terça-feira, 12 de outubro de 2021

A sociologia enraizada





Autor de uma vasta obra, José de Souza Martins é um sociólogo inquietante e inspirador. Percorrendo sua trajetória cinquentenária de pesquisas e incursões Brasil adentro, rapidamente encontramos um inesgotável apetite pelos mistérios de nossa vida social. Sua carreira recebe, agora, o devido crédito no livro A sociologia enraizada de José de Souza Martins, organizado pela professora livre-docente Fraya Frehse, ex-aluna e colega de Martins na Universidade de São Paulo (USP).


Incorporando, em meio a novidades textuais específicas, reflexões e peças musicais trazidas a público cinco anos antes numa Jornada Internacional,1 também organizada por Frehse, o livro aqui em foco foi lançado por ocasião do octogésimo aniversário de Martins. Trata-se, como afirma a organizadora na “Introdução”, de uma “Festschrift” (p.13), antologia celebrativa historicamente própria do cenário acadêmico alemão que pretende avaliar criticamente a obra de um cientista de destaque em sua área de atuação, por ocasião de efemérides especiais de sua trajetória de vida. De fato, o clima festivo pode ser observado já na “orelha” do livro, escrita por Fernando Henrique Cardoso, e no prefácio de Maria Arminda do Nascimento Arruda, que exaltam a homenagem em que se traduz a coletânea. Esta, entretanto, simultaneamente se dedica - como resta claro a partir do título - a apresentar a contribuição teórico-metodológica que Martins vem legando às ciências sociais, em particular àquelas dedicadas à sociedade brasileira. Explicita Frehse na introdução que o que Martins denomina sociologia enraizada busca “enraizar socialmente modos de agir, pensar, sentir, imaginar e viver/vivenciar que impregnam a vida cotidiana e que, pela mediação justamente das contradições da própria vida de todo dia, acabam por revelar, a seu modo, processos históricos mais amplos que movem a sociedade brasileira do passado e do presente - e sinalizam para futuros possíveis” (p.14). Assim, a abordagem pode ser entendida também como aquilo que Florestan Fernandes (1959, p.13) chamou de “método de interpretação”, só que, no caso, forjado nos dilemas teórico-metodológicos postos pela vida social brasileira das últimas cinco a seis décadas. Com efeito, Frehse deixa entrever essa interpretação em sua introdução, explicitando-a posteriormente, numa palestra sobre o livro.2

Em diálogo com essa proposta, os quinze ensaios, o poema, a trilha sonora e as muitas fotografias que compõem o livro estão ali dispostos de modo a, em conjunto, demonstrar a peculiaridade dessa sociologia enraizada (p.13), embora individualmente cada contribuição se centre seja em aspectos teóricos e metodológicos da obra de Martins, seja na trajetória de vida deste. De fato, Frehse entende as quatro partes em que se divide o livro como “momentos (dialéticos)” (p.15), que acabam por evidenciar a tese dela sobre a sociologia enraizada a partir de ângulos diferentes.

Na primeira parte, a organizadora congrega interpretações mais ou menos amplas da obra de Martins, elaboradas pela historiadora Chiara Vangelista e pelos sociólogos Leonilde Medeiros, Zander Navarro, Elide Rugai Bastos e Frehse. Medeiros demonstra como a “sociologia rural” de Martins, em seu curso e desenvolvimento teórico-metodológicos, o conduz a uma interpretação das singularidades do capitalismo brasileiro (p.21-45). Isso reaparece, a seu modo, na contribuição de Bastos, só que em relação à “sociedade brasileira” em geral. Navarro, por sua vez, propõe uma leitura da obra de Martins segundo três “fases” temáticas, embora reconheça uma unidade em seu objeto fundamental: os processos sociais rurais no Brasil, por meio dos quais Martins desenvolveria uma “teoria da sociedade brasileira” (p.87). Já Vangelista explora as inovações suscitadas pela obra de Martins especificamente quanto ao estudo das migrações, o que torna seu ensaio diferente dos demais que compõem essa primeira parte do livro. Enfim, também o trabalho de Frehse apresenta uma particularidade, pois, ao perpassar vasta produção de Martins, identifica ali uma peculiar problematização sociológica do espaço até então desapercebida, no debate sociológico (brasileiro). Vem à tona assim o que se pode entender como uma riqueza ainda inexplorada na obra do autor: uma sociologia do espaço que vai “do território ao corpo e vice-versa”, enfrentando também suas respectivas “margens” (p.115).

Percebemos por tudo isso, nesse bloco do livro, um esforço por apresentar a sociologia enraizada de Martins como interpretação abrangente de natureza dialética acerca de meandros diversos que atravessam a vida cotidiana e a história da sociedade brasileira. A perspectiva é passível de destituir os principais dualismos - rural/urbano, tradicional/moderno, dentre outros - que, segundo o próprio Martins (1978, p.43-82) afirmou certa vez, se fizeram presentes na sociologia desde os primórdios.

A segunda parte da coletânea, que une três sociólogos, propõe um percurso pelos “caminhos” percorridos por Martins em sua obra, seus métodos de interpretação e “investigação” - ainda relembrando Fernandes (1959, p.13). De fato, se a influência da USP, tanto pela mediação da chamada “missão francesa” que a inaugura quanto pela da “escola sociológica de São Paulo” de que tal missão é herdeira, é ressaltada ao longo de todo o livro, ganha espaço aqui, pelo olhar de William Héctor Soto, a leitura original do método dialético de Karl Marx (1818-1883) e de Henri Lefebvre (1901-1991). Por sua vez, o ensaio de Sérgio Adorno volta-se aos caminhos revelados por uma imaginação sociológica sensível aos detalhes da vida social e ao imaginário de populações relegadas ao esquecimento. Já José Machado Pais nos mostra que Martins desvenda o oculto da vida (cotidiana) através de uma “hermenêutica da suspeita”, ciente do hiato entre “o que as pessoas fazem e o que creem fazer” (p.167). Única contribuição dessa parte da antologia sensível à pesquisa de campo que tanto marca a sociologia enraizada de Martins, o ensaio de Pais chama a nossa atenção para as “realidades carentes de interpretação perante a cegueira do olhar” (p.167). Os modos de olhar do sociólogo sugerem uma metodologia forjada na observação “dos detalhes, de coisas aparentemente sem importância, secundárias, julgadas dispensáveis, e que, no entanto, se encontram carregadas de todo um peso de significações” (p.213).

E na terceira parte da antologia, são precisamente esses detalhes, enquanto “fontes” da sociologia enraizada de Martins, que recebem atenção. Com o antropólogo Antonio Motta, descobrimos que, para nosso autor, a morte e os mortos podem servir como “um ponto de partida metodológico e mediação empírica para o entendimento de processos sociais mais complexos ocorridos na sociedade brasileira” (p.186). Das obras de arte funerária que povoam os cemitérios paulistanos às fotografias, que, como retoma o também antropólogo Etienne Samain com base em um livro específico de Martins (2008) sobre a sua própria fotografia, fazem “atravessar o espelho das aparências” (p.209), notamos, respectivamente, a morte em sua relação dialética com a vida; o diálogo constante dos vivos com os mortos; o tempo das coisas e dos homens, em imagens fotográficas que revelam tanto quanto ocultam. Encerra essa parte do livro uma poesia-metonímia que, tal como as fotografias que permeiam as páginas anteriores, permite entrever uma realidade muito maior. “O retrato” esboçado por José Jeremias, colega de Martins no Departamento de Sociologia da USP, oferece ao leitor, partindo dos detalhes ínfimos dos versos, a poesia das imagens (de Martins).

Até aqui, o mosaico de narrativas pode ser bem compreendido pelo leitor segundo o nexo proposto pela organizadora. De fato, as “buscas”, os “caminhos” e as “fontes”, tal como expostos nos onze primeiros capítulos, anunciam conjuntamente uma sociologia bastante original. Já na derradeira parte, um panorama de “impactos” dessa abordagem, se o leitor espera contribuições semelhantes aos ensaios até então percorridos - centrados em leituras de conjunto dos trabalhos de nosso autor -, encontrará antes a pessoa de Martins como professor, orientador e intelectual atuante na luta pela terra nos duros anos do regime militar (1964-1985) e da redemocratização. Os capítulos exaltam a amizade e a inspiração que se construiriam no diálogo profissional e pessoal com Martins. A socióloga Marília Sposito evidencia o seu pioneirismo no estudo da vida cotidiana, que reverberou em sua própria trajetória de pesquisadora na área da educação. Já a antropóloga Margarida Moura nos apresenta, através do Martins-orientador, uma “pessoa de pensar-sentir”. É pessoa também que, nas cartas longas e carinhosas escritas por Martins a outro orientando, o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, se revela um amigo atento e intelectualmente generoso. Assim, a sociologia enraizada que constitui o tema principal do livro acaba por expressar-se à luz de impressões pessoais sobre o nosso autor, num movimento narrativo que, ao se delongar sobre a sua trajetória intelectual e de vida, ressalta o impacto de suas qualidades pessoais - também, a seu modo, “enraizadas” - sobre a trajetória pessoal e intelectual dos autores em questão.

Prosseguindo na leitura, o leitor depara com uma reflexão literária acerca de um conto de Albert Camus dedicada a Martins. Com efeito, se o ensaio de Alfredo Bosi parece divergir de todas contribuições anteriores por se referir a nosso autor tão somente na dedicatória, Arruda bem o justifica em seu “Prefácio”: a socióloga identifica esse longínquo capítulo como “uma espécie de alegoria de conjunto dos textos que compõem o volume” (p.9). Tal caracterização encontrará eco no leitor aberto a outras áreas do conhecimento, além da sociologia.

Todavia, o fato é que a obra e a pessoa de Martins abrigam para a literatura um espaço ainda mais abrangente que o da crítica literária. Em 2015, o sociólogo passou a ocupar a cadeira n.22 da Academia Paulista de Letras, e o poeta Paulo Bomfim partilha com o leitor as boas-vindas que então ofereceu ao novo membro vitalício da instituição, que “vê a vida com olhos de poeta, cérebro de sociólogo, espírito de historiador e inquietação de jornalista” (p.306). E eis que o leitor depara, por fim, com a música caipira de Ivan Vilela, pura poesia da roça, cujas dez faixas dedicadas a Martins podem ser reproduzidas por via digital a partir de um link disponível na última página do livro.

Por tudo isso, o leitor terá em mãos um livro diferenciado em sua proposta. Os capítulos, em conjunto, permitem uma leitura da obra de Martins que transcende a anunciada sociologia enraizada. Pela narrativa sugerida, realiza-se o propósito da organizadora, qual seja: “contribuir de maneira sui generis para a história das ciências sociais no Brasil” (p.13). Em meio às luzes sobre a obra de Martins que são lançadas em cada capítulo, restará da leitura uma compreensão crítica de conjunto (e, como tal, sempre passível de discussão) da sociologia e do sociólogo.

Restará, outrossim, o mistério que se anuncia nas entrelinhas de cada capítulo. A sociologia enraizada de José de Souza Martins nos apresenta a um autor vigoroso, compromissado com as tramas aparentemente mais insignificantes da vida social no Brasil, com os processos escamoteados na consciência fraturada e crítica dos simples. Um livro, portanto, que nos conclama incessantemente ao ofício de decifrar o enigma que é a vida social brasileira. Ao trabalho, portanto!

Referências

FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959.
FREHSE, F. (Org.) A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, 2018.
_______. Apresentando A Sociologia Enraizada de José de Souza Martins. In: Apresentando a Sociologia Enraizada de José de Souza Martins, 2019. Palestra apresentada em 7.2.2019 no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. São Paulo: Sesc-SP, 2019.
MARTINS, J. de S. Sobre o modo capitalista de pensar. São Paulo: Hucitec, 1978.
_______. José de Souza Martins. São Paulo: Edusp, 2008. (Col. Artistas da USP).

Notas

1
Os vídeos resultantes da Jornada podem ser encontrados disponíveis em: <http://iptv.usp.br/portal/search.action?idFilter=19030&filterType=103>.
2
Cf. a respeito <http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/apresentando-a-sociologia-enraizada-de-jose-de-souza-martins>; Acesso em: 26 fev. 2019.
Revista Estudos Avançados

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