sábado, 19 de maio de 2012

O Africano


MEMÓRIAS DA ÁFRICA: A INFÂNCIA NA NIGÉRIA
                                                     Antonio Carlos Petean
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“O Africano”, de J. M. G. Le Clézio, é uma obra baseada nas memórias do autor. 
Memórias de sua infância na Nigéria, na região de Ogoja, sob  o  domínio do império colonial inglês. Império que começou a ser consolidado em 1660 com  a criação de entrepostos de captação de escravos para as colônias americanas. Mas foi somente no século XVIII (1787)  que a Inglaterra apossou-se de territórios entre o rio Gâmbia e a Nigéria, dando início ao projeto colonial britânico na África. O colonialismo britânico no continente africano teve fim em 18 de abril de 1980, quando a Inglaterra e a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceram oficialmente a independência do Zimbábue.
O livro, dividido em sete partes, é constituído das lembranças do escritor de quando foi viver com o pai na África, após a  Segunda  Guerra  Mundial. O seu  pai era médico-oficial do exército inglês e chegou à Nigéria em 1928. 
O autor, entretanto, chegou à África em 1948, com sua mãe e irmão. Unidos ao pai, foram viver  distante da administração colonial inglesa. “O trabalho que meu pai fazia, primeiro em Camarões, depois na Nigéria, criava uma situação excepcional. A maioria dos ingleses lotados na colônia exercia funções administrativas” (LE CLÉZIO, 2007, p. 16). 
Segundo Le Clézio, os militares, juízes e oficiais de distrito da administração colonial concentravam suas atividades próximo ao litoral, mas o seu pai estava baseado num antigo hospital religioso no norte da província de Cross River, na região de Ogoja. Portanto, segundo o escritor: “Nós, meu irmão e eu, éramos as únicas crianças brancas de toda aquela região. Não conhecemos nada do que foi capaz de forjar a identidade um pouco caricaturesca das crianças criadas nas colônias” (LE CLÉZIO, 2007, p. 17).
Ele descreve a humanidade com que conviveu nesse período. Uma humanidade constituída, unicamente, de iorubas e ibos. 
Suas memórias dão o tom dessa obra. No início, Le Clézio descreve as primeiras sensações que teve ao entrar em contato com a África. Sensações que o fizeram esquecer dos duros anos em que viveu em Nice, na França, escondido num apartamento durante a Segunda Guerra Mundial, cujas únicas recordações são o barulho das bombas caindo sobre a cidade, o tráfico, a falta de alimentos e medicamentos e as mentiras.
Na África, o autor relata que suas sensações se multiplicaram, sensações de liberdade. Essa multiplicação, nas suas palavras, seria motivada pela nova humanidade que estava diante dele e da qual fez parte. Uma humanidade visível nos corpos africanos à sua volta. Tudo muito estranho para um garoto europeu. “Na África, a falta de pudor dos corpos era magnífica. Dava profundidade, dava alcance, multiplicava as sensações, estendia a minha volta uma rede humana” (LE CLÉZIO, 2007, p. 9). 
Desse tempo, por assim dizer consecutivamente, data o aparecimento dos corpos. Meu corpo, o corpo de minha mãe, o corpo de meu irmão, o corpo dos garotos da vizinhança com os quais eu brincava, o corpo das mulheres africanas nos caminhos, ao redor da casa, ou então no mercado, perto do rio. Sua estatura, seus seios pesados, a pele luzente de suas costas. O sexo dos garotos, sua glande circuncisa. (LE CLÉZIO, 2007, p. 8). 


Os corpos, segundo os relatos, são a alteridade que lhe causa a primeira sensação de 
liberdade e estranhamento na infância em Ogoja.
No decorrer da obra, Le Clézio deixa transparecer que as sensações que sentia eram 
também confrontadas com as crenças africanas. Relata que uma de suas principais 
brincadeiras era destruir cupinzeiros, comparados pelo autor a torres de castelo. 
Devemos ter começado jogando pedras, para sondar, para escutar o 
barulho que elas faziam ao bater nos cupinzeiros. A pauladas, 
atacávamos depois as torres altas, para ver a terra esfarinhada ruir, para 
expor à luz as galerias e os bichos cegos que viviam lá dentro. (LE 
CLÉZIO, 2007, p. 25). 
Nas suas palavras, “pode ser que desse modo rejeitássemos a autoridade excessiva 
de nosso pai, revidando golpe com golpe através de nossas pauladas” (LE CLÉZIO, 2007, 
p. 26).
O escritor conta que os garotos africanos da aldeia nunca os acompanhavam nessa raiva demolidora, 
[...] já que o mundo no qual eles viviam os cupins eram algo que se impunha, tendo um papel a representar nas lendas. No começo do mundo, o deus-cupim tinha criado os rios, e era ele o guardião das águas para os habitantes da terra. Por que então destruir sua morada? (LE CLÉZIO, 2007, p. 26). 
Nessa passagem, evidencia o autor a relação entre as crenças africanas e a natureza, algo que lhe era estranho enquanto europeu. Transmitidas por meio da cultura oral, essas crenças deixam claro o caráter pedagógico da oralidade africana. O resultado, se é que se pode utilizar este termo, seria o respeito pela natureza por parte das crianças africanas.   
Mas o autor apresenta ao leitor a ação do imperialismo inglês em sua ânsia por matéria-prima ao recordar que, “no meio da savana, erguiam-se grandes árvores de tronco muito reto, as quais serviam, conforme vim saber mais tarde, para fornecer os assoalhos de mogno dos países industrializados” (LE CLÉZIO, 2007, p. 24).  
O memorialista demonstra, ainda, sua indignação para com a administração colonial inglesa. Por certo, uma indignação herdada das imagens que seu pai presenciou e lhe transmitiu na infância, pois ele declara que:
A África começou para meu pai quando ele tocou na costa do ouro, em Acra. Imagens características da colônia: viajantes europeus, vestidos de branco e com capacetes cawnpore na cabeça, são desembarcados num bote e transportados para a terra a bordo de uma piroga tripulada por 
negros. Não é essa a África que mais expatria: resume-se ela à estreita faixa que acompanha o litoral, desde a ponta do Senegal até o Golfo da Guiné, conhecida por todos que vêm das metrópoles para fazer negócios e enriquecer rapidamente. (LE CLÉZIO, 2007, p. 24).
Em menos de meio século, essa sociedade “se arquitetou em castas, lugares reservados, proibições, privilégios, abusos e lucros” (LE CLÉZIO, 2007, p. 62). Ainda a respeito desse mundo colonial,  o autor relata  que as esposas dos oficiais e dos administradores ingleses projetavam nos serviçais africanos todo o rancor que possuíam.
Le Clézio se recorda  de  que o território a cargo de seu pai era imenso: “Vai da fronteira com o protetorado francês de Camarões, ao sudeste, até os confins de Adamawa, ao norte e abrange a maior parte das chefias e dos pequenos reinos que escapam à autoridade direta da Inglaterra” (LE CLÉZIO, 2007, p. 75).  E acrescenta: “Não são, porém, regiões isoladas nem selvagens” (LE CLÉZIO, 2007, p.77). Lembra  ainda o autor que eram regiões prósperas, com grandes áreas cultivadas e de pecuária. “[...] não é a África de Tartaris de Tarascon, nem sequer a de John Huston. É, antes, a de Out of Africa, uma África real, de grande densidade humana” (LE CLÉZIO, 2007, p. 81).
Ele se recorda  de  que seu pai tomou consciência de sua profissão e papel ao perceber que o médico é um agente administrativo tal qual o policial ou o juiz e que:
A prática da medicina também é um poder sobre pessoas, sendo a vigilância médica, igualmente uma vigilância política. Bem o sabia o exército britânico, ele que, no começo do século, após anos de resistência encarniçada, pôde vencer pela força das armas e da técnica moderna a magia dos últimos guerreiros Ibos. (LE CLÉZIO, 2007, p. 97). 
Todas essas memórias são também as memórias de seu pai e suas angústias. Como o próprio Le Clézio admite: “Essa memória não é somente a minha. É também a memória do tempo anterior ao meu nascimento [...] A memória das esperanças e angústias de meu pai, de sua solidão, seu abatimento em Ogoja” (LE CLÉZIO, 2007, p. 122). Le Clézio observa em seu pai uma angústia  de quem vê a administração colonial inglesa como destrutiva e arrogante, como algo que caminha para uma catástrofe.
De volta à Europa, já nos anos 1960, o autor partilha das angústias de seu pai com as notícias que chegam da África, principalmente sobre a Guerra de Biafra, que opõe ibos e iorubas, e a Guerra da Argélia. Por fim, relata: “Vi imagens terríveis em todos os jornais e revistas. Pela primeira vez, o país onde eu havia passado a parte mais memorável de minha infância era mostrado ao resto do mundo, mas apenas por estar à morte” (LE CLÉZIO, 2007, p. 117). 
Essas são as memórias e impressões deixadas pelo autor durante alguns anos da infância passados na Nigéria.  
A contribuição dessa obra só poderá ser alcançada se percebermos a importância da História oral, da religiosidade africana e dos contos africanos para uma prática pedagógica que possa pensar a educação ambiental e o respeito à diversidade cultural.       
Referência                                                                    
LE CLÉZIO, Jean-Marie Gustave. O Africano. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 
Cadernos da Pedagogia. São Carlos

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