terça-feira, 5 de março de 2019

A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg

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A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg


Ana Paula Tavares Magalhães
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo / São Paulo, Brasil.


BACCEGA, M., A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg. São Paulo: Hedra, 2015.


Uma das características mais emblemáticas da literatura medieval é aquilo que Paul Zumthor (1978) denomina "ausência de convenção de ficcionalidade". As relações entre as narrativas e o mundo concreto se operam pela mediação do elemento moral, o qual confere lógica ao discurso e garante sua viabilidade perante o público receptor. Por essa razão, o elemento que rompe com a lógica da natureza não destoa no conjunto da narrativa, devendo, antes, reforçá-lo. Quando os cavaleiros de Artur deparam com uma coluna de mármore que flutua, tendo presa a si uma espada, ocorre uma automática naturalização do "maravilhoso". Esse atua no sentido de reforçar uma narrativa que tem como objetivo antes a prova da honra (honor) do que o critério da verossimilhança.1 Trata-se de um conjunto complexo de conteúdos oriundos de tradições diversas, catalisados em um éthos cristão, que busca - e negocia, mediante um processo de acomodações - sua hegemonia nas sociedades da Idade Média Central.

Ao longo de cerca de um século, muitos estudiosos dedicaram-se à chamada "matéria da Bretanha" - conjunto de conteúdos oriundo de tradições ancestrais, radicadas nas ilhas da Grã-Bretanha, e apropriadas pela matriz cristã. Estudos em disciplinas de Antropologia, Filologia, Psicologia, História, entre outros, levaram a uma grande produção bibliográfica, na qual, em meados dos anos 1980, o leitor diletante não conseguiria discernir a pesquisa de bases científicas da pura especulação. Nos últimos anos, o tratamento do tema passou por algumas mudanças - dentre elas, uma maior ênfase no corpus documental enquanto fonte histórica, além de pesquisas privilegiando a produção do discurso em si - com sua técnica, seus recursos de linguagem, sua intencionalidade, sua recepção social. Importantes traduções, de diversos manuscritos, foram elaboradas, com ênfase para A demanda do Santo Graal. Sua narrativa é preponderante porque se fundamenta na tradição cristã e crística - que coloca o cálice da consagração como prêmio atribuído ao cristão perfeito. O cálice é a representação da própria paixão de Cristo, evento central e fundador do cristianismo. Mas sua conquista, ainda que levada a cabo por um homem só, deve superar o plano individual e acarretar na salvação de toda a comunidade cristã. Os manuscritos proliferaram em diversas línguas, a partir da circulação da matéria em ambientes laicos e clericais. Uma importante publicação, de Heitor Megale (2008), traz uma edição, comentada de forma muitíssimo competente, da tradução portuguesa d'A demanda do Santo Graal, considerada o texto mais completo da segunda prosificação dos romances arturianos (meados do século XIII), e que se encontra no códice português da Biblioteca Nacional de Viena. Ciente do significado do escrito, Megale ressalta a persistência do mito arturiano em Portugal no plano de uma longa duração - mediante apropriações e ressignificações.2

A edição que agora se apresenta é fruto de grande erudição e exercício de crítica documental. A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg, publicado em 2015, pela Hedra (São Paulo), tem tradução e texto crítico de Marcus Baccega, pesquisador nos campos de História da Cultura e da Religião, e com ampla formação em Humanidades. O manuscrito d'A demanda do Santo Graal alemã (Die Suche nach dem Gral) compõe, juntamente com o manuscrito d'A morte do rei Artur (Der Todd es Königs Artus), a terceira parte do Códice 147 da Biblioteca Palatina Germânica de Heidelberg. Trata-se de um conjunto que se baseia nos manuscritos franceses da chamada primeira prosificação, diferentemente do manuscrito português de que se ocupou Megale. A esse ciclo dá-se o nome de Vulgata. O autor alude, inclusive, à complexidade da documentação, uma vez que o códice em questão, embora contenha, majoritariamente, manuscritos produzidos na segunda metade do século XIII, só se consolidou no século XV, tendo, ainda, sofrido interpolações ao longo do século XVI.

O pendor do historiador condiciona, naturalmente, uma edição/tradução que busca preservar as características do documento, procurando manter proximidade das estruturas originais de escrita. Ressaltamos esse aspecto a fim de sublinhar os objetivos do trabalho, bem como a linha teórico-metodológica que orienta sua produção. Se a obra de Megale preencheu as lacunas de um texto por vezes truncado e lhe conferiu fluidez - trabalho literário de primeira grandeza, único, excelente na elaboração de sua proposta -, a obra de Baccega procurou manter - na medida em que a tradução do alemão o permitia - os conflitos textuais, preenchendo apenas parcialmente as lacunas identificadas. O texto parece, muitas vezes, carecer da lógica que a leitura contemporânea demanda; prevalece, contudo, o lógos de uma determinada visão - do mundo e do homem - que se expressa por uma forma diferente da nossa: a um conteúdo destituído de convenção ficcional corresponde uma forma que expressa necessidades igualmente específicas. Por essa razão, acreditamos que a obra de Baccega é complementar à de Megale, na medida em que se serve de um manuscrito diferente, baseado em matriz diversa, sob outra cultura/língua, e, por fim, sob uma nova perspectiva de análise e tratamento. A compreensão do leitor não é, de maneira nenhuma, comprometida por esse recurso, embora o estranhamento inicial seja inevitável. A experiência da leitura revela, por fim, uma civilização em sua totalidade - seus modos de agir e reagir; seus medos e destemores; aquilo que diz e aquilo que escolhe calar; aquilo que valoriza e aquilo que condena.

A Demanda de Baccega reúne, portanto, aspectos de princípio e de fim. Trata-se de um trabalho de enorme erudição no qual foi empenhado louvável esforço para a reconstituição de partes de um universo, que se nos apresenta como vivo, pulsante; nesse sentido, podemos afirmar que a obra é fim, conclusão, superação crítica de um diálogo do historiador com a fonte. Por outro lado, a obra é, ainda, a própria fonte - traduzida, disponibilizada ao leitor em língua portuguesa -, e carrega os dilemas de personagens e situações - que são também os impasses de uma sociedade; por essa razão, a obra é princípio, ou seja, documento do qual outros historiadores poderão se apropriar, sob sua própria perspectiva de análise, para a produção de novas historiografias. O livro divide-se em duas grandes seções, sendo a primeira a tradução da Demanda do manuscrito de Heidelberg, e a segunda, um apêndice intitulado "O Santo Graal, o 'Ciclo de Artur' e o mundo moderno". Esse último consiste em um texto de caráter analítico e explicativo, no qual o autor elabora uma crítica ao documento, procurando traçar suas origens, trajetória, interferências, produção, reprodução e recepção. Além disso, busca-se estabelecer o lugar do texto no contexto de sua produção, o que resulta em importantes considerações sobre a Idade Média e suas autorrepresentações. A tradução apresenta-se em oito capítulos, nos quais é possível observar um significativo trânsito de personagens célebres em várias narrativas dos ciclos arturianos. Trata-se de uma matriz, amplamente conhecida e partilhada entre escritores e leitores/ouvintes, e que permitia que aspectos considerados "familiares" retornassem às narrativas e fossem acolhidos como "naturais" daquele texto. A dinâmica da produção e circulação desse conjunto denominado, com propriedade, "ciclo" implicava a leitura/oitiva de textos prévios pelas gerações posteriores, o que resultava na recepção de uma literatura específica, cujas regras eram previamente conhecidas e acordadas. Por isso, voltamos a encontrar, aqui, tipos como Percival - ou Parsifal -, o homem puro, mas que deve percorrer um longo caminho; Galvão - ou Gawin - o homem de corte, nobre por excelência; e o próprio Lancelot, o cavaleiro destinado ao Graal, mas dele afastado pela mácula do pecado.

Trata-se de um conjunto de heróis em processo de sacralização, o que corresponde à progressiva cristianização pela qual passaram as matérias das narrativas - a chamada "matéria da Bretanha". Virtudes consideradas cristãs - a humildade, a justiça, a coragem, entre outras - e incorporadas à mentalidade social ao longo de muitas gerações passaram a caracterizar, por excelência, os heróis arturianos. Os modelos sociais valorizados foram transmitidos pelo discurso clerical e reforçados pela narrativa laica - caso dos ciclos arturianos. O herói a cavalo reúne as características relacionadas por São Bernardo de Claraval, no século XII, ao compor o Elogio da Nova Milícia. Esse foi composto com o fim de louvar os monges-cavaleiros da Ordem dos Templários, mas acabou por legar um modelo literário em que as duas figuras - o monge e o cavaleiro - se aproximaram e associaram. A narrativa dos feitos heroicos passou, paulatinamente, a integrar um cânone discursivo cristão, e a figura do herói a cavalo - o cavaleiro - começou a flertar abertamente com a santidade. Mas a santidade implícita na missão do Graal é também a santidade recalcitrante e conflituosa de muitas vidas de santos da Idade Média: ela tende a valorizar um vir-a-ser, e serve-se da noção de que o perfeito cavaleiro só pode ser construído no percurso de sua busca. Assim é para o peregrino, representação da condição humana na terra, cujo fim se encontra nos meios, a saber, o trajeto - a peregrinação.

O Lancelot-peregrino que salta do texto de Baccega é um homem contrito. Cavaleiro que, tendo caído pelo pecado, manteve a honra (honor); fora o melhor - doravante, é penitente e peregrino. Sua ação orienta-o ao fim, mas ele se sabe não merecedor da recompensa - deve propiciá-la a outro(s). A recompensa - a (re)conquista do Graal - é uma obra em comum. Sua consecução, em que pesem os atributos do indivíduo que deve executá-la ("é uma aventura maravilhosa, que não deve ser levada ao fim, a não ser que o faça aquele que lá deve superar, com bem e com cavalaria, todos os companheiros da Távola Redonda"; p.339), supõe uma finalidade social, um bem comum. Por essa razão, o reino e a sociedade do Graal possuem finalidade salvífica: a conquista do objeto material implica a afluência do bem imaterial, a salvação das almas. Nesse sentido, Artur é o bom rei cristão, que, ao comandar a Demanda, atua em proveito da salus populi. E Lancelot, o melhor cavaleiro da Távola do Rei - mas que perdeu a capacidade de tocar o Graal - é um elemento que atua em prol do conciliarismo: o corpo de conselheiros do rei assume papel fundamental - prevalente sobre o próprio monarca - na obra salvífica do Graal. Baccega conhece a necessidade de diminuir Lancelot a fim de lhe proporcionar a possibilidade da penitência, única saída para o personagem. Por essa razão, se, por um lado, o grande cavaleiro se encontra diminuído sob a perspectiva hierárquica da corte de Artur, por outro, sua ação permanece fundamental do ponto de vista da narrativa - é ela que viabiliza a saga, desde o primeiro momento, quando ele se põe em marcha, ao chamado da donzela que cavalga. O Lancelot da Demanda é, também, figura apoteótica de um processo de subjetivação que teve lugar entre os séculos XII e XIII, e que, do ponto de vista da relação do fiel com o sagrado, resultaria na elaboração da prática do "exame de consciência". A relação adúltera entre Lancelot e a rainha Ginevra - com a subsequente contrição de Lancelot - retoma, com efeito, uma trajetória de esforços no sentido de normatizar e regular o comportamento de uma aristocracia guerreira na Idade Média,3 e que deveria conduzir ao seu enquadramento na ordem social. O Lancelot penitente representa a (re)conciliação da cavalaria com os valores de corte, o que deveria resultar em um enquadramento social dos milites.

O Percival de Baccega, por sua vez, é igualmente humano, em sua atitude humilde diante da grandeza da empreitada. Ele cultiva uma perspectiva reverente, quase real, que nos remete a um personagem atemporal - que poderia estar hoje entre nós. Seu destino e sua atribuição são grandiosos, e até sobrenaturais, mas sua atitude o vincula permanentemente àquilo que há de mais humano - frágil e resiliente, esse Percival é um intérprete da condição do homem. Somente o caminho que ele percorre é capaz de torná-lo apto àquilo que já lhe está predestinado. Baccega assume a responsabilidade por uma tradução por vezes aparentemente conflitante, na medida em que é do conflito que emerge a maturidade: seu Percival deve deixar de ser criança para tornar-se homem - o caminho o obriga, ao mesmo tempo que a conquista do Graal o pressupõe. Se Percival personifica o cavaleiro do conciliarismo, ao representar a comunidade, Galvão é o cavaleiro da corte, aquele que se encontra ao lado do rei, personifica o princípio hierárquico e apresenta uma distinção visível, palpável. Mas não há, ainda, oposição entre as duas figuras, uma vez que elas são apresentadas como complementares. Ao retratá-los, Baccega mantém as tintas sob seu controle, e nos dá ciência de que estamos diante de uma sociedade agrária, territorial, cristã. Não há liberdade fora da órbita de influência de um senhor, na mesma medida em que não há salvação fora da crença no Senhor. A ordem do romance arturiano emula a ordenação de um mundo feudal, o qual pretende, ainda, emular a própria ordem celeste.

A descoberta, no Ocidente medieval, da obra de Dionísio, o Areopagita, também conhecido como Pseudo-Dionísio, viria a exercer forte impacto sobre as teorias sobre a organização das sociedades. De raiz platônica, esse conjunto de escritos foi traduzido pela primeira vez no século IX por João Scott Eriúgena. As obras De coelestibus hierarchia e De ecclesiastica hierarchia viriam a reforçar um pensamento que primava pela hegemonia do mundo espiritual sobre o material, retomando a exegese da carta de Paulo (I Cor 13) segundo a qual haveria uma relação de espelhamento entre as ordens terrestre e celeste. Se as cortes na terra emulavam, de forma geral, a corte celestial, é certo que a corte arturiana, particularmente, teria sido concebida para replicar não somente a corte divina, como também a sociedade apostólica e seus principais eventos. No momento em que a tia de Percival fala ao sobrinho sobre o "Assento Maravilhoso", atribui-se à sociedade arturiana um papel de continuidade no interior do plano divino. Ela assim o diz: "Vós bem sabeis que Jesus Cristo foi entre os apóstolos senhor e mestre por mandato e a partir disto foi imaginada a távola do Santo Graal por José [de Arimateia] e a távola redonda por vontade dos cavaleiros" (p.105). Por essa razão, os eventos que presidem à chamada Távola Redonda se encontram em relação direta com os eventos da sociedade crística e da paixão de Cristo, na medida em que prolongam aquelas experiências ao mesmo tempo em que presentificam os fatos sagrados. Por essa razão, podemos afirmar que a sociedade arturiana possui um forte aspecto sacramental: na medida em que recorda e revive o sagrado, atua como elemento ritual, que se liga ao sagrado de forma direta, sem a necessidade de mediação, como na celebração eucarística ou na conferência das ordens eclesiásticas.

Em sua tese de doutorado, defendida em 2012, Baccega elaborou, a partir de uma argumentação consistente e um amplo espectro bibliográfico, as conexões entre a representação da sociedade arturiana e a questão do sacramento cristão. A dimensão sacramental do romance arturiano implica, para além de seus vínculos com a instituição e o ensinamento cristãos, uma tentativa de recuperar uma essência que subjaz à própria condição humana. Esse anseio se desdobra na busca pelo sagrado, cuja trajetória concreta, no espaço físico, apresenta um correspondente direto com o caminho interno, subjetivo, por meio do qual o homem espera encontrar e conhecer a si mesmo. Nesse sentido, vale, para a demanda tanto quanto para a ortodoxia cristã, a noção agostiniana de que o homem conhece a Deus na medida em que se conhece - o conhecimento é, para Agostinho, um recurso que faculta ao homem a capacidade de reconhecer e recuperar a similitudo perdida. A demanda fala ao coração dos homens, tanto quanto à sua sede de aventura, e à vocação cavaleiresca para submeter-se a provas. Se, por um lado, cabe ao cavaleiro realizá-la em virtude de seu pendor para a aventura, por outro, a demanda é obra humana, e visa religar o homem com o sagrado - e reconciliar-se com a essência sagrada dentro de si é o destino atribuído a toda a humanidade.


NOTAS

1Utiliza-se a expressão "verdade moral" para designar uma narrativa que não depende da História, mas da disposição correta e harmoniosa dos componentes textuais (cf. Amor, 2011, p.71-90).

2 Heitor Megale (2008) faz alusão, na introdução à sua edição, à retomada do mito arturiano no contexto do mito messiânico de Dom Sebastião.

3A esse respeito, cite-se Huizinga (2010).


REFERÊNCIAS

AMOR, L. La dimensión social del roman artúrico del siglo XII. In: RODRIGUEZ, G. (Dir.) Cuestiones de Historia Medieval, v.2. Buenos Aires: Selectus, 2011. p.71-90. [ Links ]

BACCEGA, M. A demanda do Santo Graal: o manuscrito de Heidelberg. São Paulo: Hedra, 2015. [ Links ]

HUIZINGA, J. O outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. [ Links ]

MEGALE, H. A demanda do Santo Graal. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. [ Links ]

ZUMTHOR, P. Genèse et évolution du genre. In: Grundriss der Romanischen Literatur des Mittelalters: Le Roman jusq'à la fin du XIIIe. siècle. Heidelberg: Carl Winter, 1978. [ Links ]


Ana Paula Tavares Magalhães é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. @ - apmagalh@usp.br
Revista Estudos Avançados

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