quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O remanescente – volume um: O tempo no exílio


Autor recompõe história de seus antepassados a partir da descoberta de documentos de família

Historiador da arte Rafael Cardoso lança romance baseado na vida do bisavô, Hugo Simon


Numa suntuosa mansão berlinense, os elegantes convidados desfilam sorrisos, fama e sobrenomes. O ano é 1930, e estamos em plena República de Weimar. Os donos da requintada casa atendem pelos nomes de Hugo e Gertrud Simon. Ele é banqueiro, ministro das Finanças da Prússia, então o estado que correspondia a 60% do território nacional. É, também, um conhecido colecionador de arte.

Entre os convidados estão o escultor Aristide Maillol, homenageado do dia, aproveitando sua passagem por Berlim; o físico Albert Einstein, em torno de quem se avolumam curiosidades relativas à sua ideia de religiosidade; o conde Harry Kessler, diplomata, editor, incentivador de diversas artes e um dos primeiros a vislumbrar a ideia de uma Europa unificada.

A cena desse almoço, composta quase como se fosse a sequência de abertura de um longa-metragem, compõe o primeiro capítulo de O remanescente – O tempo no exílio, volume um do romance de estreia do historiador da arte Rafael Cardoso. Na descrição da cena, parece que as palavras evocam o clima e suas variantes, da tensão da anfitriã para que tudo dê certo, passando pelo arranjo da mesa (como não lembrar de O leopardo, de Luchino Visconti?), ao silêncio nervoso após os questionamentos a Einstein.

Como Maillol e Einstein, Simon foi um personagem verídico, bisavô do autor. Ao revirar antigos documentos de família, Cardoso foi puxando os fios da história dos seus, que começou a mudar pouco tempo depois desse fatídico almoço. Nos anos seguintes, a tensão foi crescente, explodiu com a ascensão de Hitler, o que obrigou Simon, a mulher, as duas filhas e o genro a fugirem, primeiro para a França, depois para o Brasil, não sem viver as incertezas do embarque e uma rota de desencontros.

Para trás, havia ficado a fortuna da família, não só em dinheiro mas também em obras de arte. Assim como Cardoso, muitos outros membros de famílias escorraçadas da Alemanha e de outros países europeus durante a guerra, então donos legítimos de obras de arte tungadas pelo nazismo e por oportunistas de plantão, vão surgindo e contando suas histórias, como Simon Goodman (Degas, Renoir e o Relógio de Orfeu, ver ao fim do texto) ou Maria Altmann, vivida por Helen Mirren em A dama dourada (2015, de Simon Curtis).

Mais de 70 anos depois do final da Segunda Guerra, são histórias que continuam a sair dos escombros reais e simbólicos que marcaram a vida de tanta gente. Ainda que hoje em dia pareçam não ter força suficiente para evitar que se produzam novas catástrofes, permitem, como em O remanescente, que se conte boa parte da história do século 20. No livro de Cardoso, temos ainda muito da luta contra o nazismo na América do Sul. Nem sempre com a mesma força da sequência inicial, mas sempre mantendo o interesse vivo na história. Ou melhor, nas histórias: a pessoal e a coletiva.

O remanescente – volume um: O tempo no exílio
Autor: Rafael Cardoso
Editora: Companhia das Letras
496 páginas
Preço: R$ 59,90 / e-book: R$ 39,90

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