto nodal da revisão do famoso caso Schreber: na verdade, o autor pretende ter lançado novas hipóteses e sugestões para superar e transcender os limites da explicação psicanalítica freudiana e de outras que se seguiram.
Seria possível perguntar, inicialmente, por que as "Memórias de um Doente dos Nervos", de Daniel P. Schreber, escritas no auge de sua loucura, deram tanto pano para mangas -a obra de Santner, entre outras virtudes, serve para informar sobre a produção psicanalítica, filosófica e literária que tematizou esse relato autobiográfico. Como se sabe, o livro de Schreber deixou de interessar exclusivamente ao meio psicanalítico desde a sua publicação em 1903, pois são muito recorrentes as análises políticas atuais do fascismo, latente ou manifesto, que fazem uso paradigmático dos seus delírios paranóicos.
O autor diz que o seu interesse por Schreber coincidiu com a "escalada perturbadora" de manifestações de paranóia nos EUA, quando, após a Guerra Fria, era legítimo esperar pela sua atenuação. Na falta do espectro de um inimigo definido como "o império do mal", a paranóia se alastrou como pólvora por intermédio de vários meios públicos de expressão, materializando uma cultura propícia ao surgimento de algum tipo de fascismo.
A grande hipótese do autor, no entanto, é a de que Schreber não pode ser considerado como o protótipo de um líder fascista que construiu um discurso fantasioso para dar "plausibilidade" aos seus delírios de poder, embora tenha sofrido, no corpo e na alma, as aflições derivadas de um poder discricionário e protofascista, encarnado pelo despotismo familiar e pela psiquiatria do seu tempo.
A análise de conteúdo dos delírios schreberianos, diz o autor, atesta que ele foi um filho da crise da modernidade, um emblema das disfunções políticas do seu tempo e do seu país, mas não a prefiguração da solução totalitária que se seguiu a essa crise. Os delírios de Schreber revelam que ele resolveu o seu conflito na direção inversa ao processo histórico alemão (que desembocou no nazismo e na perseguição aos judeus), pois se identificou com as figuras do judeu errante e da mulher/concubina de Deus. Vítima do poder disciplinar, Schreber ingressou, de modo definitivo, no "universo da abjeção", tal como o personagem Gregor Samsa da novela de Kafka.
Sua segunda crise "nervosa", segundo Santner, foi disparada pela investidura simbólica no alto círculo do poder, ou seja, após sua nomeação oficial como juiz-presidente da Suprema Corte de Apelação da Saxônia, em 1893. A fantasia de metamorfose num ser emasculado, misto de judeu circuncidado e concubina de Deus, foi a solução dramática e delirante do seu psiquismo em apuros.
Ora, diz o autor, qual foi a razão pela qual Freud, após ter observado, no relato autobiográfico de Schreber, uma relação estreita e temporal entre a explosão da libido homossexual ou emasculação ("Entmannung") e a sua nomeação para uma posição de autoridade jurídica ("Ernennung"), a deixou de lado, alegando falta de conhecimento mais preciso sobre a história da vida de Schreber?
Freud recorreu, sem dúvida, à sua teoria do desenvolvimento psicossexual da libido e à hipótese do recalcamento para caracterizar Schreber como um caso típico de fixação da libido que não negociou "a passagem para além de uma homossexualidade com toques narcísicos". Nesse sentido, ele seria um sujeito exposto ao perigo de não segurar uma onda súbita e intensa de emasculação, suficiente para sexualizar os seus instintos sociais e desfazer sublimações até então construídas. A crise reveladora desse processo de desenvolvimento inacabado teria sido despertada pelo encontro transferencial com o seu psiquiatra, Emil Flechsig, que o devolveu aos estágios anteriores de relações homoeróticas com outros machos significativos, ou seja, com seu pai e o irmão mais velho.
Em última análise, Freud estaria preocupado em firmar e defender a teoria da libido, muito embora tenha confessado, nas entrelinhas, que nas psicoses um distúrbio secundário e induzido dos processos libidinais poderia ser resultante de mudanças anormais do ego. Assim, a crise da modernidade na Alemanha guilhermina, diz Santner, poderia fornecer a chave da compreensão dos distúrbios libidinais e das fantasias delirantes de Schreber, pois "uma crise da função simbólica -a inscrição de alguém numa rede simbólica por meio de nomes e símbolos- pode manifestar-se no campo da sexualidade, ou, para dizê-lo em termos mais foucaultianos, como sexualidade". Freud foi fiel à psicanálise ao analisar Schreber à luz da teoria da libido, mas ao preço de não resgatar a Alemanha de Schreber -daí a ênfase de Santner na história familiar, na questão judaico-alemã e nas crises institucionais da virada do século. Resumindo: trata-se de uma Alemanha particular, que secretou os seus males nos delírios sexuais de um homem.
Iray Carone é professora do Instituto de Psicologia da USP.


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