segunda-feira, 27 de outubro de 2008

FRANÇOIS TRUFFAUT - UMA BIOGRAFIA

O homem que amava o cinema
12/Set/98
Lúcia Nagib

O tão discutível método de se estudar uma obra pela biografia de seu autor ganha, no caso do cineasta François Truffaut, justificativa plena. Com relação ao cinema, campo em que a "autoria" é sempre passível de questionamento, Truffaut foi praticamente o inventor do "autor", lançando mão de um recurso que nada mais era senão biografar seus ídolos.
Quanto à sua obra cinematográfica, tudo leva a crer que Truffaut a utilizou para retratar sua vida, a começar pelo primeiro longa-metragem, "Os Incompreendidos" (1959), reconhecido como a história da infância do diretor. Truffaut tinha ainda o projeto de redigir uma autobiografia e, por isso, colecionou ao longo dos anos, com obsessiva minúcia, vasta correspondência amorosa, profissional e de amizade, recortes da imprensa, notas e até receitas médicas. Antoine de Baecque e Serge Toubiana, dois veteranos dos "Cahiers du Cinema" devassaram seus arquivos, instalados no escritório dos Films du Carrosse, a produtora ou, no dizer dos autores, "o castelo de barba-azul" de Truffaut, e compuseram a mais cuidadosa biografia que se poderia ter do cineasta, confiável pela fidelidade da informação e por princípio correta, já que autorizada pelo próprio método truffautiano do biografismo.
A chave encontrada para a originalidade -visto que a vida de Truffaut já foi amplamente divulgada- consistiu, justamente, em contrariar o método de Truffaut num ponto essencial, distinguindo o homem dos filmes. Conhecendo cada detalhe da vida cotidiana, privada e profissional do biografado, ao longo das quase 600 páginas do livro, o leitor, porém, pouco aprende de seu cinema, a não ser por trás, ou seja, pelos caminhos e descaminhos dos roteiros, pelos acertos e complicações do "casting", pelas impressões do próprio cineasta e pelas reações da crítica e de amigos. A reflexão sobre os filmes em si fica por conta do leitor, já que os autores se abstêm de julgamento.
Isso faz com que o livro possa ser lido como um romance, no qual Truffaut é muito menos um cineasta do que um herói. Trata-se da epopéia de um solitário, que venceu as adversidades da vida instituindo o cinema independente como retrato de sua própria solidão. "O Filho Secreto" chama-se o primeiro capítulo, indicando significativamente o começo da história do menino enjeitado, fruto de uma gravidez indesejada. Entregue ao nascer a uma ama, que o negligencia e quase o deixa morrer, é tomado pela avó, que no entanto morre quando ele tem dez anos. Só então é devolvido à mãe, que reluta em aceitá-lo, e o menino acaba por descobrir sozinho que o marido dela não é seu verdadeiro pai...
Desenrola-se então, com riqueza de detalhes, a história do garoto malcomportado, dado à mentira e à cleptomania, que acaba internado numa prisão de menores. O desprezo da mãe, a fragilidade do padrasto, a incógnita do pai biológico serão a eterna inquietação desse solitário, que jamais se ligou a grupos (políticos ou artísticos) e jamais conseguiu viver em paz com nenhuma de suas tantas mulheres. O que o livro habilmente alinhava, junto a essa personalidade de marginal, é o lado compulsivo do colecionador, daquele que quer sempre o múltiplo como compensação de sua exclusão.
A literatura é a primeira paixão. Desde a infância, Truffaut se cerca de livros, ao centro dos quais reina a figura não por acaso copiosa de Balzac. Também muito cedo descobre o cinema, um vício para cujo sustento tudo -até o roubo- é válido. Depois, mas ainda precocemente, vêm as mulheres, objeto de igual adoração -o que, aliás, ocorria também com os amigos.
Em todos esses campos, Truffaut desenvolvia algo como uma devoção religiosa diante da qual se encontravam, não obras, mas pessoas. O altar erguido a Balzac, em "Os Incompreendidos", não é mera invenção, mas reprodução de fato real ocorrido com o menino Truffaut que, crescido, irá compor, junto a outros críticos dos "Cahiers du Cinema", o famoso "panteão" dos autores de cinema. Truffaut tinha apenas 14 anos quando deu início a seu culto por diretores cinematográficos. Sacha Guitry, Jean Renoir, Robert Bresson, Orson Welles foram os primeiros da lista que daria origem à "política dos autores", método destinado a revolucionar a crítica de cinema nos anos 50.
Mas sofreu muito, antes que a glória de crítico e, mais tarde, de cineasta lhe tornasse a vida mais confortável. Aos 16 anos, depois de endividar o padrasto numa aventura cineclubista desastrosa, é enviado a uma casa de correção. Sai daí para ser internado num colégio de padres. Livre deste, um amor malogrado o leva ao alistamento voluntário e, a seguir, à deserção. Preso novamente, é salvo por André Bazin, o consagrado crítico fundador dos "Cahiers du Cinema", que o abrigou em sua casa, oferecendo-lhe o amor familiar que ele nunca tivera.
Bazin não era, porém, o único intelectual de prestígio de quem Truffaut se aproximara. Sua paixão pelo "homem por trás da obra" já o levara a contatar Jean Genet, escritor maldito, autor de "Diário do Ladrão", com quem Truffaut logo trava amizade e que o inicia na literatura "noire". "Meu caro François", escreve-lhe Genet após o primeiro encontro, "quando o vi entrar em meu quarto achei que estava me vendo -quase como numa alucinação- quando tinha 19 anos". Era assim que Truffaut se relacionava com seus ídolos, não pela simples fruição da obra, mas pela identificação pessoal, por amor.
E pela recusa intransigente do que considerasse falso ou que simplesmente não o agradasse. Vivendo com os Bazin, passa a escrever regularmente para os "Cahiers" aos 20 anos, ou seja, a partir de 1952. Serão dois anos calmos, em que o jovem gesta pacientemente um texto bombástico, destinado a alterar o cenário cinematográfico francês e fomentar um novo cinema na França e no mundo. No número de janeiro de 1954 dos "Cahiers", é publicado o ensaio "Uma Certa Tendência do Cinema Francês", que arrasa com o "cinema de qualidade" francês e com mitos como Claude Autant-Lara e Henri-Georges Clouzot. Paralelamente, Truffaut faz o elogio dos filmes "B" americanos (como os de Samuel Fuller e Nicholas Ray), nos quais exalta a modéstia e a rapidez de execução, comparadas ao peso dos filmes franceses de roteiristas.
Alvo de reações iradas, Truffaut, por outro lado, imediatamente arrebanha a seu redor um grupo de críticos que seria batizado de "jovens turcos": Éric Rohmer, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Charles Bitsch. Ou seja, os jovens que logo se tornariam os célebres cineastas da "nouvelle vague". Com eles, põe em prática o método -inédito até então- das entrevistas de diretores, os quais visita munido de gravadores de rolo que, na época, pesavam cerca de quatro quilos! Na mira estão Jean Renoir, Luis Buñuel, Max Ophüls, Abel Gance, Roberto Rossellini, Fritz Lang... Quase todos reagem com agradável surpresa ao assédio do jovem crítico. Ophüls se arrisca mesmo a uma profecia certeira:"Tenho a sensação de que o senhor se tornará um personagem importante na arte cinematográfica".
Essa atividade de líder, porém, não abala a qualidade primeira de independência de Truffaut. Embora ligado à nova geração de cineastas, dispostos a inovar a forma e a desconstruir a narrativa, de modo algum compartilha com eles essas idéias, o que lhe valem críticas e um áspero rompimento com Godard. Trabalhando com produtores americanos e dedicando-se a filmes narrativos, acessíveis a um público médio, Truffaut afirma no auge das revoltas de 68: "De minha parte, já escolhi, tenho idéias perfeitamente claras: quero fazer filmes normais, é esta a minha vida".
Do mesmo modo, a luta pela renovação cinematográfica não o impede de aceitar o cargo de crítico de cinema do periódico direitista "Arts", que lhe paga cinco vezes mais que os "Cahiers". Aliás, a independência política de Truffaut irá causar-lhe problemas ao longo da vida, e eis uma das questões que o livro encara de frente, focalizando os vários momentos em que, diante de questões políticas importantes, ele não toma posição. Se se destaca na campanha contra a demissão de Henri Langlois da direção da Cinemateca Francesa, é por sua ligação pessoal com ele.
Ligação pessoal: eis a tônica da vida de Truffaut. Dedicará anos à redação de seu melhor livro, "Hitchcock/Truffaut", a longa série de entrevistas com o diretor que tanto admirou e cujo gênio revelou ao mundo. Seus atores e atrizes serão igualmente casos de amor. Jean-Pierre Léaud, o menino que descobriu e transformou no herói Antoine Doinel de "Os Incompreendidos", tornou-se quase um filho adotivo e cresceu interpretando o próprio crescimento de Doinel, ao longo de outros quatro filmes de seu protetor: "Antoine e Colette" (episódio do filme "O Amor aos 20 Anos"), "Beijos Proibidos" (1968), "Domicílio Conjugal" (1970) e "O Amor em Fuga" (1979).
As atrizes foram outras ligações ardentes e tempestuosas. Tendo se casado apenas uma vez, com Madeleine Morgenstern (filha de seu primeiro produtor), que lhe deu duas filhas, manteve um rumoroso caso com Jeanne Moreau, estrela de "Jules e Jim", em 1961. Depois, com Françoise Dorléac, que morreu tragicamente num acidente de automóvel após o magnífico desempenho em "Um só Pecado" (1964). Mais tarde, a irmã desta, Cathérine Deneuve, intérprete de "A Sereia do Mississipi" (1969), será uma paixão devastadora, cujo fim levará Truffaut a meses de internamento numa clínica de repouso.
Seus últimos anos, passou com Fanny Ardant, que convidara para protagonizar "A Mulher do Lado", em 1981. Ela será a mãe de sua terceira filha e ainda a atriz de "De Repente, num Domingo", de 1983. Teria certamente participado dos futuros projetos do companheiro, trabalhador compulsivo que escrevia vários roteiros ao mesmo tempo e rodava filmes sem parar. Mas a morte por câncer cerebral, em 1984, encerrou, aos 52 anos, a carreira do homem que amava as mulheres, o cinema e, sobretudo, seus autores.

Lúcia Nagib é professora de cinema na Pontifícia Universidade Católica (SP) e na Universidade de Campinas. É autora, entre outros, de "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).

Folha de São Paulo

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