quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin





ZONAS RURAIS EM DECADÊNCIA: TRABALHO E JUVENTUDES
DECAYING RURAL AREAS: WORK AND YOUTH

Patrícia Alves Ramiro
COQUARD, Benoît. (2019), Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin. Paris, La Découverte. 211 págs.



O livro Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin, de Benoît Coquard,1 publicação mais recente da coleção L’Envers des faits, organizada por Stéphane Beaud, Paul Pasquali e Fabien Truong, dá sequência à tradição das pesquisas que fazem, no ambiente familiar de origem do pesquisador, um exercício sociológico de compreensão de determinada realidade social. O precursor dessa vertente foi Pierre Bourdieu (2002), ao escrever Célibat et condition paysanne (1962), ainda no início de sua carreira.2



Na obra, Coquard retorna à região rural do grande leste da França, inserindo-se no cotidiano de adultos jovens das classes populares3 com o objetivo de compreender como o processo de desindustrialização vivido naquele contexto, na década de 1990, alterou o convívio social de uma geração de maneira brusca e intensa. Ressalte-se que esta região é hoje reduto eleitoral da Frente Nacional, partido da extrema direita francês, e que seus índices de consumo de heroína por pessoas dessa faixa etária estão entre os mais elevados do país.



Através da análise densa das formas de construção e de manutenção de vínculos de amizade desse grupo, e de suas práticas matrimoniais, o autor traz ao texto o sentimento de conflito vivenciado permanentemente por seus membros em sua busca por reconhecimento social. Tal conflito expõe a maneira atual de fixar hierarquias dos jovens das classes populares rurais, e é acirrado pela desestruturação abrupta do mercado de trabalho, que, em um passado recente, produzia o sentimento de coletividade e regia a reciprocidade local. Hoje, pessoas do mesmo círculo de convívio são colocadas em situação de rivalidade.



A expressão campagnes en déclin, apropriada do senso comum pelo autor e utilizada desde o título da obra – e que traduzirei aqui como zonas rurais em decadência – faz referência a uma realidade específica com o intuito de permitir distinguir, a partir de critérios demográficos e econômicos, dois tipos principais de realidade social e geográfica em locais distantes das grandes cidades francesas. Essa divisão é importante para classificar e diferenciar outras localidades dessa mesma zona rural que, por estar próximas do litoral ou ser territórios vinícolas gozam de certo status social e vivem uma situação oposta. Estas localidades conseguiram se tornar atrativas para turistas e neo-rurais, que passaram a repovoar e a dinamizar a economia e os quadros sociais locais, e fizeram delas zonas rurais abastadas (campagnes riches, no original).4
“Os que partem” e “os que ficam”

As zonas rurais em decadência exemplificam algumas consequências das profundas mutações do capitalismo neoliberal, em decorrência do fechamento de diversas indústrias na área rural. Com isso, surge uma geração de adultos jovens que se diferenciam, de maneira ampla, entre “aqueles que ficam” e “aqueles que partem” em busca de melhores condições de trabalho.

O forte declínio da indústria local ocasiona a dispersão geográfica dos jovens, reduzindo significativamente a presença desta faixa etária na região. Para os que permanecem, esse novo cenário gera a necessidade de deslocamentos diários de alguns quilômetros, seja para procurar ou para se manter em algum trabalho, seja para ter acesso a serviços e comércio básicos, como supermercados, escolas etc.

Se antes esses jovens podiam se referir a si mesmos como pessoas deste ou daquele vilarejo, onde encontravam não apenas trabalho, mas também acesso ao comércio e aos serviços que giravam a seu redor, nesse momento de desmantelamento da atividade industrial e comercial, com o deslocamento de tudo que dinamiza a vida dos pequenos vilarejos, “é a própria vida social que se encontra, então, deslocalizada, e que os faz ir de um município despovoado a outro” (Coquard, 2019, p. 201)5.

Nesse mundo onde é preciso se deslocar diariamente, o documento de permissão para dirigir (correspondente à CNH brasileira) funciona como uma espécie de diploma: tem poder de marginalizar a parte dos jovens das classes populares que não consegue facilmente arcar com os custos de sua obtenção. Assim, andar a pé pelas ruas passa a ser visto como símbolo de fracasso.

Outra consequência desta redefinição espacial é a ressignificação local das legitimidades escolares e profissionais. Para os que ficam, com o número reduzido de vagas de trabalho, as possibilidades restantes de colocação no mercado passa por empregos mais técnicos, manuais, que exigem pouco tempo de escolarização, e também pelo trabalho informal. A escolha entre prosseguir ou não nos estudos, e entre cursos profissionalizantes ou uma universidade, por seu caráter coletivo, torna-se o marcador principal que delimita dois grupos de sociabilidades bem distintas.

Além de jovens das classes populares, a categoria dos que partem será composta também por egressos/as das classes intermediárias e superiores, que permanecem mais tempo dedicados aos estudos. O que não significa que jovens sem ensino superior e em situação precária também não o façam, ainda que em número mais reduzido. Nesses casos, contudo, Coquard aponta para o enfraquecimento de vínculos familiares em estruturas monoparentais; para os jovens que vêm dessas famílias, o capital social necessário para encontrar um trabalho na região é insuficiente.

Esta relação entre migração e triagem escolar nesta geração não está ligada apenas à posição de classe, mas também à dimensão do gênero. Dois aspectos chamam a atenção, aqui. O autor constata que a maioria dos empregos ainda disponíveis na região são caracterizados como “masculinos”, o que limita o futuro profissional das mulheres. Também aponta para a tendência de mulheres dos meios populares de terem rendimentos escolares melhores do que os homens e, portanto, maior probabilidade de obter diploma superior e, assim, migrar em busca de oportunidades melhores. Para se ter uma ideia, no final dos anos 1990, aproximadamente um terço dos jovens da região pesquisada partiram sem jamais retornar.

Nas camadas populares, a maioria dos migrantes eram mulheres. Falando daquelas que partiram, Coquard mostra que a obtenção do diploma escolar é condição implícita em empregos mais qualificados, impossíveis de encontrar no mercado de trabalho das zonas rurais em decadência. Por isso mesmo, o diploma seria incapaz de servir como garantia de prestígio social local. Mesmo na cidade, o diploma é frequentemente insuficiente para garantir um emprego à altura do título, especialmente devido à falta de capital social dessas mulheres para serem recomendadas a determinado cargo.

Entre aquelas que ficam, a limitação de empregos na região faz com que a busca de estabilidade conjugal – e, em seguida, maternal e residencial –, seja uma alternativa para garantir uma boa reputação social. Nesse sentido, o autor considera que essas mulheres ingressam na vida adulta mais precocemente do que os jovens adultos homens, e são menos nostálgicas em relação ao passado juvenil. Para eles, permanece a possibilidade de prolongar sua juventude pelo convívio com grupos de amigos (no original, bandes de potes ou clans d’amis) mesmo após o matrimônio e a chegada de filho(s).
Os grupos de amigos

São esses grupos de amigos – pequenas instituições, seletivas e solidárias, ou coletividades construídas por afinidades mais estreitas do que eram no passado –, que irão ocupar o espaço das formas de sociabilidade que estruturavam a vida econômica local no passado recente. Em discurso recorrente na pesquisa de campo, a valorização de uma consciência coletiva já não passava por um “nós” amplo, mas por um “já nós” (déjà nous, no original).

Esse novo formato de sociabilidade, construído pela formação de grupos de amigos, ultrapassa a questão da proximidade geográfica dos/as jovens da região e gera novas formas de classificação e desclassificação entre eles. Os grupos estigmatizados inclui desempregados (as) com 30 a 40 anos de idade, que serão denominados “os perdidos”. Em geral, a expressão local se refere àqueles e àquelas que não conseguiram se ajustar à nova realidade tecnológica dos empregos que ainda restam, e que exigem maior escolarização que seus pais, operários, tiveram no passado.

Coquard denomina autóctones precários a categoria mais ampla dos/as jovens adultos/as que não são capazes de se beneficiar dos recursos locais para melhorar sua situação, ou seja, para quem a autoctonia não se reconverte em nenhuma espécie de capital. Ainda que tenham compartilhado parte da adolescência com outros membros das classes populares, ao ingressar na vida adulta são deixados de lado – nos círculos de convívio, encontros nas casas dos outros, equipes de futebol e grupos de caça, e mesmo pequenos bicos, pois não são vistos como “confiáveis”.

Tais jovens costumam viver em ruas ou bairros estigmatizados, e ganham frequentemente nomes pejorativos – que os desqualificam, entre outros motivos, por precisarem de políticas assistenciais para sobreviver. Não é incomum terem sua intimidade exposta em jornais locais. De fato, ainda que não tenham seu nome publicado pela mídia, são facilmente identificados numa região onde, como se costuma dizer, “todo mundo se conhece”. Esse todo mundo presente na expressão passa a referir-se, sobretudo, à privacidade que é negada aos dominados.

Nesta autoctonia da precariedade incluem-se parcelas significativas de “jovens não inseridos”, ou seja, não empregados, nem escolarizados, na faixa dos 20 anos, que chegam a 20% ou 25% da população da região pesquisada. Por não serem exceção à regra, não lamentam a baixa escolarização, mas preocupam-se em entrar rapidamente no mercado de trabalho, o que garante certa estabilidade econômica e reconhecimento social local, especialmente se conseguirem se tornar proprietários de residências e tiverem filhos. Querem, segundo eles, um trabalho que “sirva para alguma coisa”, em oposição ao trabalho mais qualificado de quem estudou mas sequer pode retornar ao local onde cresceu.

Ainda que as mudanças estruturais sejam brutais, a mentalidade de valorização social associada ao trabalho permanece, e faz com que muitas pessoas exerçam atividades bastante precárias, em resposta ao medo de se tornarem, aos olhos dos mais velhos, “aqueles que não valem nada”. A busca de uma boa reputação na localidade se justifica, já que esta é necessária até mesmo nas indicações de “bons trabalhadores” que regem o setor informal.

No outro extremo, temos uma minoria de jovens que herdam esta boa reputação de seus parentes. Para essa minoria, a possibilidade de recuperação simbólica é viabilizada pelo esforço dos pais de construir a valorização de seu sobrenome, e pela manutenção, nas pequenas comunidades, de relações intergeracionais; assim, praticamente não há concorrência por uma oportunidade de emprego. Mesmo esses jovens, porém, compartilham com os outros das classes populares uma certa nostalgia em relação a um passado que sequer viveram, como justificativa moral para deplorar o presente.

A ideia partilhada de que “antes era melhor” indica, ainda, a rejeição a certas normas do presente, vistas como opostas a um estilo de vida mais livre ou autônomo: nos “bons tempos” das gerações anteriores, podia-se deixar as portas destrancadas e não havia controle rígido nem da velocidade dos veículos nem de quem dirigia nas estradas depois de consumir bebidas alcoólicas. As falas que se referem a um passado glorioso são proferidas majoritariamente por homens mais velhos, e têm por base narrações nostálgicas de atividades esportivas (futebol, boxe ou caça) ou de noitadas e condução de veículos.
Hierarquização das classes populares e conservadorismo político

Ceux qui restent nos mostra que foram as razões econômicas, mais do que as diferenças culturais, que geraram as lutas e a divisão atual das classes populares rurais. Após o declínio do trabalho, e em razão da concorrência pelas poucas vagas que surgem (geralmente oriundas de aposentadorias), a maneira das pessoas da região de se relacionar deixa de ser regida por encontros ao acaso, e passa a ser orientada pela adesão aos grupos de amigos, fundamental para a obtenção de um trabalho ou de um/a companheiro/a.

Pode-se considerar que a rede de sociabilidade é cada vez menos regida pela proximidade física, e cada vez mais pela possibilidade de contar com amigos, pessoas que não estão em concorrência direta por algum trabalho. Concorrência que, ao gerar a hierarquização entre quem consegue se sair bem e “os outros” (prisioneiros da autoctonia da precariedade, para os quais as perspectivas de sucesso são bem menores), inviabiliza a tomada de consciência sobre interesses comuns a esta classe popular.

Ainda que a questão político partidária das classes populares não tenha sido o foco principal da pesquisa, é nesse sentido que Coquard diz ter compreendido melhor, à luz dela, o sucesso na região do discurso da extrema direita – que tende a propor leituras estritamente etnicistas da realidade, compatíveis com antigos slogans nacionalistas como “Franceses em primeiro lugar”. Afinal, as hierarquias construídas entre os/as jovens das classes populares rurais, e baseadas na solidariedade entre grupos de amigos (distinguidos pelo discurso vigente do “já nós”), vão de encontro aos discursos racialistas propagados pelos ultraconservadores. Mais: ao se alimentar desse sentimento de oposição ao outro – ainda que ele seja, objetivamente, o mais próximo, naquele espaço social –, elas impedem a construção de uma aliança entre classes populares rurais.

A etnografia sociológica realizada mostra como novas práticas (materiais e simbólicas) são construídas em um momento de transformações abruptas do trabalho, e como elas se valem (a depender das trajetórias vividas) de estruturas mentais vigentes até poucas décadas atrás, quando a inserção no mercado de trabalho assalariado local ainda era mais possível. De fato, pesquisas similares, com a profundidade empírica e teórica desta obra, poderiam nos auxiliar também a compreender melhor a adesão, nos últimos anos, de boa parte das classes populares brasileiras ao discurso de ultradireita.

Por fim, o livro de Benoît Coquard insere-se na discussão ampla e pertinente sobre permanência ou migração de populações rurais e precarização do trabalho, mas também a ultrapassa, ao apontar para temáticas ainda pouco abordadas pelas ciências sociais brasileira. Ao olhar mais atentamente para jovens adultos/as oriundos de famílias operárias, o autor nos recorda do fato de que o rural não é sinônimo de agrícola, e de que processos de desindustrialização atingem o proletariado rural de maneiras variadas.


1
Sociólogo do L’Institut national de recherche pour l’agriculture, l’alimentation et l’environnement (INRAE) e membro do grupo de pesquisa Centre d’Économie et de Sociologie appliquées à l’agriculture et aux espaces ruraux (CESAER).
2
Além de atestar sua competência como etnógrafo, esta produção foi uma forma de o autor romper com o paradigma estruturalista vigente na época, na tentativa de fazer uma espécie de “Tristes trópicos ao contrário” (Bourdieu, 2002).
3
O autor considera jovens adultos pessoas que tinham entre 20 e 40 anos no momento da pesquisa, realizada entre 2010 e 2018. A categoria de agentes sociais das classes populares que permanecem na região abrange, principalmente, filho/a(s) de operários.
4
Para pesquisa sobre locais rurais franceses transformados em atrativos turísticos ver, entre outros, Garcia-Parpet (2019), Lafoz (2019) e Ramiro (2016).
5
Tradução da autora.
DOI: 10.1590/3610718/2021

Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. (2002), Le bal des célibataires. Paris, Seuil.
________________. (1962), “Célibat eu condition paysanne”, Études Rurales, 5-6: 32-135.
COQUARD, Benoît. (2019), Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin. Paris, La Découverte, coleção L’Envers de faits.
GARCIA-PARPET, Marie-France. (2019), “Apelação de origem e modalidade de valorização do vinho através do turismo na França”. In: RAMIRO, Patrícia Alves (org.), Turismo, cultura e meio ambiente: coletânea franco-brasileira. João Pessoa, UFPB.
LAFOZ, Mayra Bertussi. (2019), “Valorização pelo turismo: um relato etnográfico da venda direta do queijo AOC Saint-Nectaire”. In: RAMIRO, Patrícia Alves (org.), Antropologia e turismo: coletânea franco-brasileira. João Pessoa, UFPB.
RAMIRO, Patrícia Alves (2016). “A reinvenção do rural pelo turismo: o caso dos gîtes rurais” In: WOORTMANN, E. & CAVIGNAC, J. (orgs.), Ensaios sobre Antropologia da alimentação: saberes, dinâmicas e patrimônios. Natal/ Brasília, UFRN/ABA.

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