quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Heresias do marxismo brasileiro: a agonia de Caio Prado Júnior



Deni Alfaro Rubbo
Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

EM UM TEXTO publicado no primeiro número da revista Amauta, José Carlos Mariátegui apontava que um dos trunfos da obra do filósofo espanhol Miguel de Unamuno era de reanimar a palavra “agonia”. Distante do significado comum que costuma exprimir, “prelúdio da morte”, “conclusão da vida”, agonia como dor permanente, a agonia teria um sentido quase contrário: vida, combate, luta. Segundo o pensador peruano, “agoniza aquele que vive lutando - lutando contra a própria vida. E contra a morte” (Mariátegui, 1971, p.116).

No Brasil, a trajetória e a obra de Caio Prado Júnior (doravante, CPJ), militante político dedicado e intelectual de prestígio, pode ser um exemplo dessa “agonia” nos termos de Mariátegui, pois não apenas dedicou toda sua vida à luta pelo socialismo, como também encarou com crivo crítico as ideias e práticas políticas da esquerda tradicional brasileira. Não por acaso, durante seu percurso, “Caíto” – era assim chamado pelos amigos e familiares mais íntimos - sofreu acusações de toda sorte: “burguês”, “aristocrata”, “reformista”, “radical”, “rebelde”, “eclético”... Pensar por conta própria, eis o pecado da heresia. Ora, como bem dizia Bernard Shaw (apud Mariátegui, 2014, p. 193) , “toda pessoa verdadeiramente revolucionária é uma herege”. Quanto mais as pesquisas avançam no campo da história social e intelectual do marxismo do século XX, mais a frase do escritor inglês torna-se atual. Afinal, o totalitarismo de Estado e de partido muitas vezes ocultou (ou liquidou) personagens situados à esquerda dissidente que procuravam formular ideias teóricas e políticas de maneira independente e em oposição a dogmas da rígida ortodoxia.

O recém-lançado ensaio político biográfico Caio Prado Júnior, uma biografia política, narrativa impecável, repleta de revelações, atenta-se justamente para a relação de CPJ com o “mundo socialista”. Luiz Bernardo Pericás (2016), professor de História Econômica da Universidade de São Paulo (USP), esquadrinha sua militância conturbada no Partido Comunista Brasileiro (PCB); as leituras dos clássicos marxistas; as viagens à então URSS, a Cuba e a China; os debates sobre a revolução brasileira; a experiência carcerária; a atitude em relação ao golpe civil militar; as relações com diversos intelectuais progressistas nacionais e estrangeiros, assim como o desenvolvimento teórico dessa que é uma das principais figuras do marxismo brasileiro. Procura construir uma narrativa cronológica da trajetória de CPJ sempre acompanhado de uma rigorosa contextualização política, econômica, social e cultural da realidade brasileira e dos principais acontecimentos internacionais.

Após seu lançamento, o livro conseguiu um grande feito: foi laureado com o Prêmio Intelectual do Ano – Troféu Juca Pato pela União Brasileira de Escritores (UBE). A entidade que outorgou a premiação logrou dois interessantes feitos: homenagear tanto o biógrafo, quanto o biografado. Vale lembrar a título de curiosidade que CPJ já havia recebido o mesmo prêmio em 1966 com a publicação de A revolução brasileira.

O empreendimento do livro durou praticamente seis anos até seu arremate. As fontes de pesquisa foram diversificadas e abundantes. Pericás pesquisou em arquivos públicos e particulares, com destaque para o do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, onde se encontra a maior parte do acervo do intelectual paulista; consultou centenas de documentos inéditos (tanto aqueles de caráter pessoal como de órgãos de segurança); entrevistou dezenas de amigos, familiares e estudiosos; e, por fim, realizou um extenso levantamento bibliográfico. Essa obsessão por buscar elementos comprobatórios, principalmente por meio da documentação referente à época com o objetivo de verificar pormenores de determinados episódios, datas, lugares, justifica-se na medida em que a maioria dos livros e artigos sobre CPJ reproduziram erros de outros trabalhos. Para ilustrar a envergadura do projeto do livro, basta observar as notas bibliográficas e críticas localizadas ao final do livro, que ultrapassam mais de cem páginas.

Tamanha quantidade de fontes foi fundamental para traçar um perfil distinto do retrato amiúde difundido por alguns estudiosos. Para eles, o intelectual paulista seria apenas um intérprete e estudioso da realidade brasileira, e seus vínculos com a militância política seriam mencionados quase que por acidente. Em suma, esboçava-se um personagem desvencilhado de suas práticas políticas e sociais, como se elas fossem apenas um acessório do conjunto de sua trajetória.

Em contrapartida, nos doze capítulos de Caio Prado Júnior, uma biografia política as marcas históricas de sua passagem pelo mundo social e político ganham uma nova imagem. Apresenta-se um personagem complexo, multifacetado, permeável por contradições e de vida conturbada. Em oposição aos modelos com “personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas”, conforme alertava o historiador italiano Giovanni Levi (2006, p.169), Pericás (2016, p.24) retrata, portanto, um personagem “profano”:




Na realidade, para Caio, o marxismo, o engajamento social e partidário e as experiências socialistas não eram acessórios, mas elementos essenciais em sua trajetória e visão de mundo; não eram apenas ferramentas para compreender o processo histórico nacional, mas aspectos primordiais de sua vida e de sua luta por mudanças estruturais no país.

Trajetória inquieta e aposta comunista

Nascido em São Paulo em 11 de fevereiro de 1907, Caio Prado Júnior foi oriundo de importantes famílias da elite paulistana, ligadas à administração de estradas de ferro, ações na bolsa de valores e proprietárias de fazendas de café. Durante a infância residiu no casarão de seus avós maternos, onde foi educado por preceptoras e governantas alemãs. No início da adolescência, em 1918, o marxista paulista ingressou no Colégio São Luís, instituição dirigida por padres jesuítas, com passagem na Independent Preparatory School no Reino Unido. Em 1924, ingressou no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da afamada Faculdade de Direito do Largo São Francisco, formando-se em 1928, aos 21 anos.

No primeiro capítulo dessa biografia política (“O ingresso ao PCB”), Pericás mostra os primeiros movimentos de CPJ na militância política. Filia-se primeiramente ao Partido Democrático (PD), em 1928, formado por setores da classe média vinculados a fazendeiros de café mas dissidentes da oligarquia rural tradicional, ainda que esse partido não apresentasse o problema de classe e um perfil ideológico da legenda. No entanto, essa aproximação durou apenas até 1931, quando se desligou do partido que, segundo suas palavras, havia adotado o mesmo caminho da “situação” e um comportamento “politiqueiro”. Ingressou no PCB, em 1932, quando já estava casado com sua primeira esposa e com dois filhos. Pericás relata que houve alguns sacrifícios pessoais em decorrência dessa escolha, já que CPJ optou por uma ruptura ideológica com sua própria classe social. Há vários exemplos no livro de como o historiador paulista transformou-se numa “figura indesejável” nos círculos que frequentava e, principalmente, de como a opção pelo comunismo fez que ele arcasse com consequências nas dimensões familiar, afetiva e profissional. Como afirma Pericás (2016, p.33-4):

[CPJ] expôs a si mesmo e à sua família à execração pública, foi constantemente vigiado pelos órgãos de segurança ao longo dos anos, teve que se afastar daqueles que amava nas diferentes ocasiões em que foi detido e encarcerado, viu-se obrigado a se autoexilar durante o governo Vargas e a ditadura militar e, ainda assim, recebeu críticas dos mais diferentes setores partidários, tanto da esquerda quanto da direita.

De todo modo, um dos elementos que não se alteraram nessa trajetória de CPJ, mesmo com a aposta comunista, foi o conforto econômico que sempre acompanhou, herdado de sua rica família. Foi assim, inclusive, que pôde desembolsar quantias significativas em proveito do partido, do trabalho intelectual e de empreendimentos editoriais custosos como parte de sua militância política.

Participa da Aliança Nacional Libertadora (ANL) como presidente regional de São Paulo e como contribuinte mensal no financiamento da organização política, além de subsidiar grupos espiões em partidos conservadores (Pericás, 2016, p.101). Trata-se de um novo momento de sua militância, com mais responsabilidades, analisada no capítulo quatro (“Os anos de fogo: da ANL ao cárcere”). Em julho de 1935, com a ANL na ilegalidade e posterior insurreição, centenas de participantes são presos, dentre os quais CPJ. Nesse mesmo capítulo, por meio das cartas que trocava com sua família, fartamente citadas no livro, é possível conhecer como era a vida cotidiana do marxista brasileiro na prisão. Nos meses de cárcere, viveu em péssimas condições, com uma saúde irregular, saudades dos parentes. Depois de libertado, em 1937, exila-se na França, onde acompanha cursos na Sorbonne.

Ao retornar ao Brasil em 1939, já era uma das principais personalidades do meio intelectual no combate ao autoritarismo, como delineado no quinto capítulo do livro (“Novas trincheiras de luta”): CPJ “transitava com desenvoltura e habilidade entre a intelectualidade e o meio político oposicionista. Era a pessoa ideal para cumprir a função de articulador dos diferentes setores que se opunham a Getúlio” (ibidem, p.119). Provavelmente essas habilidades políticas foram o trampolim para sua candidatura e eleição como deputado constituinte em 1947; mas, como se sabe, sua experiência parlamentar foi efêmera, pois rapidamente houve cassação dos deputados eleitos pelo PCB. Uma vez que o PCB permaneceu na ilegalidade em praticamente todas essas décadas, militância e perseguição policial também acompanharam o itinerário de CPJ. Mesmo com essas dificuldades significativas, não deixou de investir em publicações partidárias, organização de festas para levantar fundos para agremiação e manutenção de uma gráfica clandestina com seus próprios recursos.

Não por acaso, um dos seus empreendimentos que merecem destaque foi a fundação da editora Brasiliense em 1943, tema exposto no sexto capítulo (“A batalha das ideias”). Além da Gráfica Urupês, criou a Revista Brasiliense em 1955, um dos mais importantes periódicos da esquerda brasileira (foram editados 51 números), fechado em 1964 pela ditadura militar. A casa editorial e a livraria tornaram-se espaços de reunião e discussão entre intelectuais progressistas que encabeçavam projetos políticos do historiador. Era a luta no campo das ideias que CPJ praticava com muito afinco. De publicação bimestral, a Revista Brasiliense seria orientada pelos próprios redatores e colaboradores e não por uma ordem política e partidária. Ou seja, tratava-se de um veículo “extrapartidário” (ainda que muitos deles fossem “comunistas”, mas com uma posição marginal nos círculos decisórios do partido), no qual tomavam parte forças progressistas diversas, economicamente autônomo, o que não raras vezes colidiu com as posições do PCB.

Ainda na mesma década da fundação da revista, o historiador paulista candidata-se à cátedra de economia política da Faculdade de Direito da USP, em 1954. Ficou em último lugar, além de ironizado por um membro da banca e aplaudido pelos estudantes, segundo testemunha (ibidem, p.154). Mesmo sem a aprovação, ficou com o título de livre-docência da Universidade, conforme estipulado no concurso. Vale lembrar que CPJ jamais conseguiu ingressar como professor na USP, apenas participando de eventos, debates e bancas examinadoras como convidado.

Com o golpe civil militar de 1964, ocorrem prisões em massa de membros da “base” do PCB ligados ao movimento operário, e obras de sua autoria também são proibidas, conforme assinalado no penúltimo capítulo. Diante desse quadro, CPJ exila-se no Chile, deslocamento doloroso para o intelectual paulista, como mostram as cartas aos familiares: o sentimento de solidão, de relações sociais conturbadas e de indecisão sobre seu retorno ao país. “Vida bem pouco atraente de exilado”, disse em determinada ocasião. No retorno ao Brasil foi condenado a quatro anos e meio de prisão, mas não chegou a cumprir toda a sentença.

Depois de todas essas experiências e atividades políticas, no último capítulo do livro (“Os últimos anos”) registra-se como CPJ começa a distanciar-se lentamente da prática militante. Não o fez por resignação, mas pela idade que já o impedia de acompanhar seu espírito agitador. De todo modo, “ainda que não atuasse ativamente em suas fileiras havia bastante tempo, ele nunca se retirou ‘oficialmente’ ou foi desligado da agremiação” (ibidem, p.265-6). Até mesmo sua própria personalidade transforma-se nessa época. De homem circunspecto, reservado quando se tratava de questões pessoais, depois do exílio e da prisão passou “a falar mais sobre si e seus sentimentos” (ibidem, p.258). E, no final da década de 1970, doravante mais recolhido em sua casa, surgiram os primeiros sinais de mal de Alzheimer cujos sintomas aumentaram gradualmente. Em decorrência dessa enfermidade, Caio Prado Júnior morreu em novembro de 1990 aos 83 anos de idade.


Um marxismo fora do lugar

Do ângulo da sua formação intelectual marxista, CPJ foi leitor de inúmeros nomes do pensamento de esquerda do século XX, como apontado no segundo capítulo (“Leitores (e leituras) de Caio Prado Júnior”). Tanto “marxistas clássicos” como também “marxistas ocidentais”, para ficarmos na denominação de Perry Anderson (2004), preencheram as prateleiras do intelectual paulista, assim como autores de correntes distintas do marxismo. Basta olhar a quantidade enorme de livros e revistas que guardava em sua biblioteca – atualmente parte de seu acervo encontra-se no IEB/USP –, em torno de 16 mil itens, entre coleção “marxista” e “brasiliana”. De qualquer modo, é curioso imaginar nos dias de hoje que um intelectual do estofo de Caio Prado Júnior tenha sofrido acusações como a de conhecer pouco o marxismo – segundo tais argumentos, não havia citado o suficiente para credenciá-lo como tal. De fato, CPJ jamais empreendeu uma marxologia, de reflexão sobre determinados textos; estudou os pensadores clássicos e contemporâneos do marxismo para aplicá-los metodologicamente numa realidade específica, com uma temporalidade discordante daquela em que viviam os autores marxistas europeus. Seus livros de cunho teórico, de tintas mais filosóficas e metodológicas, Dialética do conhecimento, de 1952, e Notas introdutórias à lógica dialética, de 1959, não tinham como meta estabelecer um manual de aplicação do materialismo histórico, mas sim “discutir o sentido de seu objeto de estudo, fosse no processo histórico brasileiro, fosse em sua conceituação do termo e suas implicações dialéticas dentro da filosofia” (ibidem, p.148, grifo do autor).

Pericás afirma que, na realidade, alguns teóricos marxistas eram comentados somente por meio de sua correspondência (em particular, com o jovem militante comunista Carlos Nelson Coutinho). Por exemplo, é nas cartas que percebemos que o intelectual paulista manifestou “apreço” pelo marxista húngaro Lukács; ao passo que, em relação à leitura de Atlhusser, a considerava “profundamente deformadora do marxismo” (ibidem, p.57). Já o marxista sardo Antônio Gramsci despertou pouco interesse pelo historiador paulista (ibidem, p.63). É interessante mencionar também que CPJ faz parte dos autores que ajudaram a divulgar os “clássicos” do marxismo no Brasil levando a cabo a tradução de Teoria do materialismo histórico, manual popular de sociologia marxista, de Bukharin.

Embora tivesse uma formação marxista “europeia” e priorizasse estudos da formação histórica brasileira, CPJ constituiu uma relação profunda com o Novo Continente. A bem da verdade, trata-se de um aspecto inexplorado pelos estudiosos caiopradianos. Pericás retrata não apenas um viajante curioso em vários países latino-americanos, mas também comprometido politicamente com os acontecimentos que eclodiam no continente por meio da leitura de obras e trocas de correspondências com dezenas de jornalistas, editores, militantes e intelectuais. Certamente essa dimensão pesou em seus estudos sobre o caráter especial do capitalismo brasileiro. E, em retorno, muitos analistas do exterior foram influenciados pelo historiador brasileiro a ponto de inserir sua obra “no contexto mais amplo de tradição marxista latino-americana, colocando-o ao lado de outros teóricos e militantes anti-imperialistas do continente” (ibidem, p.72), em vez de perfilá-lo como um autor estritamente “brasileiro”.

Questões como reforma e revolução – tema tratado no capítulo X (“Reforma, revolução e socialismo”) – não passaram despercebidas pelo marxista brasileiro. “Posicionava-se claramente contra um ‘capitalismo reformado’ (como afirmou em distintas ocasiões) e contra a livre iniciativa privada (para eles, onde esta se encontrasse haveria o capitalismo; e onde essa fase estivesse sugerida, existiria o socialismo). Em última instância, não poderia ser chamado de reformista, pelo menos em sua forma clássica” (ibidem, p.226, grifos do autor) – lembrando que a palavra “reformista” esteve sempre ligada às lutas dos subalternos para transformar a sociedade, como afiançava Carlos Nelson Coutinho (2010, p.35). Pericás relaciona com as de Lenin muitas das proposições da reforma e revolução do pensador brasileiro que abarcam a questão dos sujeitos da transformação, do partido, do Estado e do marxismo. Para tanto, faz uma distinção fundamental entre o marxismo-leninismo-stalinismo, santificado, calcificado em dogmas, preso às tradições esclerosadas da III Internacional; e o marxismo-leninismo crítico, ao qual está inserido CPJ, um pensamento da política em ação, no qual elementos como representação, organização e estratégia são decididos nos termos específicos da luta política (Bensaïd, 2000, p.183). Oriundo dessa segunda vertente, “o marxismo, para Caio Prado Júnior, não podia se assemelhar ao que ocorria nas doutrinas religiosas, com seus textos sagrados e interpretações baseadas no argumento de autoridade” (Pericás, 2016, p.238).

Do ponto de vista da militância política, ainda que jamais tenha saído do PCB, em vários momentos de seu itinerário ocorreram tensões e embates que são fartamente exemplificados no livro, inclusive com personagens ilustres como Luís Carlos Prestes (ibidem, p.125). Segundo Pericás, muitos desses dissabores advêm do fato de jamais ter sido reconhecido como uma figura preponderante do partido (como fora o caso de Nelson Werneck Sodré) – os dirigentes do partido somente o procuravam para pedir dinheiro para a máquina partidária. Essa marginalização deveu-se principalmente ao exercício do pensamento crítico e original de CPJ que era frequentemente discordante das posições defendidas pela linha oficial pecebista ou pela Comintern.

Todavia, a questão não permanece completa. Se prevaleciam inúmeros desacordos entre CPJ e a interpretação e estratégia adotada pelo PCB, em contrapartida, inexiste um distanciamento crítico do autor diante da então URSS. Isso pode ser vislumbrado a partir das viagens de CPJ ao mundo socialista. Elas representam “um elemento essencial para que ele molde suas opiniões sobre diversos temas candentes no campo do marxismo, como o caráter da ‘revolução’ e do ‘partido’” (ibidem, p.81). Nos capítulos III (“Primeira viagem ao mundo socialista”) e VII (“De volta ao mundo do socialismo”), Pericás esquadrinha os detalhes das viagens realizadas para a URSS, a primeira em 1933 e a segunda em 1960, bem como para a China (1960), Cuba (1961) e Alemanha Oriental (1963). Testemunhas, conversas, visitas, hospedagem, transporte, fotografias recheiam o périplo feito pelo militante brasileiro. As informações colhidas pelo biógrafo sobre as viagens são instigantes. Caíto publicou dois livros sobre a experiência soviética: URSS, um novo mundo, de 1933, e O mundo do socialismo, de 1961. Em ambos, sempre trata a URSS de maneira edificante, exaltando as vantagens do sistema político do país de maneira incondicional, e neles se verifica a ausência de distinção entre o espírito emancipador de 1917 e o totalitarismo de Stalin. Esse ponto de vista continua, mesmo após a surpresa criada pelas denúncias dos crimes de Stalin no XX Congresso dos PCU em 1956. Em suma, “o alinhamento continuava completo, ainda que fizesse críticas pontuais a amigos em alguns momentos” (ibidem, p.183). Por exemplo, o silêncio que manteve diante da repressão na Polônia e diante da revolta húngara em 1956 rompeu-se com a notícia da presença das tropas soviéticas na Tchecoslováquia.


Um intérprete do enigma brasileiro

Não é nenhum segredo que uma das dimensões de maior audiência, em termos de estudos, debates e pesquisa acadêmica sobre CPJ concentra-se em sua produção sobre a particularidade histórica do capitalismo brasileiro. Todavia, se a importância da obra pradiana tornou-se um consenso para os estudiosos do pensamento social, a repercussão de suas obras sempre foi bastante contraditória. Em Caio Prado Júnior, uma biografia política, toda obra de CPJ também é apresentada por meio de sua recepção em jornais e revistas da época. Expõe-se, assim, uma circulação de ideias altamente produtiva, de impressões de autores diversos, de debates amiúde polêmicos para além do próprio livro – sem dúvida um ganho para o leitor.

Ademais, Pericás constrói uma genealogia das primeiras tentativas de análise da realidade brasileira inspirada no referencial marxista, como Agrarismo e industrialismo, de Octávio Brandão, A caminho da revolução operária e camponesa, de Leôncio Basbaum, e “Esboço de uma análise de situação econômica e social do Brasil”, de Mário Pedrosa e Lívio Xavier. Por um lado, assinala a importância de tais empreendimentos como documentos históricos; por outro, aponta “graves deficiências teóricas e falta de conhecimento” (ibidem, p.52), em razão da ausência de uma bibliografia marxista robusta no país, bem como rara formação política sólida dos autores no período em que essas obras foram gestadas. Nesse contexto, insere Evolução política do Brasil de CPJ, o primeiro livro do autor (1933), na seara das tentativas de adaptar as ideias do marxismo científico às condições locais. Como era de esperar, encontrava-se em grau teórico mais elevado em relação aos autores citados. Essa seria, aliás, a primeira produção que podemos entender como “nacionalização do marxismo no Brasil” (Ricupero, 2000). Também se sabe que o crítico literário Antonio Candido considerava essa obra como um dos “clássicos” do pensamento social brasileiro da década de 1930, ao lado de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre. Empreendimento similar, mutatis mutandis, do já citado José Carlos Mariátegui (2010) e sua obra Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Ora, segundo Pericás (2016, p.54), “a intenção de Mariátegui era mostrar a importância da integração dos indígenas (que representava a maior parte da população) ao resto do país como elemento essencial para construir historicamente a nação indígena”. Enquanto CPJ, de forma similar, “também defendeu a inclusão das massas (majoritariamente descendentes de escravos negros e trabalhadores pobres) ao processo de construção da nação, enfatizando, como Mariátegui, a necessidade imprescindível de sua elevação material e cultural” (ibidem, p.54).

Assim, Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, defende a tese de que o país havia sido estruturado, desde o início, para atender as necessidades externas, ideia sintetizada na expressão “o sentido da colonização”. Buscou expor relações, processos e estruturas sociais, econômicas e políticas que operavam na composição da sociedade brasileira. Três anos depois, em 1945, publica História Econômica do Brasil, que se inicia novamente numa perspectiva histórica: colonização, império e república. “Com um processo de desenvolvimento desigual e combinado, seria fundamental não apenas compreender, mas também saber como articular nas diferentes variáveis políticas, econômicas e culturais num projeto que estivesse moldado a partir das características específicas de nosso processo histórico (ibidem, p.129, grifos do autor). Outro elemento fundamental é a ideia de inexistência do “feudalismo” no Brasil.

É na mesma tônica de análise que se encontra A revolução brasileira, de 1966, um dos livros que “fizeram a cabeça” dos militantes da época, de acordo com Jacob Gorender (ibidem, p.207). A obra teve uma repercussão imediata significativa, e contou com infindáveis debates nas universidades e em círculos militantes. Nessa obra estava a espinha dorsal da heresia de CPJ: crítica à ideia de uma “burguesia nacional e anti-imperialista” e às sobrevivências “feudais” no campo brasileiro de maneira sistemática.

Caio Prado Júnior também se dedicou ao estudo da questão agrária brasileira, “um dos pontos de divergência entre CPJ e PCB ao longo dos anos”, bosqueja Pericás (2016, p.164). A leitura pecebista – assim como dos PC latino-americanos – da realidade agrária brasileira assentava-se da seguinte forma: a estrutura agrária foi classificada como semifeudal, a burguesia local considerada como agente confiável no processo de modernização e desenvolvimento e o camponês como hostil ao socialismo coletivista. Tratava-se da corrente eurocêntrica do marxismo latino-americano (Löwy, 2006, p.11), ou seja, o oposto da interpretação de CPJ. Para ele, as relações de trabalho na agropecuária brasileira não seriam “semifeudal”, mas um empreendimento comercial moderno. A elevação do nível tecnológico das atividades rurais – tome-se como exemplo a assim chamada “revolução verde” – estava longe de superar o “atraso” do país, mas, na verdade, o reatualizava por meio dos baixos salários e precárias condições laborais. Para Caio Prado Júnior (2007, p.27) “[...], o progresso tecnológico não significa necessariamente uma melhoria de condições do trabalhador. E, às vezes, até pelo contrário, pode agravá-las”. Portanto, existem discordâncias dos tempos nas relações sociais agrárias na periferia, diferentemente dos países do Velho Continente. Essa intuição analítica da dialética entre arcaico e moderno fora dos trilhos do eurocentrismo atraiu uma vertente da tradição crítica do pensamento brasileiro com nomes de Francisco de Oliveira (2003), Roberto Schwarz (2000) e Paulo Arantes (2004).

Foto Acervo Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Caio Prado Júnior na década de 1940. 

Com estilo sóbrio e elegante, Caio Prado Júnior, uma biografia política transformar-se-á em leitura obrigatória para aqueles que desejam se aventurar pela trajetória e obra do historiador paulista. Pelo cuidado com todos os detalhes expostos em torno da figura de Caio Prado Júnior, um dos pensadores brasileiros mais importantes do século XX, esse livro biográfico já tem lugar cativo nas estantes das ciências humanas.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental/ Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2004. 

ARANTES, P. A fratura brasileira do mundo. In:___. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004.

BENSAÏD, D. Lenin, ou a política do tempo partido. In: BENSAÏD, D.; LÖWY, M. Marxismo, modernidade e utopia. São Paulo: Xamã, 2000. p.177-91. 

COUTINHO, C. N. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; RIZEK, C. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.29-43. 

LÖWY, M. Pontos de referência para uma história do marxismo na América Latina. In: ___. (Org.) O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. 2.ed. ampl. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. 

MARIÁTEGUI, J. C. La agonia del cristianismo, de Miguel de Unamuno. In: ___. Signos y obras. Lima: Amauta, 1971. p.116-20. 

_______. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular/Clasco, 2010. 

_______. El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy. Rosário: Ediciones del Sertão, 2014. 
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. 

PERICÁS, L. B. Caio Prado Júnior, uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016. 

PRADO JÚNIOR, C. A questão agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2007. 

RICUPERO, B. Caio Prado Júnior e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo; Fapesp; Editora 34, 2000. 

SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. 

Deni Alfaro Rubbo é doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e bolsista da Capes. @ – deni_out27@uol.com.br
Revista Estudos Avançados - USP

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