quarta-feira, 28 de março de 2012

A guerra civil espanhola



Rodrigo Patto Sá Motta
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. rodrigosamotta@yahoo.com.br

Francisco J. Romero Salvadó. A guerra civil espanhola
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 356p.

O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.

Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.

Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.

É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.

Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.

Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.

Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.

O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a 'milhões' de soldados; e o nome do marec
hal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.
Revista Brasileira de História

Nenhum comentário:

Postar um comentário