terça-feira, 18 de setembro de 2018

Encontros. Nise da Silveira


Sem medo do inconsciente

Yudith RosenbaumI
IFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

MELLO, L.. Encontros. Nise da Silveira. São Paulo: Azougue Editorial, 2009.

Conhecer a psiquiatra Nise da Silveira (1906-1999) através de entrevistas e depoimentos que concedeu entre 1976 e 1997 é uma experiência transformadora. Ao reconstituir a trajetória de uma das maiores profissionais da área de saúde mental do país, o livro Encontros. Nise da Silveira realiza uma justa homenagem e acrescenta uma página valiosa no registro da memória científica e cultural do Brasil.

Ao longo de décadas, desde que criou nos anos 1950 o Museu de Imagens do Inconsciente, a Casa das Palmeiras e o Grupo de Estudos C.G. Jung, Nise da Silveira revolucionou a psiquiatria tradicional e apostou numa forma humanista e criativa de ajudar seus pacientes. Incomodada com os diagnósticos aprisionantes dos médicos psiquiatras, ainda cativos da taxonomia conservadora do alemão Emil Kraeplin (1856-1926), Nise rebelou-se contra os tratamentos e medicamentos adotados na época pelo Centro Psiquiátrico Nacional no Engenho de Dentro, onde trabalhava desde 1944. "Aquele miserável daquele português Egas Moniz, que ganhou o prêmio Nobel, tinha inventado a lobotomia", diz Nise a Ferreira Gullar, na bela entrevista que abre o livro. Outros métodos, recém-chegados ao Brasil, também foram rejeitados por ela, como o eletrochoque de insulina e cariazol. Mas sua revolta era, sobretudo, contra o olhar médico, pouco sensível ao ser humano que sofre.

O leitor logo estabelece empatia com a médica psiquiatra que, em seu primeiro treinamento, diante de um paciente na maca, se recusa a apertar o botão do choque. Recorrendo ao diretor geral, que aposta na novata e suas ideias excêntricas, Nise consegue autorização para renovar o setor de Terapêutica Ocupacional, bastante atrasado por usar doentes para serviços de limpeza, sem nada mais a oferecer. Aí nasce o novo modelo de cura, transformando uma pequena enfermaria numa sala de estar com oficinas de trabalhos manuais, chegando a 17 salas, como costura, modelagem, pintura, marcenaria etc. "A inovação consiste exatamente em abrir para eles [os pacientes] o caminho da expressão, da criatividade, da emoção de lidar com os diferentes materiais de trabalho", resume Nise. O que hoje é consenso, na época era absoluta vanguarda.

Importante ressaltar aqui como a experiência de ter sido presa na ditadura Vargas foi determinante para a renovação do setor de terapêutica ocupacional, quando Nise retoma seu posto no serviço público, em 1944. Antes disso, em 1933, Nise havia sido aprovada no concurso para médica psiquiatra do Hospital Nacional de Alienados da Praia Vermelha, na Urca, o mesmo em que Lima Barreto foi internado pela primeira vez em 1914. No mesmo hospício, Nise tinha ocupado um quartinho para estudar para o concurso (e também conviver com os loucos...), quando foi denunciada por uma enfermeira que viu os livros marxistas em sua mesa. Mas a reclusão trouxe uma lição definitiva: "Todo preso procura uma atividade, senão sucumbe mentalmente", afirma Nise, em outra entrevista do livro.

De fato, a prisão de Nise por mais de um ano, sem provas e sem processo jurídico, logo após a Intentona Comunista de 1935, retorna em várias entrevistas e revela a força e resistência dessa mulher, de fragilidade apenas física. Tendo enfrentado o mundo masculino para estudar medicina nos anos 1920, Nise sabia nadar na contracorrente e também não se rendeu ao Partido Comunista, desligando-se após algumas reuniões: "Eu não pertenço a nenhuma sociedade, nem mesmo à Junguiana. Está claro que a minha posição é de esquerda, mas não sou pessoa de se colocar nenhuma coleira no pescoço. Eu vou andando pela vida, fazendo rupturas" (p.149), diz Nise em depoimento à revista Bric a Brac, em 1977.

Mesmo sem ser ativista, Nise é levada à famosa "Sala 4" para réus primários do Presídio Frei Caneca, onde se dá seu comovente encontro com o conterrâneo alagoano Graciliano Ramos, imortalizado nas páginas de Memórias do cárcere, reproduzidas neste volume. A amizade com o autor de Vidas secas seguiria, após a prisão, nos cafés e livrarias do Rio de Janeiro. Não teria a mesma sorte Olga Benário, mulher de Luis Carlos Prestes e colega de Nise dos tempos de clausura, entregue aos nazistas pelo governo de Getulio Vargas.

A partir de sua soltura, o percurso de Nise não cessa de criar novos territórios no Hospital Pedro II, ex-Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, atual Instituto Municipal Nise da Silveira. As produções artísticas dos esquizofrênicos nas oficinas de terapia ocupacional levam à fundação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952. Desde 1946, as pinturas dos internos eram arquivadas, chegando a compor um imenso acervo que deu origem ao museu. Talvez essa seja a grande realização de Nise e sua equipe, mobilizando críticos de arte, como Mario Pedrosa - que se encantou com as pinturas e incentivou Nise a montar uma exposição em 1959 no Masp - e o próprio Carl Gustav Jung, que se impressionou com o material enviado a ele por Nise.

A história da relação do grande mestre da psicologia analítica com Nise da Silveira é contada no livro diversas vezes, revelando-se um ritual de iniciação determinante. Nise pedia aos doentes do atelier que pintassem livremente, sem modelos ou guias. A abordagem interpretativa desses desenhos seguia, inicialmente, a teoria freudiana, que buscava

conflitos exclusivamente de natureza pessoal no conteúdo latente desses trabalhos. Um detalhe, no entanto, começou a causar preocupação: no meio de imagens de total desagregação, esperáveis dentro da produção de pacientes esquizofrênicos, apareciam, aqui e ali, símbolos de ordem: derivados do círculo e do quadrado, até mesmo círculos perfeitos. (p.53)

Pois bem: o que seriam essas imagens? Mandalas? A pergunta de Nise sintetiza o impasse: "Como um símbolo de perfeição, usado até mesmo como instrumento de meditação pelos orientais, pode ser produzido por mentes tão desintegradas?" (p.54).

Inquieta, em 1955 Nise fotografa mais de cem imagens e as anexa a uma carta para Jung, dizendo que eram "criações espontâneas de esquizofrênicos em estado de pura desordem psíquica" (p.54). Em um mês, recebia a resposta assinada pela secretária do discípulo de Freud, confirmando que eram mandalas e pedindo mais informações sobre os casos clínicos dos autores. Jung também esclarece a função dessas imagens para o processo de individuação dos pacientes: "Elas apareciam justamente nos momentos de maior desordem psíquica, como autodefesa da psique desordenada" (p.54).

Por dois anos eles se correspondem, até que Nise participa do II Congresso de Psiquiatria em Zurique, em 1957, no qual Jung inaugura uma exposição de pinturas de esquizofrênicos de vários países, sendo cinco salas ocupadas pela produção dos pacientes de Nise. O prefácio de Mário Pedrosa ao livro Museu de Imagens do Inconsciente (Funarte, 1980), também reproduzido em Encontros..., relata a conversa de Jung e Nise. Impactado com a produção pictórica brasileira levada a Zurique, Jung pergunta-se a respeito do ambiente em que pintavam e diz: "Suponho que trabalhem cercados de simpatia e de pes- soas que não têm medo do inconsciente" (p.181).

É exatamente essa a sensação que as entrevistas passam ao leitor. Como as narrativas de episódios mais marcantes se repetem pelos vários diálogos com os entrevistadores, entre eles Luis Carlos Lisboa, Lúcia Leão e Marco Lucchesi, o perfil de uma pesquisadora determinada e apaixonada, que respeita o sujeito em sua mais recôndita singularidade, vai se firmando a cada página. Uma cientista da psique, sem temor de deixar os núcleos profundos de cada paciente se expressarem, e, sobretudo, sem preconceito. E que enfrentou descrença e deboche dos colegas. Um dos diretores do Hospital chegou a afirmar que Nise trazia quadros de Di Cavalcanti e outros artistas à noite, às escondidas, dizendo que eram feitos pelos internos...

Ancorada na teoria junguiana, que ampliou o conceito de inconsciente freudiano pessoal para um território coletivo de imagens, uma espécie de esqueleto histórico da psique, expresso na forma de mitos, sonhos e arte universais, Nise mobilizava os pacientes pela linguagem do imaginário, sem buscar traduzi-la para o código verbal e racional, como faria Freud. A própria pintura seria uma forma de cura ao dar expressão e figuração ao mundo interno fragmentado e conflituoso. O self, que não se confunde com o ego consciente, explica Nise, ordenaria o processo de busca de unidade de opostos, atendendo à própria natureza da individuação.

Além de Jung e Espinosa, é na literatura que Nise vai beber para compreender o universo do ser humano e especificamente da loucura. Descobriu Machado de Assis, ao ler "A cartomante" na adolescência, e recomendava aos seus discípulos que aprendessem sobre a alma humana com o bruxo do Cosme Velho. "Pela literatura tenho chegado à psiquiatria", dizia Nise. Mas, de todos os autores mencionados no livro, Antonin Artaud tornou-se referência para a pesquisadora, quando leu as palavras do escritor comentando o pintor surrealista Victor Brauner nos Cahier d´Ars: "O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos". Cito Nise, discorrendo sobre esses processos aos quais se refere Artaud:

[...] Descarrilhamentos e metamorfoses do corpo; perda de imites da própria personalidade, espantosas ampliações do espaço; caos, vazio; e muitas mais condições subjetivamente vividas que a pintura dos internados do Engenho de Dentro tornaram visíveis. (p.82)


Os "perigosos estados do ser" tornaram-se expressão de uso corrente entre os profissionais do Museu de Imagens do Inconsciente, combatendo a psiquiatria descritiva ao acolher os múltiplos estados que a psique atormentada pode produzir e que extrapolam as definições cartesianas dos manuais.

As estórias e seus personagens são momentos especiais do livro, que traz depoimentos vivos e iluminados dessa psiquiatra mais do que irreverente e transgressora do status quo da ciência da época. O leitor se aproxima de pessoas com nome e história, muito diferente do anonimato e da reificação a que eram submetidos os psicóticos internados nos hospitais psiquiátricos até décadas atrás. Assim conhecemos Alfredo, que se curou ao cuidar de uma cadela abandonada, mostrando o caminho dos cães coterapeutas, introduzidos por Nise no mesmo hospital (não sem a brutal resistência de médicos e funcionários, o que culminou na matança de vários cães); Fernando Diniz, o artista de mais de 25 mil pinturas; Adelina e suas figuras do mito de Dafne; Emydgio, o torneiro mecânico (considerado incurável após 23 anos de internação) que virou pintor e impressionou o primeiro diretor do Masp; Carlos Pertuiss e as telas do mito de Dionysos, e muitos outros.

Alguns desses chegaram a ser considerados artistas, expondo fora dos ateliers do Engenho de Dentro. Vale ressaltar que definir as obras dos internos como arte nunca foi uma preocupação para Nise. A finalidade dos ateliers era exclusivamente oferecer caminhos de elaboração simbólica dos núcleos psíquicos emudecidos. Se dali nascesse um gênio da pintura, era uma alegria. Mas, para Nise, uma garatuja e uma obra são igualmente respeitadas, pois seu interesse reside no momento em que uma imagem arquetípica ganha forma como abordagem do mundo interno do psicótico. O julgamento estético, diz ela, "foge ao mérito de minha questão" (p.53).

Chama a atenção a escuta privilegiada de Nise para criar oportunidade curativas. Um exemplo é quando percebe que seus pacientes estão expressando recorrentes imagens relativas ao mito dionisíaco. Resolve, então, fazer a leitura de As bacantes, de Eurípedes, misturando atores profissionais, entre eles Rubens Corrêa, e doentes "para manter um de nossos pontos de vista: não separar, não discriminar", diz Nise (p.187). Um esquizofrênico leu tão bem o papel do cego Tirésias que a experiência foi um acontecimento teatral e terapêutico impressionante.

Como aprendiz de seus pacientes, Nise entendeu que era preciso ousar mais. Preocupada com a reincidência de internações, Nise funda a Casa das Palmeiras, em 1956, ativa até hoje. A casa nasceu de uma indignação: "O doente saía de uma porta e entrava pela outra [...] Que tratamento é esse? A partir daí, me inspirei para criar uma instituição na qual o doente que superasse o surto psicótico não caísse de súbito nesta sociedade, que é um pouco mais louca que o hospital" (p.123).

Movida pelo desejo de mitigar a violência da reintegração do sujeito ao mundo social, a Casa funciona em regime aberto, portas e janelas sem trancas, médicos sem jalecos. Teatro, literatura, botânica, bailes e outras atividades proporcionam vivências humanizadas aos doentes. O espírito inovador da Casa suscitou recentemente a "Ocupação Nise da Silveira", uma exposição da história da Casa pelo Itaú Cultural em São Paulo (http://www.itaucultural.org.br/casa-das-palmeiras-territorio-livre-ocupacao-nise-da-silveira-2017). Também o funcionamento do Grupo de Estudos Carl Gustav Jung por mais de 40 anos alimentou, com discussões e seminários, uma prática clínica intensa, referência para a formação de estudantes e profissionais de saúde mental.

A batalha de Nise para mostrar que a afetividade dos psicóticos não estava embotada, como queriam os livros técnicos, mantém-se extremamente atual. Quando a sociedade trata drogados e loucos como coisas, dispersando-os pela cidade sem rumo e sem atendimento adequado, é preciso mais do que nunca relembrar Nise da Silveira, para quem remédios e neurolépticos (que passaram a dominar a psiquiatria a partir dos anos 1970) podem, esses sim, embotar a criatividade. Quando lhe perguntaram, em 1977, por que não surgiam novos talentos no Engenho de Dentro, a resposta foi contundente: "Como podem aparecer novos artistas se eles estão dopados?" (p.131).

Por fim, ainda que o livro apresente falhas imperdoáveis de revisão e edição, seu valor é inegável ao trazer de volta a potência disruptiva de uma mulher excepcional, muito além de seu tempo. Sua fala continua ecoando na busca de um sujeito integrado, antes de tudo consigo mesmo. Como diz Nise, "o eu é um picadinho e nós devemos nos esforçar para juntar esse picadinho. Mas não é fácil, é uma grande luta" (p.217).

REFERÊNCIA
MELLO, L. (Org.) Encontros. Nise da Silveira. São Paulo: Azougue Editorial, 2009. [ Links ]

Yudith Rosenbaum é professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e psicóloga formada pela PUC-SP. @ - yudith@uol.com.br
Revista Estudos Avançados

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