terça-feira, 5 de março de 2019

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária


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Rosana Morais Weg
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo / São Paulo, Brasil.

NOA, F.. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015. 374p. Série Ciências e Artes,

Francisco noa, moçambicano, é doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, de Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane (Maputo, Moçambique), é atualmente reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), também em Moçambique. Estuda colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. É autor de artigos e livros de análise e crítica literária. Dentre eles, Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, livro que ora destacamos.


A obra no espaço e no tempo

Sua tese de doutoramento Literatura colonial. Representação e legitimação - Moçambique como invenção literária, defendida em 2001, deu origem à edição portuguesa de Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002). Em 2015, a editora Kapulana publicou a primeira edição brasileira. A grafia foi adaptada para a versão brasileira da língua portuguesa em conformidade com o acordo ortográfico em vigor, com exceção das citações, que tiveram sua grafia original preservada.


O todo e as partes

Na Introdução, o leitor é apresentado ao foco da análise que encontrará pela frente. O autor destaca o caráter multifacetado e problemático do tema que escolheu tratar: a literatura colonial em Moçambique. No capítulo I, "Literatura colonial: enquadramento teórico e periodológico", o escritor expõe os conceitos que norteiam sua pesquisa, o contexto em que ela se insere e o objeto de seu trabalho. Nos capítulos seguintes, o grande tema Representação é analisado a partir dos romances elencados, segundo aspectos como a verossimilhança, a representação do espaço, a representação do tempo, figuras, papéis e vozes, culminando com a legitimação do texto frente à crítica.

O corpus do trabalho é constituído por dezoito romances escritos por portugueses, no período estabelecido por Francisco Noa: entre 1926/1930 e 1974/1975.1 O ano de 1926 é o da revolução/golpe de Estado em Portugal, e 1930, o ano em que se consolida em Portugal o Estado Novo, regime ditatorial. Esse marco histórico inicial terá repercussão nas colônias e, consequentemente, em suas formas de representação literária das décadas seguintes. Os anos 1974/1975 marcam o final do domínio português nas colônias africanas, e irão também marcar a transição para outras formas de representação, reveladoras de outro sujeito, não mais o colonizador, e sim o sujeito libertado.

Francisco Noa nos oferece uma gama de fundamentos teóricos que vão desde os estudos clássicos mais conhecidos de pesquisadores ocidentais até os de estudiosos menos divulgados entre nós, atentos à mescla de vozes do período colonial.


Rigor e ousadia?

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária, cuja origem remonta a 2001, continua como obra de referência para estudiosos de cultura africana, em especial da produção literária do período colonial em Moçambique. O que lhe confere atualidade e a distingue de outras obras sobre o mesmo assunto é a conjugação do rigor metodológico com a ousadia do tratamento temático. Noa apresenta-nos a literatura não só como reveladora de vozes sociais, mas como parte integrante de um período de conturbação identitária.


Ecos reveladores

Clarificada a distinção entre o processo histórico "colonização" e o sistema "colonialismo", e as relações daí decorrentes, o sistema de representação denominado "literatura colonial" é apresentado pelo autor. Na descrição do corpus da pesquisa, surge a revelação do Outro, do negro colonizado. São identificadas três fases dessa criação literária: a exótica, a doutrinária e a cosmopolita. Além de se conformarem como parte de um procedimento de orientação metodológica, os romances de cada uma das fases são reveladores das mutações por que passa a visão de mundo do colonizador, representada pelo escritor de romances português. De uma literatura de estranhamento provocadora de estupefação, passando pela justificativa da necessidade civilizatória para com o Outro, até a representação, em sua maior parte subliminar, da transição ou mescla das vozes, colonizador e colonizado passam a ser ouvidos em um mesmo texto.


Da provocação à reflexão

O leitor é instado a participar de um percurso espaçotemporal conturbado, em que a sequência de passos não é a tradicional cronológica. Consequentemente, o método adotado para tratar os elementos pertinentes ao processo da produção literária não é o modo convencional, pelo qual cada elemento/romance seria identificado e analisado separadamente um do outro. A proposta do autor é, a partir de um conjunto representativo da literatura colonial em língua portuguesa, trazer à luz o que ficou encoberto por décadas: a cultura do Outro, do que teve sua voz abafada, suas terras tomadas, sua cultura ignorada.

De forma perturbadora, a literatura colonial de autoria de portugueses é revelada com rigor científico por um moçambicano. É como se a literatura colonial fosse um corpo encoberto, durante décadas, por um véu pouco translúcido, encimado por uma fina camada de pó. Revelar essa literatura gera inicialmente reações de incômodo e rejeição. Prudência - ou ignorância consciente - desponta pela proximidade da história tratada. Finalmente, a "demissão da memória" - termo emprestado do autor - é atitude perversa porque encobre a realidade e impede o amadurecimento de um povo.


Verdade histórica ou criação literária?

A verossimilhança e o caráter literário em confronto com a verdade histórica registrada em forma de documento é questão investigada com apuro. A literatura colonial é revisitada como um ato de (re)criação de realidade. O ficcionista português só poderia representar uma realidade ignorada, desconhecida, a africana, sob a forma da invenção e não da representação exata. Além disso, lembra-nos Noa, há o pacto preestabelecido entre o escritor e o leitor sobre a realidade revelada na forma do discurso literário. Assim, o conceito de verossimilhança é alargado nas obras produzidas no período colonial.

Ao refletir sobre a verossimilhança no romance colonial considerando o "verossímil artificial", Noa conduz com maestria o leitor pelo labirinto que é o processo de legitimação da literatura colonial.


O romance como transgressão: romance de espaço

O gênero prevalente da literatura colonial em Moçambique é o romance, gênero transgressor que, em princípio, não poderia conviver com o caráter hegemônico e hierarquizador dessa literatura. No entanto, há uma quebra do cânone literário europeu quando o espaço em foco é o de Moçambique, África. Após essa constatação, Noa identifica e analisa os romances da literatura colonial de Moçambique como sendo "romances de espaço". A literatura colonial aparece como "pária" tanto para a metrópole como para a colônia. Para a primeira, é uma literatura "fora do lugar", deslocada do espaço convencional europeu para o espaço invadido, tomado do Outro. Para a colônia, trata-se da representação de uma visão do mundo invadido, tomado por aquele que tem o domínio da voz e o poder da letra.

O espaço africano é o "lugar performativo" nos romances, escritos em fases diferentes, com variadas representações: o perdido e o recuperado (conquistador/ conquistado); o da movimentação de chegada e partida (cidade/mato, ilha/floresta); e o sensorial (sensações visuais, olfativas, auditivas etc.). O espaço socioeconômico (rural e urbano) é revelador do universo do campo (agricultura, caça, extração), em que desponta a relação entre colonos e trabalhadores negros; e o universo das cidades (casa do colono, ruas, cabarés, escritórios) com o comércio de bens de consumo. Noa identifica no romance colonial o espaço como lugar sociocultural, como nação e como dimensão utópica.


A complexidade temporal: o Eu e o Outro

Os tempos de Balzac e de Proust, segundo Noa, são referenciais para a análise da relação entre narratividade e temporalidade nos romances representativos das três fases identificadas nos romances coloniais de Moçambique. Apesar de o exotismo sugerir surpresa e ruptura de expectativas, o romance de cunho orientalista acaba por atender à linearidade esperada. O leitor da literatura exótica espera o inusitado, que se confirma. A narrativa épica da fase doutrinária também é confirmadora de um conjunto de ideias já conhecidas, quando digressões descritivas apenas emolduram eventos conhecidos. São tempos, os das fases da literatura exótica e da doutrinária, lentos, repletos de catálises, cujas sequências narrativas podem ser mapeadas por um modelo estrutural do romance colonial proposto por Noa. Em um salto diferencial, o tempo na fase cosmopolita é proustiano, ao repercutir um quadro de inquietações e transformações sociais que despontam em um discurso de conotação fragmentária. Perturbações sociais e políticas do quadro colonial moribundo deixam marcas nos elementos constitutivos da ficção colonial moçambicana.


A presença dos seres e das vozes híbridas

O modo pelo qual os seres se fazem presentes nos romances analisados é detectado pela análise do dito explícito e do não dito ou dito indiretamente. Negros, mulatos, assimilados, indianos e mulheres são revelados por vozes híbridas, do autor invasivo, do narrador intocável e das personagens cujas linguagens passam pela mudez ou pela ausência de ação, pela voz corporal ou pelo sofrimento incontido. O protagonismo do colono branco, por sua vez, é legitimado não só pela voz preponderante como pela ação explicitada pela representação do poder.


A revelação da imagem

Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária lembra-nos o processo de revelação de fotografias, quando mergulhávamos um filme em líquido e com olhares atentos observávamos a emersão da imagem que havíamos registrado em algum instante do passado.


REFERÊNCIA

NOA, F. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015. 374p. (Série Ciências e Artes) 

Rosana Morais Weg é doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre o escritor brasileiro Aníbal Machado. Foi docente em Maputo, Moçambique, nos anos de 1980, na área de Formação de Professores. @ - roweg@kapulana.com.br
Revista Estudos Avançados

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