domingo, 13 de maio de 2012

Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro



Noel dos Santos Carvalho - Unicamp
noelsantoscarvalho@yahoo.com.br

TACCA, Fernando Cury de. Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas: São Paulo, Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, 200 páginas.
Em 1942, Arthur Miller escreveu um instigante romance, Focus, em que o personagem principal inquire seu perseguidor racista: “Em outras palavras, quando você me olha não me vê. O que você vê?” (MILLER, 2002, p. 180). A pergunta explicita a dupla articulação que envolve a representação. Construímos o sentido de dentro do nosso lugar no mundo onde classe, etnia, nacionalidade, cultura, etc. contam sobremaneira. Entretanto, o objeto do nosso olhar também tem sua própria existência. Como na passagem acima, o resultado dessa relação muitas vezes é tenso.
Howard Becker formulou a questão em termos originais. Para ele, a representação se assemelha a um relato sobre o mundo social, cujo sentido insere-se num contexto organizacional, em que produtores especializados elaboram sistemas representacionais para usuários interessados. Mapas rodoviários, por exemplo, são representações pouco úteis para pedestres, assim como filmes documentários interessam a um público que têm suas atividades voltadas à prática documental ou temas correlatos. A representação, em suma, é produto da ação coletiva de atores sociais interessados na sua produção e recepção, ao contrário das análises formalistas radicais, que se bastam com a busca dos significados endógenos à obra isolada – como se houvesse uma essência artística transcendental. Aqui, para lembrar Baxandall, privilegiam-se os “fatores culturais” que agem sobre a percepção, produzindo as categorias adequadas e competências de fruição. A passagem abaixo ilustra a relação produção/recepção que presidia a realização de uma pintura na Renascença:
O observador deve utilizar na fruição de uma pintura as capacidades visuais de que dispõe, e dado que, dentre essas, pouquíssimas são normalmente específicas à pintura, ele é levado a usar as capacidades que sua sociedade mais valoriza. O pintor é sensível a tudo isso e deve se apoiar na capacidade visual de seu público. Quaisquer que sejam seus talentos profissionais de especialista, ele mesmo faz parte dessa sociedade para a qual trabalha, e compartilha sua experiência e hábitos visuais (BAXANDALL, 1991, p. 48).
As representações, portanto, decorrem da ação coletiva dos atores sociais. Estes possuem as disposições psicológicas para a sua produção e recepção. Nessa perspectiva, elas ganham plasticidade: são verdade e ficção, documentos e construções imaginativas. Uma foto documental, filme ou gravura podem ter significados diversos, dependendo dos usos e contextos em que estão inseridos – obras e usuários. Escreve Becker sobre as fotografias documentais:
Seu significado surge nas organizações em que são usadas, a partir da ação conjunta de todas as pessoas envolvidas nessas organizações, e, assim, varia de um momento e de um lugar para outro. Como as pinturas adquirem seu significado em um mundo de pintores, colecionadores, críticos e curadores, fotografias obtêm seu significado a partir do modo como as pessoas envolvidas com elas as compreendem, usam-nas e desse modo lhe atribuem significado.” (BECKER, 2009, p. 185).
É esta paisagem conceitual que articula o novo livro do fotógrafo e antropólogo Fernando de Tacca, Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Através de rigorosa pesquisa e primorosa análise de fontes, Tacca deslinda um imbróglio ocorrido há quase sessenta anos, mais precisamente no inicio dos anos 1950, quando desembarcou por aqui o cineasta francês Henri-Georges Clouzot. Depois de tentativas malogradas de realizar dois filmes no Brasil, um dos quais integralmente interpretado por atores negros – o que, diga-se de passagem, o Cinema Novo só faria mais de dez anos depois –, Clouzot publica na França, em 1951, o livro Le chevau de dieux e a reportagem Les possédés de Bahia, na revista francesa Paris Match. Em tempos de nacionalismo à flor da pele, a recepção nativa leu como pode as fotos e a reportagem. A reação indignada foi imediata. A Federação de Culto Afro-brasileiro e intelectuais do porte de Edson Carneiro, Roger Bastide e Alberto Cavalcanti atacaram Clouzot, acusando-o de “colonialista” e “sensacionalista”.

Foto 1. Paris Match 12/05/1951

Foto 2. Paris Match 12/05/1951

Foto 3. Paris Match 12/05/1951
O troco na mesma moeda veio quando a revista de maior circulação nacional da época, O Cruzeiro, de propriedade do magnata Assis Chateaubriand, comprou a briga e produziu sua própria reportagem, As noivas dos deuses sanguinários. A carta do chefe de redação intimando o fotógrafo José Medeiros é um achado. Em tom ressentido e com a honra ferida conclama o fotógrafo a produzir as fotos da reportagem, “PARA LAVAR NOSSA CARA TÃO DURAMENTE ATINGIDA PELA REPORTAGEM DE CLOUZOT...” [sic] (TACCA, 2009, p. 124).
Ocorre que, ao contrário do vaticínio liberal, nem sempre o laissez faire, laissez aller, laissez passer nos meios de comunicação leva “naturalmente” ao caminho das tão esperadas diversidade e originalidade. Como assevera Bourdieu, a concorrência entre redações pela busca do “furo” produz um efeito de campo paradoxal que leva à uniformidade das matérias. Escreve o sociólogo:
... a concorrência incita a exercer uma vigilância permanente (que pode chegar à espionagem mútua) sobre as atividades concorrentes, a fim de tirar proveito dos seus fracassos, evitando seus erros, e de contrapor-se a seus sucessos, tentando tomar emprestados os supostos instrumentos de seus êxitos, temas de números especiais que jornalistas se sentem obrigados a retomar, livros resenhados por outros e dos quais ‘não se pode deixar de falar’, convidados que é preciso ter, assuntos que se devem ‘cobrir’ porque outros os descobriram e mesmo jornalistas que são disputados, tanto para impedir os concorrentes de tê-los quanto por desejo real de os possuir(BOURDIEU, 1997, p. 107-8).
Não foi outro o resultado da disputa entre a Paris Match e O Cruzeiro.Rigorosamente, não há grande diferença entre as fotos de Clouzot e Medeiros. Evidentemente, ao leitor cabe a própria conclusão, e nesse ponto ele é ajudado pelo livro ricamente documentado.
Foto 4. O Cruzeiro, 15/09/1951

Foto 5. O Cruzeiro, 15/09/1951

Foto 6. O Cruzeiro, 15/09/1951
Quem entendeu imediatamente que as reportagens eram semelhantes quanto à representação sensacionalista foi o antropólogo Roger Bastide que “coloca a reportagem de O Cruzeiro como um ‘crime’ da mesma ordem da Paris Match” (TACCA, 2009, p. 154). O meio intelectual calou-se diante da reportagem de O Cruzeiro, sugere Tacca: seja porque Medeiros era conhecido e respeitado por vários dos intelectuais que poderiam se opor à reportagem, seja porque a revista era de propriedade do manda-chuva das comunicações da época, Assis Chateaubriand. Escreve:
Não encontramos nenhuma manifestação, contra ou a favor, sobre a reportagem ‘As noivas dos deuses sanguinários’. Um silêncio sepulcral abateu-se nos jornais e revistas. Esperávamos, depois de uma fúria incontida contra o estrangeiro usurpado de nossa cultura, que ao menos os mesmos jornalistas e intelectuais se manifestassem como fizeram com Clouzot. Alguns caminhos podem ser explicativos. Medeiros era amigo de todos eles, companheiro de trabalho de vários jornalistas, e uma pessoa muito amável, como todos assim se referiam a ele. Já tinha na época uma admiração profissional de seus próprios pares. Junte-se a este aspecto afetivo, a difícil resolução, a questão de colocar-se em oposição a um semanário nacional da importância de O Cruzeiro, com a força devastadora de seu dono, Assis Chateaubriand, e da rede de Diários Associados. Todos silenciaram, menos um, que não era brasileiro e pôde ter uma neutralidade em relação aos fatos (TACCA, 2009, p 154).
O conhecido modus operandi da intelectualidade brasuca deixaria a corda roer para o lado mais fraco: Mãe Riso da Plataforma, a mãe-de-santo que autorizou a reportagem. Esta atraiu a ira da comunidade religiosa, da Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros e foi acusada de ter se beneficiado economicamente das fotografias.
No entanto, devemos entender o silêncio dos intelectuais de uma perspectiva mais ampla. É sabido o quanto a construção de um campo intelectual autônomo entre nós deu-se a duras penas. A liberdade de opinião decorre da posição independente que o francês Bastide ocupava naquele momento. Era professor da cadeira de sociologia na Universidade de São Paulo, instituição que lhe assegurava certa independência intectual. Diferente era a condição precária da maioria dos intelectuais nativos que se desdobravam em trabalhos no funcionalismo público, editoras, imprensa, cinema etc. Portanto, mais vulneráveis às pressões políticas e econômicas (MICELI, 2001).
O autor faz ainda um minucioso levantamento para chegar aos fatos ocorridos após a publicação das fotos. Movimentando-se por meio de informantes através da rede de sociabilidade do candomblé, entrevista pessoas chaves para interpretar a trajetória da mãe-de-santo. Neste percurso remonta a história das fotografias e o modo como elas foram recebidas pelos atores sociais nativos do camdomblé. Se, como vimos acima, asociedade é um campo de batalhas de representações (CLARK, 2004, p. 39), Tacca deixa claro para o leitor atento que os limites e coerências das representações são contestados e rompidos constantemente. Um fato ocorrido durante a pesquisa ilustra o modo como as imagens são apropriadas e ressignificadas pelos atores sociais.
... Jane trouxe-nos um álbum familiar. Uma sobrinha de Perrucha recortara todas as imagens de uma revista O Cruzeiro em que aparecia a tia e fez uma espécie de álbum de recordações, com o título ´Lembrança de minha Epilação, editada da Revista O Cruzeiro, de setembro de 1951`, descontextualizando dessa forma a reportagem e ressignificando as imagens no âmbito familiar. Surpreendentemente aparece no final do álbum seu reconhecimento religioso pela Federação Bahiana de Cultos Afro-Brasileiros, com sua ficha de inscrição e sua carteirinha de associada. A migração das imagens publicadas, recortadas e deslocadas para o âmbito familiar, introduzia uma aproximação memorialista com o evento religioso em si, como o próprio título do álbum sugeria, e sem colocá-lo à parte do contexto midiático, pois as imagens mantinham o padrão gráfico de uma publicação e o título fazia referência à revista. Portanto, nesse momento, a epilação de Perrucha aparecia como uma recordação familiar de um evento midiático, mas sem as referências sensacionalistas do título da reportagem (TACCA, 2009, p. 35-38).
A pesquisa desmistifica ainda o que se dizia a respeito da Mãe Riso: que teria recebido um castigo sobrenatural por permitir as fotos, que o seu terreiro havia sido “quebrado” e que fugira para o Rio de Janeiro onde teria sido assassinada, etc. Ao contrário, a trajetória de Mãe Riso foi das mais prolíficas no candomblé. Mudou-se para Nilópolis onde abriu um terreiro, auxiliou a abertura de outro em São Paulo e “... manteve laços fortes com o candomblé de sua origem e de seu território na área da Plataforma” (TACCA, 2009, p. 64). Teve mais de cem filhos-de-santo só no Rio e quando morreu, em 1° de janeiro de 1993, aos 73 anos, cerca de 600 pessoas, todas vestidas de branco, acompanharam o seu enterro.
O texto, escrito em primeira pessoa, tende a criar uma identidade entre o narrador e o leitor. Este descobre os acontecimentos que marcaram o embate midiático sobre a representação do candomblé, guiado por um narrador que não se furta em manifestar suas emoções ante as descobertas da pesquisa. A produção do saber não está apartada da afetividade, como qualquer pedagogo sabe. A busca por mãe Riso da Plataforma em Nilópolis é exemplar:
Chegando ao número de que dispunha, logo o identifiquei como sendo o terreiro de Riso: um lindo São Jorge em azulejo reinava icrustado na frente e no alto da casa. Neste momento senti uma grande emoção de estar ali defronte do terreiro de Riso, e ao mesmo tempo uma vontade muito grande de tê-la conhecido. De alguma forma, senti sua presença pela primeira vez, uma boa sensação (TACCA, 2009, p. 67).
Ao término do livro fica a sensação do percurso feito, dos nós reatados e do mistério solucionado. As lutas em torno da revelação dos segredos do candomblé sugerem o modo como uma parcela da população lida com as religiões que escapam ao controle social. Como na formulação de Arthur Miller, a bricolagem da sobrinha de Perrucha com as fotos da revista O Cruzeiro materializa uma singela e eficaz resposta política.
Neste sentido, vale acrescentar sua importância para o debate sobre a representação do negro. Nos últimos anos artistas, pesquisadores e ativistas têm levantado questões sobre o ônus representacional dos grupos excluídos, atentos às imagens produzidas pelos meios de comunicação de massa como revistas, cinema e televisão. O livro contribui ao chamar atenção para as ambigüidades em torno da representação e dos seus possíveis usos.
Referências bibliográficas
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente – pintura e experiência social na Itália da renascença, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BECKER, Howard. Falando da sociedade – ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
CLARK, T.J. A pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MILLER, Arthur. Focus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
TACCA, Fernando Cury de. Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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