sexta-feira, 2 de abril de 2021

A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa




Pode a história da África Antiga ser contada através de autores greco-romanos


Can classical authors tell us about Africa’s ancient history?


Rennan Lemos*


* University of Cambridge, Department of Archaeology and Emmanuel College, Cambridge, UK. rdsl3@cam.ac.uk

FURLANI, João Carlos. A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa. Serra, ES: Milfontes, 2019. 271 p.p.

RESUMO:

O livro coletivo parte do pressuposto de que textos de autores greco-romanos podem ser utilizados como fonte para escrevermos a história da África na Antiguidade. A resenha busca problematizar esse pressuposto, com ênfase na diversidade de experiências humanas complexas, em sua maioria ágrafas, no continente africano na Antiguidade.

Palavras-chave: África; História Antiga; Diversidade cultural


ABSTRACT:

The chapters of this edited volume aim to create historical narratives of Africa in Antiquity based on Classical works. The present review criticises this assumption at the same time it emphasises a diverse range of complex human experiences left out of external textual accounts.

Keywords: Africa; Ancient History; Cultural diversity


Quando começa a história do continente africano? Diante da recente expansão de pesquisas e projetos pedagógicos em história da África no Brasil, sobretudo a partir da promulgação da lei n. 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história da África em escolas do país, o livro coletivo ora resenhado pretende suprir uma lacuna; especificamente, aquela relativa à Antiguidade africana. Para os autores dos diversos capítulos, um problema, identificado logo no início da obra coletiva, no prefácio e no capítulo introdutório, é a predominância de estudos sobre passados africanos mais recentes, em detrimento da Antiguidade. Mas talvez isso se deva simplesmente ao fato de que há maior número de pesquisadores, em departamentos de história e áreas afins no Brasil, dedicados ao estudo de outros recortes cronológicos. Assim, por exemplo, há diversos trabalhos recentes no país sobre a história da África que não ignoram a Antiguidade do continente e, algumas vezes, nem mesmo sua pré-história (ver Macedo, 2008; Costa e Silva, 2011; Macedo, 2014; Souza e Mortari, 2016; Frizzo, 2016; Sagredo, 2017; Vieira, 2017). De qualquer maneira, a publicação de um volume dedicado exclusivamente à Antiguidade da África - ou a certa versão dessa Antiguidade - é, sem sombra de dúvidas, muito pertinente.

O livro coletivo pode ser considerado como um todo coerente, na medida em que é resultado de uma disciplina de pós-graduação ofertada na Universidade Federal do Espírito Santo; portanto, nesta resenha, a obra será abordada como uma unidade, em vez de optar por descrever capítulos individuais. O livro busca, seguindo certa postura pós-colonial, incluir a África em narrativas brasileiras sobre a Antiguidade, com base na identificação do papel ativo de populações africanas capazes de produzir sua própria história, e que foram silenciadas por discursos coloniais antigos e modernos. O volume também busca oferecer subsídios para a integração entre essas pesquisas e o ensino de história da África, embora esse aspecto acabe sendo secundário na obra.

Coletivamente, os capítulos desta obra buscam levar adiante sua proposta com base em documentos textuais produzidos por autores greco-romanos, mesmo que o organizador, no capítulo introdutório, afirme “enganar-se quem acredita que distintos povos, culturas, tradições, línguas, religiões e instituições políticas tenham sido inteiramente normalizadas por uma cultura maior e soberana” (p. 17). Ora, sabemos, por exemplo, que os egípcios do Reino Novo (c. 1550-1070 a.C.) utilizaram amplo aparato textual e iconográfico para, ideologicamente, caracterizar os núbios como bárbaros e inferiores - uma tentativa de justificar o imperialismo e a colonização egípcios da região (Smith, 2003; Anthony, 2016; Vieira, 2018). Ou mesmo César, que, em seus Comentarii de Bello Gallico, utilizou uma série de estratégias discursivas para caracterizar ideologicamente seus oponentes de maneira que seu poderio político pudesse sobressair (Webster, 1996; Riggsby, 2006; Rosa, 2007). Um método como o de Le Bart (1998), que identifica as invariantes do discurso político, pode nos ajudar a descortinar estratégias político-ideológicas que sustentam discursos imperialistas/coloniais que buscam simplificar o “outro”. Para que o livro pudesse cumprir efetivamente sua proposta de escrever uma história da África com base em documentos greco-romanos - alguns escritos por autores clássicos originários do norte da África, porém o que não os fazia menos greco-romanos, uma vez que faziam parte de círculos das elites imperiais, como Apuleio (capítulos 8 e 9)1 - seria preciso que o livro incluísse, seja na introdução geral ou de forma diluída em cada capítulo, uma discussão sobre método. Afinal, é possível abordar contextos africanos na Antiguidade com base em documentos produzidos externamente a esses contextos? Como entender a diversidade sociocultural da África Antiga com base em discursos elaborados por estrangeiros, membros de elites imperiais, com uma visão de civilização que garantia ao “outro” um status inferior e bárbaro? Pode a história da África na Antiguidade ser contada através de textos greco-romanos?

O livro coletivo ora resenhado propõe que sim, é possível escrever uma história da África na Antiguidade com base em fontes clássicas. Porém, ao lado da falta de uma discussão metodológica que explique como tais documentos permitem ao pesquisador abordar contextos socioculturais mais diversos e amplos do que os tratados preconceituosamente por autores clássicos no continente africano, o livro parte de uma visão de civilização que é igualmente excludente de realidades materiais diversas por toda África Antiga. Trata-se de uma visão que é, em grande medida, atrelada a um pressuposto status superior conferido a documentos textuais, garantia de “civilização”, entendida por Ventura (Capítulo 2) como:


Uma sociedade que apresenta, em primeiro lugar, uma organização política formal, que costumamos identificar como Estado, um polo da sociedade que detém o monopólio da coerção física e é responsável pela coordenação de projetos coletivos-construção de monumentos, templos, necrópoles - e pela arrecadação dos excedentes, o que, em geral, pressupõe a existência de um sistema de escrita (p. 23).

Tal definição exclui experiências passadas antigas como as das populações nômades dos desertos ao redor do vale do Nilo no Egito e no Sudão, que estabeleceram redes complexas de interação entre diversos grupos nômades, e entre estes e a população assentada no vale do Nilo (Barnard e Duistermaat, 2012; Weschenfelder, 2014; Manzo, 2017); ou grupos ocupantes de regiões no sul do Sudão, na parte subsaariana da África, cujos sítios arqueológicos, como Jebel Moya, oferecem subsídios para que entendamos as relações entre grupos pastoris, e entre estes e o Estado meroítico (Brass et al., 2018). Contextos como esses são ignorados tanto por documentos clássicos quanto por definições tradicionais de civilização; ao contrário, uma definição mais ampla pode ajudar, em termos teórico-metodológicos, a abordar as inúmeras experiências materiais humanas na África na Antiguidade: “a capacidade das sociedades de formar uma comunidade moral -um campo estendido de trocas e interações -apesar de diferenças étnicas, linguísticas, de crenças ou de filiação territorial (Wengrow, 2018, p. XV; ver igualmente Edwards 2019).

Grandes compêndios como o Cambridge history of Africa (Clark, 1982) e o Oxford handbook of African archaeology (Mitchell, Lane, 2013) concordam que a Antiguidade africana pode ser traçada até mesmo à origem da espécie humana no continente -uma ideia que aparece também no capítulo de Ventura (p. 23). Porém, o foco em civilizações que produziram Estado e escrita, aliado ao corpus documental clássico como base para caracterizar amplamente a África Antiga, talvez seja excessivamente excludente da “incrível diversidade e riqueza das experiências africanas em produção de alimentos, complexidade social, urbanismo, arte, formações estatais e comércio internacional através dos últimos 10.000 anos” (Mitchell, Lane, 2013, p. 3; ver também Costa e Silva, 2011). Dessa maneira, o foco do livro coletivo ora resenhado é restrito, e não é representativo da diversidade sociocultural da África Antiga, seja porque acaba limitando o objeto de estudo ao que pode ser abordado a partir de documentos escritos - produzidos externamente aos contextos abordados - ou devido à própria noção de civilização veiculada no capítulo 2, sobre o Egito Antigo, e que pode ser extrapolada como um todo para a obra coletiva.

Entretanto, isso não quer dizer que a obra não apresente elementos promissores, que abrem caminho para pesquisas interessantes e, ao mesmo tempo, para pensar o potencial educativo do corpus documental escolhido em relação à África. É preciso ter muita cautela ao se empregar documentos textuais clássicos para abordar contextos socioculturais diversos e, em sua maioria, ágrafos, porém não pouco complexos. Esse é um tradicional debate em egiptologia, que por muito tempo utilizou-se de documentação puramente textual e iconográfica - produzida pelas elites egípcias em todos os períodos de sua história - para generalizar regras sociais para toda a população (Kemp, 1984). Ao contrário, hoje em dia, com a escavação de contextos associados às não-elites no Egito e no Sudão (ver Kemp et al., 2013; Spencer, 2014), nossa visão sobre a sociedade egípcia é muito mais diversa e complexa, uma vez que a arqueologia oferece acesso direto a populações mal representadas em textos produzidos por aqueles que as dominaram. A aplicação de dados arqueológicos na abordagem crítica de fontes textuais pode abrir interessantes caminhos de pesquisa, sobretudo quando aliada a perspectivas pós-coloniais (ver Costa e Silva, 2011; Smith, 2010).

Alguns capítulos desta obra seguem por esse caminho. Por exemplo, Carvalho, ao tratar do segundo reino Núbio (Meróe) a partir de Heródoto e Diodoro da Sicília, enfatiza a parcialidade e preconceito de autores clássicos ao descrever costumes na Alta Núbia, sobretudo aqueles relacionados à morte. Em contraste com dados arqueológicos provenientes de escavações em Meróe, à autora foi permitido identificar estratégias discursivas, baseadas no estranhamento dos autores clássicos, para simplificar práticas locais complexas, reveladas pelas escavações. Trata-se de um exercício analítico muito interessante que, caso expandido, pode gerar resultados relevantes. Entretanto, tais resultados dependem da cultura material, que permite aos pesquisadores abordar a diversidade de práticas locais, enquanto fontes textuais tornam-se limitadoras da abordagem da diversidade. Igualmente, Soares deixa claro que os textos clássicos estavam “a serviço de um ideal de civilização, não constituindo, desse modo, uma descrição fidedigna dos hábitos e costumes dos povos africanos” (p. 90).

No geral, vários capítulos mostram possibilidades interessantes de pesquisa, mas que acabam sendo limitadas pela documentação clássica utilizada como base. A obra oferece exercícios e caminhos interessantes de pesquisa, sobretudo ao desafiar os textos clássicos e sua visão deturpada dos contextos dos quais tratam. Porém, isso não é suficiente para se abordar a “África Antiga” em sua complexidade e diversidade. Ao contrário, autores clássicos nos permitem contar a história da África Antiga tal como ela não foi. Dessa maneira, textos se tornam fontes secundárias nas adaptações metodológicas que pesquisadores devem fazer ao abordar inúmeras realidades históricas, em sua maioria ágrafas, na África Antiga. Tal como há muito apontado por Ki-Zerbo (2010) na introdução geral da História geral da África, é impossível entender a história da África, sobretudo na Antiguidade, com base somente em um tipo de documento. Fontes textuais produzidas por sociedades complexas africanas na Antiguidade são raras, com exceção do Egito e, muito posteriormente, da Núbia meroítica. Por mais que os autores do livro ora resenhado tenham apontado para a necessidade de enfatizar o caráter exógeno dos textos clássicos, o resultado, que é dependente de uma noção de civilização que é excludente e da falta de uma discussão metodológica clara, é uma história parcial da África na Antiguidade. Afinal, como já havia dito Costa e Silva no prefácio à primeira edição de A enxada e a lança, “para os povos do norte da África, as paisagens além do Saara e a oeste do Mar Vermelho sempre estiveram distantes e sempre foram exóticas”. O livro ora resenhado consiste numa análise parcial, que não representa a vastíssima história das experiências humanas no passado antigo da África, justamente porque não se pode contar a história da África Antiga com base em autores greco-romanos.




REFERÊNCIAS



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1Quando mencionados, capítulos específicos seguem minha própria numeração, já que não foram numerados pela editora.
Revista Tempo - UFF

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