quinta-feira, 22 de setembro de 2022

No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro





DO LOCAL AO NACIONAL: A ATUAÇÃO DA CÂMARA DE MARIANA APÓS A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL, 1828-1836

Bruna Prudêncio Teixeira

Resenha de: OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. . No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro . Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.


Publicado em 2021, No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro é fruto da dissertação de mestrado de Kelly Eleutério Machado de Oliveira defendida em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, a autora é pós-doutoranda em História pela Universidade de São Paulo.



Dividido em três capítulos, o livro traz nova contribuição aos estudos sobre as Câmaras Municipais. A temática foi bastante abordada pela historiografia do Brasil colonial. Autores como Júnia Furtado, Russel-Wood e Nuno Monteiro3 se debruçaram sobre o assunto. Oliveira, contudo, tem como pano de fundo o Brasil independente, especificamente no contexto onde as Câmaras sofreram reformas profundas que esvaziaram o poder que possuíam no período colonial. Com base no estudo específico da Câmara de Mariana, a autora explora o novo papel da instituição e como as dinâmicas locais interferiram no contexto geral. Nesse sentido, a obra segue a tendência historiográfica dos últimos anos, em que os estudos de caso aparecem como lócus privilegiado para compreensão das minúcias do processo de formação do Estado brasileiro.



O objetivo central do livro é analisar a atuação e trajetória dos vereadores da Câmara de Mariana e entender as relações e tensões desses agentes no processo de construção do novo Estado independente. Apesar do esvaziamento do poder local nas décadas de 1820 e 1830, a autora consegue analisar o peso da esfera municipal sobre a política nas suas relações com os níveis de poderes provincial e geral. Na análise de Oliveira, os vereadores emergem como agentes ativos no chamado “laboratório da nação”.



No primeiro capítulo, intitulado “Organização e Funcionamento da Câmara Municipal da Cidade de Mariana, Minas Gerais (1828-1836)”, a autora retraça o panorama de atuação da Câmara nos anos assinalados. Partindo das tensões entre pré e pós independência, demonstra rupturas e continuidades impostas pela lei de 1828, que regula e limita os poderes municipais no Brasil. Indo ao encontro da tese de Sérgio Buarque de Holanda,4 a medida é compreendida de uma perspectiva liberal, visto que estabelece mudanças em relação ao período colonial. Se antes as Câmaras eram espaços de poderes quase autônomos, após a reorganização foram subordinadas aos Conselhos Gerais provinciais e perderam atribuições judiciais, mantendo somente funções administrativas.



Todas essas alterações geraram tensões entre os vereadores de Mariana e para compreender o novo espaço de atuação da Câmara, Oliveira analisou cerca de 900 atas de sessões do local. Evidenciando os perigos de analisar essa documentação de maneira isolada, a autora chama a atenção para a forte inconstância política dos atores políticos no Período Regencial. Uma das reformas mais questionadas pelos vereadores marianenses foram as posturas municipais. Alguns defendiam que as posturas fossem assuntos da Câmara, e não do Conselho da província. Mesmo assim, de maneira geral, a Câmara considerava a lei de 1828 legítima, bem como as reformas liberais de 1830. Portanto, mesmo perdendo autonomia, e abrigando uma série de tensões e debates, a Câmara de Mariana tendia à corrente liberal moderada e se mostrou fiel à Regência.



Acerca da nova organização das Câmaras a autora demonstra que os vereadores seriam eleitos pelo município dentre aqueles que possuíssem no mínimo 200$000 de renda anual. Não estavam previstos pagamentos para este cargo, a ideia não era “viver da Câmara” e sim “para a Câmara”. (p. 39). Portanto, a principal motivação em ser vereador seria o acumulo de prestígio e poder.



Os vereadores eram responsáveis pelas questões econômicas e policiais da cidade. Deveriam garantir o bem-estar local e costumeiramente aproveitavam para suprir seus interesses, inclusive financiando as obras. Sobre essa questão, o estudo de Oliveira adentra uma perspectiva importante sobre o processo de formação do Estado brasileiro. Ainda que a questão financeira tenha sido transferida para a esfera provincial, isso não impediu autoridades municipais de investirem dinheiro do próprio bolso nas obras públicas e melhorias locais. Com isso, a autora reverbera a tese da permanência da “componente patrimonial”, como herança do Antigo Regime (p.42).



No segundo capítulo, “Viver de seu negócio e governar o bem comum: o perfil socioeconômico nos primeiros anos das Regências”, Oliveira analisa o perfil dos homens que ocuparam a vereança. Para isso, baseia-se em testamentos, inventários, listas nominativas, registros de matrimônios, jornais e também informações contidas no livro Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Oliveira contabilizou 16 vereadores (três dos quais carecem de documentação). Eram via de regra, brancos, livres, “chefes de armas”, membros da elite local e da Sociedade Patriótica Marianense. Entre as ocupações mais comuns estavam as de fazendeiro, comerciante e padre.



Para traçar um perfil socioeconômico dos vereadores, a autoria os dividiu em quatro tópicos. No primeiro, analisou os eclesiásticos. Dentre os três padres, o que mais se destaca é Antônio José Ribeiro Bhering. No âmbito político, foi vereador, procurador, juiz de paz, municipal e de direito, membro do Conselho Geral, da Assembleia Legislativa mineira e da Assembleia Geral. João Paulo Barbosa, por sua vez, foi vereador da Câmara e membro da Assembleia Legislativa Provincial. Manoel Júlio Miranda assumiu, além da vereança, as funções de juiz de órfãos e deputado provincial.



Além dos cargos políticos, os padres receberam comendas. Sobre essa questão, a autora se aproxima dos estudos de Ângela Xavier e Antonio Manuel Hespanha5. Ainda que esses autores se debrucem sobre o cenário português da década de 1820, a economia de “troca de favores” está presente nos dois contextos. Era comum que indivíduos oferecerem serviços ao Estado em troca de comendas e títulos. A diferença, contudo, estaria na origem da nobreza. À luz de Lilia Schwarcz6, Oliveira defende que o critério brasileiro de nobreza estava muito mais ligado ao “merecimento” que ao “nascimento”. Ocupar cargos eclesiásticos, políticos e administrativos poderia gerar status social.



O segundo e terceiro grupo de vereadores são os que acumularam grandes e médias fortunas. Dentre os maiores montantes temos quatro vereadores que somavam de 30 a 70 contos de réis. O mais rico, entretanto, era detentor de um montante-mor acima dos 119 contos de réis. Os vereadores deste grupo eram em geral proprietários de terras, fazendeiros e comerciantes, alguns com investimentos na mineração, outros também no comércio de cativos. Havia ainda um advogado. Quatro vereadores representam as “médias fortunas”. Nenhum deles aparece como grande proprietário de terras, sendo que dois somam pouco mais de 9 contos de réis.



Assim como os padres, esses vereadores também acumulam cargos políticos. A autora sugere que esse amealhar de funções pode estar associado à carreira política exercida por essas pessoas e ainda à insuficiência de cidadãos para ocupar cargos requeridos pelo novo Estado. Além disso, esse grupo também tem sua lista de títulos e comendas, o que corrobora com a tese de “troca de favores” entre indivíduos e Estado e de busca de distinção social, práticas herdadas do Antigo Regime.



O quarto e último grupo apresentado por Oliveira é na verdade uma exceção: Manoel Francisco Damasceno era agregado, carpinteiro e o único vereador pardo. Seu caso representa uma ruptura com o período colonial. Se no passado as Câmaras Municipais eram espaços para “homens bons”, no oitocentos deixam de sê-lo em função do fim dos critérios de sangue para provimento de cargos públicos. Por outro lado, a renda era condição da vereança, e assim se observa que a maioria dos vereadores eram membros da elite política e econômica local, que por vezes já haviam ocupado posições na Câmara e circulavam por várias esferas políticas.



No terceiro e último capítulo, “A trajetória e atuação políticas de Antônio José Ribeiro Bhering”, Oliveira se detém na vida do vereador eclesiástico mais importante de seu recorte. Baseada nos trabalhos de Andréa Lisly Gonçalves, destaca a relevância de trajetórias individuais para o estudo de determinados contextos.7 Bhering, que já desfrutava de prestígio por ser padre, foi professor e figura ativa nos periódicos da época, sendo considerado “ilustre e combativo”. (P. 124). Politicamente, acumulou cargos locais, provinciais e nacionais, podendo inclusive ser considerado membro do que José Murilo de Carvalho chama de “elite imperial política”.8 Com uma tendência liberal moderada, o padre apoiava maior autonomia às províncias, sem simpatizar, contudo, com o federalismo. Defensor da monarquia constitucional, armou o seminário contra a Revolta do Ano da Fumaça. Bhering também gostava de distinções sociais e pediu duas comendas ao príncipe. Sua vida desenha a trajetória de um homem local que, entrando no cenário político do Estado imperial, ainda carrega as tensões e contradições entre as novas correntes políticas e as velhas práticas do Antigo Regime.



Em vista do exposto, No laboratório da Nação merece destaque. Com análise documental rica e minuciosa, Oliveira demonstra o que a reorganização das Câmaras Municipais no Brasil recém-independente significou na prática do dia a dia. Relativizando a tendência historiográfica que vê nas reformas de 1828 o esvaziamento do município em prol da província, sua pesquisa sugere que a Câmara permaneceu como espaço de proeminência que servia de trampolim para as elites locais. Partindo do estudo específico de Mariana, consegue averiguar como disputas nacionais eram tidas no município, e mais do que isso, como agentes locais circulavam entre os âmbitos provinciais e nacional. Seu livro é sem dúvida um convite para entender o novo papel das Câmaras no processo de construção da nação independente.

Bibliografia
CARVALHO, Jose Murilo de. A construcao da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a politica imperial. Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 2003.
FURTADO, Jania Ferreira. As Camaras municipais e o poder local: Vila rica- um estudo de caso na producao academica de Maria de Fatima Gouvea. In Tempo, 2009. P. 6.-22. https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#
GONCALVES, Andrea Lisly. Estratificacao social e mobilizacões politicas no processo de formacao do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. Sao Paulo, Hucitec, 2008.
HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Angela. As redes clientelares. In: Mattoso, Jose. Historia de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. Sao Paulo, Cia das Letras, 1995.
MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. Ler historia, Lisboa, n.10., 1987.
OLIVEIRA, Kelly Eleuterio Machado. No laboratorio da Nacao: a Camara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construcao do Estado Nacional Brasileiro. Belo Horizonte: Fino Traco, 2021.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na America Portuguesa: um estudo de divergencia cultural. Revista de Historia, Sao Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos tropicos. Sao Paulo, Cia das Letras , 2003.


3
FURTADO, Júnia Ferreira. As Câmaras municipais e o poder local: Vila rica um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Gouvêa. In: Tempo, 2009. < https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#> P. 6.-22; RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329 Revista de História, São Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249; MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. In: Ler história, Lisboa, n.10, 1887.
4
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. São Paulo, Cia das Letras, 1995.
5
HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Ângela. As redes clientelares. In: Mottoso, José. História de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.
6
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos trópicos. São Paulo, cia das letras, 2003.
7
GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. São Paulo, Hucitec, 2008.
8
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.


2
Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).


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Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).

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