quarta-feira, 16 de abril de 2014

Crônicas subversivas 
de um cientista


Memórias de um cientista subversivo

Crônicas subversivas 
de um cientista | Luiz Hildebrando 
Pereira da Silva
 | Editora Vieira & Lent, 477 páginas.

MARILUCE MOURA

 
Todas as agruras a que o processo político brasileiro submeteu ciência e cientistas no país, no período da ditadura inaugurada em 1964, ganham cor e vibração extraordinárias no recém-lançado Crônicas subversivas de um cientista, de Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Mas, em paralelo, também ganham uma transcrição literária poderosa a avassaladora emoção e o prazer que podem irromper de uma descoberta científica a que se chega após longo tempo de buscas extenuantes, mesmo tediosas. E nesse exato instante fica muito longe a identidade de cientista no exílio para impor-se a do cientista apaixonado em qualquer latitude. “Tarde da noite, quando terminamos e incubamos tudo aquilo na estufa, estávamos esgotados. E, no entanto, bem gostaríamos de poder ficar lá, ao lado, esperando o resultado. Mas é contra as regras da ética. Os cientistas devem mostrar-se frios e indiferentes. Toda demonstração afetiva por seu trabalho ou por sua obra é malvista. Assim fomos dormir segundo as normas da profissão.” O que ele narra é o parto do gene CRO (Control of Regulator and Others). “No dia seguinte, cedinho, depois de uma noite mal dormida, chegamos ao laboratório. Diretamente à estufa. Tiramos as placas todas do interior e as depositamos sobre a bancada. É o grande momento. Um suor frio nos escorre das têmporas (…).” Nesse mesmo diapasão ele segue contando o nascimento, a comemoração com champanhe no Instituto Pausteur, em Paris, os comentários abobados de pais recentes, o registro do recém-nascido. (p. 241)

Algumas páginas antes, numa outra crônica, Hildebrando já se referira a esse filho dileto de seu trabalho científico que é dado à luz depois de ele e outros companheiros de jornada pingarem “milhares de gotas”, esfregarem “milhares de placas” e contarem “milhões de buraquinhos”. “Um dia… Uma nova bela colina se revelou a nossos olhos. A colina do gene CRO. A colina de Harvey Eisen, Pereira da Silva e François Jacob. Control of the Repressor and Others. Uma bela colina!” (p. 217)

Neste livro que inclui duas obras já publicadas, O fio da meada e Crônicas de nossa época, o talento narrativo do cientista, atuante aos 83 anos, se revela em toda a sua força também nos textos que trazem à cena retalhos preciosos da história do Brasil vista desde o campo da esquerda militante, e do Partido Comunista (PCB) em particular. Seja do exílio europeu, seja de dentro do navio Raul Soares, onde ele e tantos ficaram presos após o golpe de 1964, Hildebrando apresenta ao leitor personagens grandiosos e outros um tanto ridículos, cenas hilárias, tratadas com penetrante ironia, e outras dolorosas, perpassadas por infinita tristeza. É assim que ele conta, por exemplo, a última recepção a Roberto Morena, militante comunista em perpétua peregrinação. “Vejo sair do avião primeiro os turistas e os homens de negócios, depois Benedito Cerqueira, seu camarada na FSM, que o traz nas mãos. Ele me passa Morena e eu o tomo em meus braços com ternura. Ele não pesa muito. Apenas um quilinho. Um quilinho de cinzas.” (p. 282)

Chama atenção a capacidade de Hildebrando de fugir a toda tentação maniqueísta e, por isso, poder flagrar, de repente, no olhar de um político como o ex-governador paulista Adhemar de Barros, naturalmente um adversário, um lampejo de pura dignidade e determinação, e não se furtar a revelá-lo. E impõe-se por fim ao meu olhar o quanto é povoado quase que só por homens o universo por ele narrado. É um código masculino da amizade que apreendemos quando ele diz: “No momento da despedida, o fiscal de rendas me estendeu a mão, que apertei com cordialidade. Ao balançar a minha, com uma pressão em que eu reconhecia ternura de um novo companheiro, ele me disse: (…) se eu for preso outra vez não será mais por corrupção… Será por subversão!” 
Revista FAPESP

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