segunda-feira, 27 de outubro de 2008

ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS

JEAN-JACQUES ROUSSEAU
A melodia dos signos
12/Set/98
Franklin De Matos

Música e linguagem sempre estiveram associadas no pensamento de J.J. Rousseau. Um bom exemplo é a "Carta sobre a Música Francesa", publicada em 1753, durante a famosa Querela dos Bufões, que dividiu Paris entre os partidários da ópera italiana e da francesa. Neste texto, cujo alvo principal é o compositor Jean-Philipe Rameau, Rousseau afirma que, se a música italiana é mais capaz de exprimir as paixões que a francesa, é porque privilegia a melodia, e não a harmonia e o contraponto. Tal diferença, aliás, se deve àquilo que distingue os próprios idiomas desses dois povos: enquanto o francês contém poucas vogais sonoras e está cheio de consoantes, articulações e sílabas mudas, o italiano é doce, sonoro, harmonioso e acentuado. (Não custa lembrar que, para os contemporâneos de Rousseau, a música é uma imitação da palavra, sendo portanto essencialmente vocal.)
No ano seguinte, o filósofo redigiu o "Discurso sobre a Desigualdade" e voltou às questões linguísticas, associando-as agora a outro tema fundamental: a sociedade. Na primeira parte do "Discurso", quando mergulha no estado de natureza, Rousseau escreve uma digressão sobre a origem e o desenvolvimento da língua, do grito da natureza aos idiomas elaborados, cuja finalidade é mostrar que a razão, a sociabilidade e a linguagem são aquisições tardias da humanidade, que há um abismo quase intransponível entre a natureza e a história. A versão primitiva desta digressão, mais extensa, acabou se tornando o "Ensaio sobre a Origem das Línguas", publicado três anos após a morte de Rousseau.
Conforme disse certa vez Jean Starobinski, se o "Discurso" insere uma história da linguagem no interior de uma história da sociedade, a perspectiva do "Ensaio" é exatamente inversa (1). Pode-se dizer que o "Discurso" vai mais fundo historicamente, remontando ao primeiro estado de natureza (o grau zero da história), quando o homem é solitário e, por isso, silencioso (segundo outra fórmula de Starobinski, não é então um animal que fala, mas "escuta" a voz da natureza). Quanto ao "Ensaio", ao tratar dos "primeiros tempos", refere-se a um momento bem posterior, quando os homens já estão associados em hordas e falam uma linguagem ditada pela necessidade física, que junta o grito da natureza, a gesticulação e a onomatopéia.
Mas, se a carência material dita nossos primeiros gestos, outra coisa nos leva às primeiras palavras. Contrariamente àqueles que afirmam que os homens inventaram a língua para expressar suas necessidades, Rousseau escreve: "Não foi a fome nem a sede mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as primeiras vozes". A exemplo do "Discurso", o "Ensaio" proclama que não começamos por raciocinar, mas por sentir. Na origem da palavra estão nossas necessidades morais, nossas paixões.
Em suma, a primeira língua é dotada de vogais que saem naturalmente da garganta, de pouquíssimas articulações -apenas algumas consoantes para evitar os hiatos- e de acentos diversos que multiplicam as vogais. No princípio, língua e música se confundem: "Cantar-se-ia em lugar de falar" (é bom lembrar que o subtítulo do livro é: "Em que se Fala da Melodia e da Imitação Musical"). Com o tempo, quanto mais monótonas se tornam as vogais, mais se multiplicam as consoantes e, à medida que os acentos vão desaparecendo, as quantidades que se igualam vão sendo substituídas por combinações gramaticais e novas articulações. A língua separa-se da música, vai se tornando um instrumento claro e eficaz, mais própria a veicular idéias do que sentimentos. Ela passa a significar o objeto e deixa de exprimir o sujeito.
Para Rousseau, este progresso é na verdade uma perda, correndo paralelamente à história da degradação moral e política da humanidade. Enquanto a língua perde veemência e energia, os homens se tornam incapazes de experimentar verdadeiras paixões. Conforme notam os estudiosos, não é por acaso que o "Discurso" e o "Ensaio" desembocam no mesmo lugar, no estado da civilização em que predomina o absolutismo político.
Ao exame sistemático segue um estudo da gênese das línguas, no qual Rousseau trata dos fatores geográficos, econômicos e sociais que explicam sua diversificação, chegando assim à oposição entre as línguas do Sul e do Norte. Estas páginas permitem a passagem do tema da origem das línguas para o da imitação musical. Rousseau retoma assim suas velhas divergências com Rameau: sustenta o primado da melodia -tão essencial para a música quanto o desenho para a pintura- e o caráter bastardo da música polifônica, consequência da invasão dos bárbaros e da substituição da doçura e sonoridade das línguas meridionais pela dureza e aspereza das setentrionais.
A tradução de Fulvia Moretto vem juntar-se a outra, de Lourdes Gomes Machado, publicada na década de 50 pela Editora Globo e retomada posteriormente nos "Pensadores" da Abril. Mas o que torna especial esta nova edição é um texto inédito de Bento Prado Jr. -"A Força da Voz e a Violência das Coisas"-, que faz as vezes de introdução ao "Ensaio" e que, a exemplo dele, passou muitos anos no fundo de uma gaveta.
O texto contém o nervo do estudo que o autor consagrou a Rousseau nos anos 60 e 70 e do qual publicou, aqui e ali, alguns capítulos dispersos. Sua interpretação é nova por várias razões. Em geral, se não apontam as contradições ou descontinuidades de Rousseau, os comentadores buscam a unidade de seu pensamento partindo do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" -aliás segundo recomendação do próprio filósofo. Para Bento, o coração da obra não está no primeiro "Discurso", e sim na teoria "retórica" da linguagem sustentada no "Ensaio", texto póstumo tido como secundário. Não tenho meios de reconstruir aqui todo o refinamento da leitura e vou me limitar a suas linhas mais gerais.
No século 18 há quem diga que as línguas têm um "gênio gramatical", voltado para a universalidade da razão e da natureza humana, e um "gênio retórico", que remete às contingências históricas e geográficas dos povos. A linguística cartesiana, quer na versão racionalista, quer empirista, privilegia o primeiro aspecto: segundo ela, a língua é um espelho da razão, as palavras são instrumentos do conhecimento e, por isso, a função primordial da linguagem é a representação.
Rousseau contesta todos os itens deste esquema tradicional e inverte os dados do problema. A chave para a explicação da linguagem não é a razão, aquisição tardia da humanidade, mas as paixões -antes de "geômetras", fomos "poetas", diz o "Ensaio". Assim, a música, e não a gramática, deve ser o paradigma da língua, cuja função primeira não é comunicar nossas idéias, mas agir sobre o coração de outrem. A exemplo da música, a linguagem não representa as coisas -imita-as. Conforme mostra Bento Prado Jr., Rousseau tem uma concepção não-figurativa da imitação: se a pintura só pode representar o visível, a música imita tanto o visível quanto o invisível, ou seja, as representações e os sentimentos que essas representações despertam.
Como se vê, voltar-se para o "gênio retórico" da língua, que aponta para a história, significa colocar em primeiro plano o tema da relação com o outro. Daí a importância que Rousseau atribui ao social a fim de explicar a própria estrutura da linguagem. Não custa insistir neste ponto: não que a linguagem seja para ele um fenômeno derivado da sociedade. É mais que isso: a linguagem é a primeira instituição social, e as demais instituições não passam de formas de linguagem. Por isso, Bento escreve: "À utopia da gramática -quer dizer, a uma concepção da linguagem que ignora todo lugar, geográfico ou histórico, norte e sul, antiguidade e modernidade, em sua vontade de universalidade-, a linguística de Rousseau opõe uma topologia que procura sobretudo as diferenças de lugar, no espaço e no tempo, mas também no interior de uma mesma sociedade".
Esse procedimento é tão decisivo no pensamento de Rousseau que estaria até mesmo ligado a uma transformação no próprio sentido da idéia de verdade. Já não tenho espaço para seguir Bento Prado em suas minuciosas análises de texto e vou logo ao resultado delas. Ao contrário do que diz o logocentrismo das Luzes, o amor da verdade não é para Rousseau um princípio espontâneo da natureza humana -é algo derivado, a "emanação" de uma vontade mais profunda. Quem comanda esta outra vontade é a justiça, e a verdade só terá valor se subordinar-se à justiça. Deste modo, não só a linguagem, mas a própria verdade se subordina "à trama da intersubjetividade".
Em outra parte, Bento já havia identificado algumas ramificações do mesmo procedimento. Na famosa "Carta a d'Alembert" (Unicamp, 1993), em que explica as razões pelas quais é contrário à introdução do teatro em Genebra, Rousseau não retoma, como pretendem as leituras tradicionais, a crítica metafísica da representação e tampouco os argumentos teológico-morais contra o teatro. Segundo Bento, este livro inquietante -que inauguraria, assim, a crítica social e política do teatro- denuncia a postura universalista (e etnocentrista) dos filósofos, que examinam o espetáculo sem passar pelo inventário de suas diferenças ao longo da história (2). Para retomar os termos acima, pode-se dizer que a "Carta" recusa uma "gramática do espetáculo", fundada na razão e na natureza humana, e nos apresenta uma "topologia dos espetáculos", voltada para a pluralidade da história.
O mesmo combate reaparece mais tarde no "Segundo Prefácio" do romance "A Nova Heloísa" (Hucitec, 1995), no qual Rousseau rejeita agora as idéias clássicas de imitação e leitor universais, e as substitui por uma visão etnológica baseada na "multiplicidade das humanidades locais". A imitação romanesca não deve dissolver o contingente no universal, mas sim "musicalizar" o quadro da natureza humana, visando-o de modo oblíquo, por meio de uma história particular (3).
O autor da "Nova Heloísa" se orienta, assim, pela teoria do "Ensaio". A esta altura, talvez se possa apreciar em parte a originalidade da leitura de Bento Prado Jr. Contrariamente a vários exegetas contemporâneos, ele aposta na existência de uma continuidade entre a "teoria" da linguagem formulada pelo filósofo e o "uso" que o escritor pretendia dela fazer. Com efeito, a teoria não se limita a denunciar a linguagem, mas afirma que ela é, segundo as palavras de Bento Prado, "o mais perigoso dos bens e o mais inocente dos jogos". Quer dizer: a linguagem tem duas faces -uma positiva, outra negativa-, que permitem a hierarquização da qualidade dos discursos e escritos. Alguns "representam" e têm como modelo a gramática, ao passo que outros "imitam", tomando a música como paradigma. Os primeiros se distinguem pelo "fausto", provocando "uma admiração fria e estéril", os outros têm "força", "elevam a alma e incendeiam o coração". É a estes que se pretende filiar a linguagem "pura e inocente" dos escritos de Jean-Jacques.
Com maestria incomparável, Bento conduz seu leitor do exame das proposições metafísicas do "Emílio" à análise de uma sutileza psicológica dos "Devaneios de um Caminhante Solitário". A unidade perseguida por ele não é, assim, apenas de ordem filosófica, compreendendo "Teoria, Política, Belas-Letras". O clássico de Starobinski citado há pouco fizera a seu modo algo parecido, mas de um ponto de vista psicanalítico-existencial -segundo seus próprios termos, tomara a obra de Rousseau como se fosse "uma ação imaginária", e fizera do comportamento de Jean-Jacques "uma ficção vivida". A perspectiva de Bento é, por assim dizer, rigorosamente interna, restringindo-se ao plano estrito da obra e recompondo, deste modo, a unidade entre filosofia e literatura em J.-J. Rousseau.
Agora é torcer para que Bento Prado Jr. vença tanto a timidez da filosofia no Brasil quanto a sua própria (4), e publique enfim estes ensaios em livro.
Notas:
1. Jean Starobinski, "Rousseau et l'Origine des Langues", in: "J.J. Rousseau - La Transparence et l'Obstacle", Paris, Gallimard, 1971, pág. 356.
2. Ver Bento Prado Jr., "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in: "Estudos Cebrap", nº 14, São Paulo, Brasiliense, 1975.
3. Idem. "Romance, Moral e Política no Século das Luzes", in: "Discurso", nº 17, São Paulo, Polis, 1988. Este deslocamento do lugar da universalidade acaba mexendo com a própria identidade do leitor visado por Rousseau, que já não terá o perfil universal das poéticas clássicas e será, assim, o "solitário", preservado dos males do mundo e da "opinião".
4. Ver Paulo Eduardo Arantes, "Timidez da Filosofia - Publicando um Inédito de Bento Prado Jr. 20 Anos Depois", in: "Um Departamento Francês de Ultramar", São Paulo, Paz e Terra, 1994, págs. 157ss.

Franklin de Matos é professor no departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

2 comentários:

  1. Muito obrigado, me ajudou bastante no trabalho que eu estou fazendo sbre o livro Ensaio sobre a origem das línguas, eu fiquei de apresentar a parte em que Rousseau fala da Melodia.
    atenciosamente
    Marcos V. Martins

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  2. Belo blog, meu caro. parabéns pela excelência.

    Aguardo sua visita e, com sorte, sua mensagem lá no blog Semióticas. envio um link:

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