terça-feira, 28 de junho de 2022

Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar




Mobilidades militares nas cidades contemporâneas

Frank Andrew Davies

GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016




Lançado no Brasil em 2016 pela Boitempo, o livro Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar, do inglês Stephen Graham, dialoga diretamente com a escalada de atenção e investimentos em segurança nas grandes cidades do mundo. Em nosso país, mudanças no perfil socioeconômico da população e compromissos com uma agenda de grandes eventos internacionais alçaram o tema a problema social de primeira ordem nas últimas décadas, mobilizando práticas, recursos e imaginações que, por sua vez, culminaram em diferentes experiências de gestão urbana. A “pacificação” promovida por programas estaduais que preconizavam a presença ostensiva de policiais militares em favelas e territórios de pobreza talvez seja a face mais visível dessas estratégias. Contudo, outras ações governamentais e não governamentais foram mobilizadas a fim de lidar com o fenômeno da criminalidade e da “desordem urbana”: parcerias público-privadas para incremento do controle urbano de bairros centrais e valorizados, consolidação de milícias e grupos paramilitares e a própria reorganização e expansão do Primeiro Comando Capital (PCC) pelas periferias do país estão entre as dinâmicas que têm movimentado nossas rotinas sob toque de guerra.



Cidades sitiadas, entretanto, se dedica a outro contexto, ainda que sob o mesmo pano de fundo: a “Guerra ao Terror”, promovida a partir dos anos 2000 pelos EUA com apoio de países parceiros, oferece ao autor a possibilidade de analisar em perspectiva o avanço de discursos, políticas e tecnologias de monitoramento e vigilância de populações nas grandes cidades do mundo. Evitando nacionalismos metodológicos, a pesquisa de Graham inova ao dar ênfase a fluxos que operam na produção dessa forma de governo, que alcança escala global a partir de circuito variados, com origens, destinos, condições locais e agentes de mediação sui generis. Mais do que explicar o fenômeno do “urbanismo militar” por homogeneizações e simplificações analíticas, essa obra convida pesquisadores a explorarem os aspectos particulares ajustados às variadas situações urbanas.



O livro conta com dez capítulos, e na edição brasileira conta ainda com uma apresentação feita pelo geógrafo Marcelo Lopes de Souza, que contextualiza a obra no contexto nacional. Na perspectiva de Souza, nos últimos anos a “militarização da questão urbana” tem atravessado distintos cenários contemporâneos, e por isso tem ocupado espaço importante em debates e produções científicas. Contudo, para além de uma tendência internacional, o livro de Graham contribui ao identificar como tal processo tem se dado no chamado Norte Global, em especial por intercâmbios e circuitos que envolvem EUA, Israel e Reino Unido. Aos leitores brasileiros, Souza adverte para uma diferença essencial que constitui a maior parte do Sul Global: diferentemente do Norte, onde o objeto dessas práticas são as minorias étnicas, por aqui o alvo é o próprio povo, logo, a maioria.



Ainda que essa diferença fundamental não seja explorada no texto de Graham, sua obra permite compreender que o uso de conceitos como “Norte” e “Sul” eventualmente provoca borrões sobre os trânsitos que comunicam essas realidades. Recorrendo à analogia do “efeito bumerangue” utilizada por Michel Foucault ao descrever técnicas de gestão aplicadas em colônias e depois replicadas nas metrópoles, o autor inglês ressalta que “o novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais” (GRAHAM, 2016, p. 30). Nesse sentido, para Graham o “bumerangue” que movimenta o “novo urbanismo militar” sob diferentes cenários é mais complexo, ainda que organizado por “prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo” (Idem). Além de serviços e técnicas de identificação, rastreamento e policiamento, o autor constata que valores morais e até uma visão própria de mundo tem acompanhado e pautado esses investimentos. A militarização das cidades, portanto, seria fenômeno espacial, político e também cultural, na medida em que reforça lógicas colonizadoras e beligerantes de ordenamento e suspeição sobre a diversidade dos modos de viver e ocupar os espaços urbanos.



Os três primeiros capítulos apresentam e fazem síntese do que o autor entende por “novo urbanismo militar”, definindo suas características. No texto que abre o livro, Graham explica como, no advento da Guerra Fria, a ameaça iminente de destruição urbana conduziu a distintas medidas de mitigação: investidas nos subúrbios como local de moradia para a classe média (possibilitada pelo rodoviarismo e baixo custo dos combustíveis) e a verticalização de edifícios foram algumas das ações que reconfiguraram as cidades sob eventual mira de bombas e disparos. Na era pós-Guerra Fria, entretanto, conflitos dos mais variados tipos têm eclodido e se revelado marcadamente urbanos, de modo que “a guerra volta à cidade” sob novo contexto e roupagem, desafiando e reposicionando limites antes estabelecidos entre segurança pública e nacional. A dissolução do “binarismo westfaliano”, este mesmo binarismo que sedimenta a própria ideia moderna de Estado nacional, tem se dado sob efeitos de uma nova modalidade de guerra. Como conjunto de práticas e representações, o urbanismo militar dissolve distinções entre civis e militares, presumindo um mundo em que os primeiros não existem (Idem, ibid., p. 67).



O segundo capítulo analisa produções discursivas e estéticas que em linhas gerais têm orquestrado esse novo urbanismo. Graham chama atenção para a dinâmica criação e difusão de imaginações urbanas sob essa lógica, que não provém de uma única origem. Em vez disso haveria uma relação entre “espelhos maniqueístas” que, por um lado, sentimentalizam espaços e grupos sociais, e, por outro, desumanizam e desconsideram formas de existência. Um exemplo são os grupos terroristas responsáveis por atentados, facilmente entendidos enquanto antiurbanos; entretanto, sob o espelho desses grupos está parte considerável da direita americana que apoia a Guerra ao Terror, mas que não por isso toma os contextos urbanos com mais apreço. Ao preferir o conforto dos subúrbios e tomar a “nação” sob termos próprios, conservadores têm de igual modo vertido as grandes cidades em território inimigo.



O avanço da militarização das cidades, portanto, tem levado ao acirramento de conflitos externos e internos, impulsionando sentimentos de ódio e intolerância racial. Sob a égide desse processo, a construção imaginativa do “outro” nos espaços urbanos tem se “orientalizado” sob o risco do terrorismo, comprometendo representações alternativas sobre as cidades e seus moradores.



O terceiro capítulo do livro é dedicado a conceituar o fenômeno do novo urbanismo militar, marcando continuidades e rupturas frente a militarização, tomada pelo autor como processo mais longo que se sustenta em divisões sociais e na demonização de inimigos e locais inimigos. Além disso, comenta Graham, “a militarização também envolve a normalização dos paradigmas militares de pensamento, ação e política” (Idem, ibid., p. 122), o que nas formas do “novo urbanismo” tem se dado sob modos próprios. Tendências têm constituído essas dinâmicas, e algumas delas já foram trabalhadas nos capítulos anteriores, entretanto o autor é enfático ao apontar a principal característica do novo urbanismo militar: “a reorganização radical da geografia e da experiência de fronteiras e limites” (Idem, ibid., p. 155).



Nesse sentido, o que é definido na obra por urbanismo se aproxima à ideia de regimes de circulação de populações e de figuração de espaços urbanos, ao passo que destaca no contexto contemporâneo a condição militar que rege pressupostos e regras de controle dos sistemas urbanos. Graham tematiza a cidade, portanto, tomando a mobilidade como objeto de investigação e analisando as chaves de acesso que operam na vida cotidiana. Entende, em afinidade com outros autores, que a circulação de pessoas, objetos e informações marca essencialmente os dias de hoje, e por isso as investidas científicas devem se atentar às “interdependências fluidas”, em vez de estabelecer esferas separadas a esses fenômenos (SHELLER e URRY, 2006).



Nesse livro, as mobilidades que ganham relevo são as que afetam as cidades pela produção e reprodução de fronteiras, que no limite conduzem às situações de guerra. Por essa perspectiva, é possível aproximar os esforços investigativos de Cidades sitiadas à discussão das mobilidades, de modo mais atido às “mobilidades militares” que circunscrevem não apenas o contingente de profissionais e materiais das Forças Armadas e demais forças de segurança, mas o conjunto de prestadores de serviço, operadores indiretos, volumes de dados e equipamentos que acompanham os agentes e suas formas de atuação nos espaços urbanos (WOODWARD e JENKINGS, 2014).



O quarto capítulo da obra se debruça sobre as “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar, reforçando o argumento de que se trata de outra forma de fazer guerra, em um contexto em que antigas fronteiras se dissipam para dar lugar a novos modos de diferenciação e acesso. A “securitização” do conflito urbano, expressa na adesão maciça de técnicas de monitoramento e vigilância, reconfiguram a vida citadina pelo incremento dos enclaves fortificados de luxo e o controle mais ostensivo sobre zonas de pobreza por meio de novas tecnologias de segurança e estratégias de policiamento. O consequente aumento da fragmentação da cidade resulta das dinâmicas tomadas sob pretexto da segurança que, em linhas gerais, desdobram efeitos sobre os direitos e a própria representação do espaço urbano. Considera o autor: “dessa forma, tanto as cidades quanto a cidadania se tornam progressivamente reorganizadas com base nas ideias de mobilidades, direitos e acesso provisórios - em vez de absolutos” (GRAHAM, 2016, p. 211).



Se no contexto pós-Guerra Fria as divisas nacionais têm se tornado mais fluidas, Graham destaca o estabelecimento de novas fronteiras dentro da própria nação, em particular nas cidades. Tais fronteiras não apenas determinam formas de acesso e circulação nos espaços, mas quem são os que merecem ser tomados por “inimigos” nessa guerra. Nesse sentido, a securitização como modalidade de conflito urbano aprofunda visões calcadas na diferenciação social, emulando as ferramentas do poder soberano.



Entre o quinto e o nono capítulo o argumento do livro desvia das explicações gerais acerca do tema e passa a explorar as dimensões empíricas do novo urbanismo propalado pela Guerra ao Terror. Promovida por uma aliança internacional entre mercados e governos de Israel, EUA e países europeus, os conflitos em curso no Oriente Médio têm se aproveitado de técnicas de gestão da população palestina na Faixa de Gaza, a partir daí se espraiando às grandes cidades contemporâneas onde participam da construção das “fronteiras onipresentes”. Nessa parte da obra Graham trata de apresentar e analisar alguns dos “bumerangues” que mobilizam essa nova forma de ordenamentos urbano, o que envolve novas tecnologias mas também antigos modo de pensar as cidades e a ideia de pátria que nesses contextos são atualizados.



O capítulo “Sonho de um robô da guerra” explora imagens e projetos de uma vigilância informatizada que seria imparcial, produtora de mortes por desvios de um padrão técnico pretensamente definido; “Arquipélago de parque temático” aborda os simulacros que constituem esse novo urbanismo: cidades do Sul Global são emuladas em treinamentos militares, seja em videogames - que dispersam da caserna à vida civil, facilitando o trabalho de recrutamento entre a população jovem - ou em instalações físicas feitas nas bases, onde tropas aprendem a operar sobre um espaço genérico “onde Bagdá está em toda parte” (Idem, ibid., p. 261). Ao mesmo tempo o sentido de pátria (“homeland”) também é simulado nas áreas militares em território estrangeiro, onde vilas residenciais se aproximam da estética suburbana americana. Mobilidades militares, portanto, dinamizam formas de representar o espaço por meio de processos de desterritorialização e reterritorialização, o que envolve o lugar do inimigo mas também o espaço da casa pelo qual se deve combater.



O sétimo capítulo, “Lições de urbicídio”, se detém às relações imiscuídas entre EUA e Israel para o desenvolvimento de uma expertise de guerra, que retroalimenta serviços e lógicas de segurança das cidades. Na perspectiva do autor, estaria nessa aproximação o vetor de maior dispersão do novo urbanismo militar para o mundo, e “Desligando as cidades”, o oitavo capítulo, apresenta a versão mais radical da guerra securocrática, calcada na destruição de sistemas de infraestrutura das cidades inimigas. Chamada de desmodernização urbana ou modernização reversa, essa orientação militar tem sido a tônica dos últimos conflitos empreendidos no Oriente Médio e revela a crueldade dessa lógica de guerra, que imagina ao mesmo tempo que produz a diferença em relação ao “outro”. Segundo Graham, a representação de países como “subdesenvolvidos” e de certas populações como bárbaras sustenta a prática que produz ela mesma o “subdesenvolvimento” e a condição de barbárie por meio da destruição das cidades. O penúltimo capítulo trata em especial de um rebatimento do urbanismo militar para a metrópole, em especial os EUA e a disseminação da cultura do “carro de ataque urbano”, os SUVs. A coincidência entre o aumento de vendas desse modelo de automóvel e o advento da Guerra ao Terror é entendida pelo autor como um dos indícios da disseminação de valores particulares sobre a cidade e a relação que os indivíduos têm estabelecido com o espaço: ao reduzir o contato com o mundo externo, os SUVs compõem uma fantasia de controle e de encapsulamento da realidade. Assim o automóvel pode ser pensado sob essa perspectiva como uma dessas “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar.



O último capítulo do livro se dedica às contrageografias. Apresentando diferentes iniciativas que têm desafiado e interrompido as lógicas e os circuitos desse novo modo de urbanismo, Graham conclui que “essas experiências oferecem lições importantes para contestar a militarização urbana” (Idem, ibid., p. 444). Obras de arte, produções cartográficas e reapropriações de tecnologias de controle estão entre os exemplos explorados no encerramento da obra que, em comum, produzem novas narrativas e formas de representação da realidade denunciando os efeitos do urbanismo militar. Mais importante para o autor, contudo, é que essas contrageografias não se sustentam em novos cosmopolitismos e ideais universais de democracia, preferindo em vez disso “atuar contra o silenciamento habitual dos ‘outros’ não ocidentais” (Idem, ibid., p. 470) e construindo com essas populações os sonhos de novos mundos e cidades.



Lançado há uma década, Cidades sitiadas se mantém referência nos debates sobre as cidades contemporâneas. No bojo da profusão de mobilizações interurbanas contra as políticas de segregação espacial e genocídio racial e étnico, o livro de Graham evoca a necessidade por compreender as conexões internacionais que produzem e sedimentam populações e territórios como periféricos, atrasados e indignos da cidade e cidadania. A obra, nesse sentido, estimula novas imaginações e fornece instrumentais analíticos ao pesquisador arguto por desvendar as formas e os aspectos que têm territorializado as mobilidades militares.

Referências
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
SHELLER, Mimi; URRY, John. “The New Mobilities Paradigm”. Environment and Planning, vol. 2, n. 38, pp. 207-226, 2006.
WOODWARD, Rachel; JENKINGS, K. Neil. “Soldier”. In: ADEY, Peter et al. (orgs). The Routledge Handbook of Mobilities. Londres: Routledge, 2014.

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