segunda-feira, 9 de outubro de 2017

História dos Homens no Brasil



História dos homens no Brasil: novos olhares e desafios para a pesquisa


Marcela Boni Evangelista**
**Doutoranda em História Social, no Departamento de História, FFLCH, USP, São Paulo, Brasil. Bolsista Fapesp. marcela.boni@gmail.com
Priore, Mary del; Amantino, Marcia(Org.). História dos Homens no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

Por que ler um livro sobre a história dos homens no Brasil? Afinal, não são os homens responsáveis quase exclusivos pela escrita da História até bem pouco tempo? O que uma publicação nesses moldes traz de novidade para os estudos históricos e de gênero, uma vez que se insere em momento marcado pela proliferação de discursos e estudos que buscam dar maior visibilidade à presença das mulheres na História?

O livro História dos Homens no Brasil, publicado em 2013 pela Editora Unesp, é uma coletânea de 12 capítulos que reúne resultados de pesquisas de autores e autoras que vêm se ocupando nos últimos anos de temáticas que abordam o papel dos homens em nossa sociedade, a construção das masculinidades e suas interconexões com os estudos sobre as mulheres.

Em primeiro momento, o título da obra poderia sugerir algum tipo de contestação à produção crescente de trabalhos sobre o protagonismo feminino ou mesmo sobre os estudos de gênero. Análise mais apurada, contudo, desconstrói tal possibilidade interpretativa, a começar pelas trajetórias profissionais das organizadoras.

Mary Del Priore é importante referência por sua vasta produção vinculada à história das mulheres, bem como em estudos baseados em documentação que viabiliza o aprofundamento de temas que lidam com o cotidiano vivenciado por homens e mulheres na história do Brasil (Priore, 1988 , 2001 , 2005 , 2009 , 2011 , 2013 , entre outros). É, ainda, organizadora de História das Mulheres do Brasil , lançado em 1997, elemento que reforça o interesse pela nova empreitada que vem a público quase duas décadas depois. Marcia Amantino, por sua vez, acresce ao projeto sua relevante experiência em História do período colonial, principalmente no tocante à escravidão e seus desdobramentos ( Amantino, 2008 , 2011 ). Além disso, ambas foram responsáveis pela organização de História do Corpo no Brasil, o que denota sua afinidade intelectual e disposição em enfrentar discussões historiográficas atuais.

História dos Homens no Brasil se insere em campo de estudos relativamente recente que, ampliando o debate sobre gênero, abrange as masculinidades. A pluralidade contida no termo evoca aspecto articulado com novas tendências ao problematizar a condição masculina e as experiências de homens para além do atributo historicamente reconhecido de serem responsáveis pela produção de documentos históricos e suas análises.

O questionamento de um masculino universal aventa a proposição de que, assim como não se pode falar sobre “a mulher”, não é possível conceber como natural a identidade masculina. Pelo contrário, é necessário reconhecer que a masculinidade não é essencial, mas historicamente construída. Além disso, a composição da obra ilumina especificidades da história brasileira ao costurar a multiplicidade de vivências possíveis em diferentes contextos que se ligam sob um universo de estudos comum a todos os pesquisadores e pesquisadoras envolvidos.

Nesse sentido, importa relativizar marcadores sociais como etnia, classe social, orientação sexual, religiosidades como determinantes para elaborar reflexões que atentem para a diversidade de comportamentos e experiências masculinas ao longo da História. O desafio investigativo implicado pela consideração das interseccionalidades integra o projeto que constitui a obra. Desse modo, é evidente o comprometimento por parte das organizadoras em redesenhar percursos, acionando parceiros que se dedicam a motes variados para abordar experiências de homens em diferentes espaços e tempos em suas particularidades.

Longe de cristalizar imagens que soam fortes no imaginário popular, o conjunto de artigos reforça além de permanências e hegemonias existentes, conflitos, relações de poder e práticas marginais que desnaturalizam a masculinidade enquanto uníssono.

A leitura do livro, contudo, vai além... A experiência de tocar sua capa é sugestiva… Aspereza e delicadeza emergem de uma figura masculina com os braços abertos, apontando para lados opostos… Em qual extremidade estaria a história dos homens? Antes de responder a essas perguntas, cabe-nos apresentar o conteúdo da obra e suas contribuições para os estudos de gênero na atualidade.

O capítulo de abertura “Ser homem... Ser escravo”, de Marcia Amantino e Jonis Freire, levanta aspecto da história dos homens nem sempre tratado nos moldes apresentados. Os estudos que têm a escravidão como tema, muitos dos quais restritos a elementos econômicos e políticos, avançaram timidamente em questões que se voltam para as subjetividades envolvidas. Os autores partem de uma gama de fontes iconográficas, estatísticas, material de imprensa, relatos de viagem, além da literatura, para fomentar análises que buscam apresentar o cotidiano vivenciado pelos homens escravizados. Indicam, ainda, suas estratégias de sobrevivência e de construção de relações com os diferentes grupos com os quais conviveram. Além disso, trazem em suas reflexões as relações de gênero vislumbradas através da documentação disponível, iluminando o papel das mulheres escravas em diálogo com o grupo masculino.

Em seguida, Robert Daibert Jr. expõe novas dimensões do universo masculino da Colônia no capítulo “Entre homens e anjos: padres e celibato no período colonial no Brasil”. Partindo de considerações que localizam as particularidades desse ofício, cujas raízes se encontrariam na Idade Média, o autor explora o contexto da Contrarreforma para analisar as trajetórias dos homens que, no Brasil, se dedicaram à função religiosa. As contradições entre os pressupostos evocados pela Igreja enquanto instituição e as práticas vivenciadas ganham cores nas crônicas, que demonstram um cotidiano impregnado de diferentes interpretações sociais acerca desses homens. Longe de buscar um padrão de comportamento, o autor sugere questões que invocam a multiplicidade de histórias e possibilidades de viver essa condição para os homens daquela época.

Ainda no contexto da Colônia, mas avançando cronologicamente para o período imperial, o capítulo “Riscando o chão: masculinidade e mundo rural entre a Colônia e o Império” de Eduardo Schnoor descortina um momento em que significativas mudanças ocorriam no país não apenas no que diz respeito à política e à economia, mas às funções desempenhadas e esperadas dos homens. A passagem inicial do mundo rural para o urbano, ainda que permeada por transformações, carregaria influências de uma tradição na qual aos homens eram exigidas ações voltadas para a garantia da autoridade, muitas vezes com o uso da violência. O acesso a processos da época, fonte substancial do estudo, permite visualizar as relações estabelecidas entre homens e mulheres, muitas vezes erigidas extraoficialmente. O caso que serve de exemplo constrói o cenário de uma disputa por herança que, embora tenha como protagonista uma mulher, é arquitetado a partir da quase totalidade de homens como testemunhas. A situação esboçada confirma o poder da palavra masculina em oposição à submissão da mulher como agente capaz de formalizar seus pontos de vista, além de explorar as diferenças sociais como ingrediente catalizador das desigualdades estabelecidas.

No capítulo “Novas performances públicas masculinas: o esporte, a ginástica, a educação física”, de Victor Andrade de Melo, o objeto central da análise é o corpo masculino. O autor parte da polissemia relacionada à ideia de performance e traça percurso em que o corpo é espaço de mudanças estéticas e simbólicas. Da mesma maneira, a diversificação de seus usos é pautada em demandas inseridas pela sociedade brasileira, sobretudo, a partir do século XIX. A dança é o ponto de entrada desses corpos em eventos sociais, capaz de mobilizar a aproximação entre homens e mulheres. Gradativamente as performances vão se ramificando para espaços institucionalizados como a escola, onde modalidades esportivas e a ginástica ganham força e são analisadas a partir de documentação diversa, como material de imprensa e clássicos da literatura, com destaque para O Ateneu , de Aluízio Azevedo, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. As análises, por sua vez, demonstram a ligação entre os usos do corpo, suas manifestações públicas e um projeto de nação em construção, de modo a projetar intenções que misturam força, resistência e modernidade.

Em seguida, Mary del Priore aborda a questão da paternidade, tendo como figura central Dom Pedro I. O artigo “Pais de ontem: transformações da paternidade no século XIX” oferece subsídios para acompanhar modificações culturais características da sociedade brasileira no século XIX. Momento de mudanças políticas e econômicas, é ainda marcado pelo surgimento de novos personagens responsáveis pela educação e pela formação das crianças. Tal situação evidencia o aparecimento de diferentes atribuições à figura paterna. Inicialmente reconhecidos como provedores e responsáveis pela manutenção das condições materiais da família, os homens passam a exercer uma paternidade em que há espaço para a afetividade. Entre permanências e rupturas, a figura do pai se mostra em constante processo de construção, enfatizando a historicidade dos papéis sociais conferidos a homens e mulheres.

O sexto capítulo do volume, intitulado “O que ‘eles’ vestem: moda, vaidade e masculinidade no Brasil”, de Márcia Pinna Raspanti, anuncia temática geralmente condicionada à discussão da feminilidade. Deslocando o ponto de vista desse suposto senso comum, a autora elabora um texto que congrega informações a respeito dos modismos masculinos ao longo do tempo e seus significados sociais. A moda é apresentada como estratégia de movimentação social e indicativo de pertencimento de classe. Nesse sentido, para além da construção de uma imagem pública, a moda se mostra componente do exercício do poder. A partir de personagens emblemáticas como Dom Pedro II, Joaquim Nabuco e Santos-Dumont, Raspanti apresenta modelos de comportamento que se destacaram na sociedade brasileira, sempre acompanhados de breve, porém encorpada contextualização histórica.

Ainda que os capítulos até aqui apresentados tragam referências espaciais diversificadas, é com o texto de Antonio Emílio Morga que fica manifesto o esforço envolvido na proposta de produzir uma história dos homens no Brasil . Em “Masculinidades em Nossa Senhora do Desterro e Manaós: territórios e ardis”, os atuais estados de Santa Catarina e Amazonas são cenários em que a sociabilidade masculina é objeto de estudo. Embora distantes geograficamente, o autor aponta as similitudes nos modos e modas adotados pelos homens brasileiros tanto nos espaços públicos como na intimidade da vida privada. Apoiado em crônicas, relatos de viajantes, entre outras fontes, Morga traz episódios de ciúmes, adultérios e crimes passionais que demonstram traços do comportamento masculino e das expectativas sobre suas atitudes.

O oitavo capítulo da obra “Masculinidade e virilidade entre a Belle Époque e a República”, escrito por Denise Bernuzzi de Sant’Anna, avança no tempo, recortando o período que separa o contexto imperial do republicano e aponta as marcas que distanciam o mundo rural da vida urbana. As iniciativas de romper com o que caracterizava o Império suscitam tentativas de adotar tendências burguesas, vistas então como afeitas à modernidade simbolizada pela República. As mudanças, transpassadas por continuidades, são exploradas pela autora por meio de diversas fontes, em que se destacam propagandas e material publicado na imprensa da época. Assim, traços da masculinidade como coragem e virilidade são temas para explorar além de modelos verificáveis historicamente, a multiplicidade de tipos que configuram os homens tanto no campo como na cidade.

Coragem, virilidade, honra são assuntos encontrados em vários capítulos do livro. Feições geralmente associadas à masculinidade representam parte das habilidades esperadas dos homens. Em “Quando era perigoso ser homem. Recrutamento compulsório, condição masculina e classificação social”, Victor Izecksohn oferece panorama diferenciado para tratar dos mesmos temas. É a partir da experiência específica do recrutamento compulsório que nos vemos diante de homens cujas atitudes inicialmente não correspondem às expectativas do senso comum. Assim, o medo, o receio, a fuga são atributos de muitos daqueles que se viam diante da condição de recrutados. Tendo como contexto analítico episódios vivenciados durante as rebeliões regenciais e a Guerra do Paraguai, são discutidos elementos referentes à simbologia das atividades junto à Guarda Nacional e ao Exército durante o período imperial, momento em que tal exercício se confundia com desprestígio social. São também tratadas no texto mudanças trazidas pela República e as novas condições e significados atrelados à participação nas Forças Armadas, amparadas a partir de então por legislação própria e pela possibilidade de reconhecimento social para homens das camadas mais pobres da população.

Novo salto no tempo e nos encontramos na segunda metade do século XX, particularmente no período que tem como emblema o ano de 1968. Angélica Muller, inspirada pelas discussões do movimento feminista, notadamente a ideia difundida por Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, torna-se”, oportunamente intitula o capítulo “Não se nasce viril, torna-se: juventude e virilidade nos ‘anos 1968’”. Com base em espaços de sociabilidade e formação identitária como a família, a escola, a televisão, o cinema e a propaganda, a autora elabora reflexão em que a ideia de virilidade, tão afeita à masculinidade, é desnaturalizada e reinterpretada à luz das transformações características do período. Com recorte claro do grupo estudado – jovens das classes médias urbanas –, Muller aciona documentação variada, com destaque para relatos de protagonistas das experiências. Aprofunda, com isso, as análises acerca das mudanças observadas nas relações de gênero.

Pluralidade é aspecto central no penúltimo capítulo “Masculinidades em revista: 1960-1990”, em que Marko Monteiro lança mão das revistas voltadas para o público masculino como documentação central de pesquisa. Não restringe, no entanto, o olhar para o modelo de comportamento heterossexual, ampliando o escopo analítico para a diversidade possível no universo composto pelos homens brasileiros das décadas apreendidas. As publicações Ele Ela (voltada para mulheres e homens) , VIP Exame (com público formado por homens heterossexuais) e Sui Generis (destinada para homens homossexuais) são fontes privilegiadas para reconhecer discursos produzidos e veiculados publicamente a respeito das atribuições e expectativas que segmentam diferentes públicos masculinos. Os resultados apresentados apontam a relevância das mudanças observadas, mas enfatiza, sobretudo, as recontextualizações no que se refere às oposições tradicionais entre homens e mulheres.

O fio que nos conduz ao longo da trajetória dos homens no Brasil chega ao período mais contemporâneo. Ainda que reproduza a manutenção de atributos aventados durante todo o processo, “‘Aqui tem homem de verdade’. Violência, força e virilidade nas arenas de MMA”, de Joana de Vilhena Novaes, toca em aspectos tradicionalmente atribuídos aos homens, os explorando de forma atualizada propiciada por base documental constituída, entre outras fontes, por discursos produzidos por lutadores de MMA, modalidade em ascensão no Brasil e no mundo. Com esse suporte, estuda a construção de identidades, as relações afetivas e mesmo a figura paterna personificada pelos mestres das artes de luta.

Podemos afirmar que homens e mulheres são e sempre serão objetos de inesgotáveis análises. Os debates que movimentam a produção do conhecimento histórico é que renovam os olhares sobre personagens e contextos. Nesse sentido, História dos Homens no Brasil enfrenta com autenticidade o desafio de recuperar sujeitos e conjunturas a partir de diferentes abordagens, métodos, fontes documentais e suporte teórico.

A proposta de percorrer a linha temporal iniciada no Brasil colonial em 12 passos que culminam na contemporaneidade é realizada com êxito pelas organizadoras Mary del Priore e Márcia Amantino, com a inestimável colaboração dos autores e autoras que compuseram a obra. Podemos contemplar a multiplicidade de experiências vivenciadas pelos homens no Brasil, apresentadas com esmero pelos trabalhos elencados. São iniciativas que estimulam olhar renovado para as relações sociais atuais e sua historicidade. Se é certo que nesse investimento lacunas são prováveis, inúmeras são as possibilidades que se abrem. As discussões sobre homens, mulheres e gênero, em perspectiva histórica, avançam indiscutivelmente no diálogo com outras áreas do conhecimento.

A leitura de História dos Homens no Brasil permite sobrevoar a História do Brasil a partir de um novo ponto de vista. Colônia, Império e República são cenários para episódios ainda não descortinados, em que homens públicos e anônimos se revestem de roupagem inédita. Sensibilidade e rigor foram necessários para a composição de um mosaico que reflete nossa arlequinal trajetória histórica, formada por mulheres e homens com diferentes vivências, aparências e destinos.

Observar novos eventos de nossa história é aventura que os textos em conjunto propiciam, sem deixar de lado fundamentais reflexões e debates teóricos e temáticos. Leitura para homens, para mulheres, para quem se importa com a aspereza e a sensibilidade da História.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amantino, Marcia. O Mundo das feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais, século XVIII . São Paulo, Annablume Editora, 2008. 

Amantino, Marcia; Rodrigues, C.; Engemann, Carlos; Freire, Jonis (Org.). Povoamento, Catolicismo e escravidão na Antiga Macaé (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro, Apicuri, 2011. 

Paiva, Eduardo França; Amantino, Marcia. Ivo, Isnara Pereira (Org.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços . São Paulo, Annablume, 2011. 

Priore, Mary Del. A Mulher Na Historia do Brasil . São Paulo, Contexto, 1988. 

Priore, Mary Del. Corpo a corpo com a mulher - Uma pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil . São Paulo, SENAC, 2001.

Priore, Mary Del. História do Amor no Brasil . São Paulo, Contexto, 2005. 

Priore, Mary Del. Ao sul do corpo, Condição Feminina, Maternidades e mentalidades no Brasil Colônia . UNESP, São Paulo, 2009. 

Priore, Mary Del. Histórias Íntimas. Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo, Planeta, 2011. 

Priore, Mary Del. Histórias e Conversas de Mulher . São Paulo, Planeta, 2013.

Priore, Mary Del; Amantino, M. S. (Org.). História do Corpo no Brasil . São Paulo, UNESP, 2011. 
Cadernos PAGU - UNICAMP

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