Any Correia Freitas
Barry Buzan e Richard Little. Oxford, Oxford University Press, 2000, 452 páginas.
Em que momento da história mundial surgiram os primeiros sistemas internacionais? De que modo eles se desenvolveram? Como o sistema internacional contemporâneo se tornou aquilo que é atualmente? Para que direção aponta seu futuro? À primeira vista, são perguntas dessa natureza que parecem ter instigado Barry Buzan e Richard Little, levando-os a escrever International Systems in World History. A leitura de suas primeiras páginas revela, no entanto, que não foram de fato as perguntas que os incentivaram a investigar o assunto, mas, em grande medida, a limitação e, não raro, a ausência de respostas que as teorias de Relações Internacionais poderiam oferecer a elas. Investigar as causas desse silêncio, e apresentar alternativas a ele, parece ter sido o ponto de partida para o livro.
O diagnóstico de Buzan e Little para o problema, além de bastante incisivo, ilustra com precisão o estado atual da disciplina. Perdida em meio a grandes debates, e com o foco de atenção voltado para questões atuais, nenhuma perspectiva teórica dentro das Relações Internacionais teria formulado um conceito de sistema internacional capaz de transcender as fronteiras de Westphalia.
Para a grande maioria delas, a referida história dos sistemas internacionais se resumiria àquela do sistema de Estados europeu e pouca coisa antes disso teria relevância para as pesquisas e análises produzidas na área. De fato, isto não está muito longe da verdade. Embora o interesse pela história não seja inédito na disciplina, a tendência é que esta seja usada anacronicamente para comprovar teorias e modelos do presente. Deve-se, sem dúvida, reconhecer que realistas clássicos, como Morgenthau, por exemplo, acrescentaram grande conteúdo histórico às suas análises; no entanto, isto parece ocorrer muito mais como uma tentativa de construir um passado clássico para o realismo do que como um desejo real de elaborar uma abordagem histórica abrangente da teoria.
Essa falta de perspectiva histórica (ou, ao menos, de uma perspectiva de mais longo termo), além de representar um entrave para o desenvolvimento dessas mesmas teorias, impede ainda que a área de Relações Internacionais consiga sair do gueto no qual se encontra confinada. Muito embora esta tenha, por natureza, tanto o potencial quanto a obrigação de exercer influência fora de suas fronteiras e, dessa forma, desempenhar o papel de macrodisciplina integradora das ciências sociais e da história, seu status atualmente ainda é o de uma disciplina periférica e atrasada em relação às demais (:33, 384 e 407). Os conceitos e abordagens que desenvolve - por estarem presos a uma experiência bastante particular, essencialmente moderna e européia - não teriam robustez e expressividade suficientes para suscitar o interesse de outras áreas, o que acaba aprofundando seu isolamento.
Para Buzan e Little, esta seria também a causa principal para o confinamento do conceito (e objeto) próprio das Relações Internacionais que é o "sistema internacional". Apesar de sua evidente qualidade de veículo capaz de estruturar uma perspectiva de história mundial, bem como de unidade para macroanálises nas ciências sociais, o sistema internacional continua sendo ignorado, normalmente preterido pelo conceito de sistema mundial, elaborado pelo sociólogo Immanuel Wallerstein (:5-9, 30-33).
A característica a-historicidade das teorias dominantes na disciplina - mais especificamente aquelas ligadas à tradição americana, como o neo-realismo - é que, em grande medida, teria levado à formulação de um conceito de sistema internacional restrito ao setor político-militar, dotado de unidades (em geral Estados) sem diferenciação funcional (i.e., unidades idênticas) e cuja estrutura é sempre anárquica. Com efeito, os autores parecem ter razão quando afirmam que, apesar de se pretender universal, esse conceito de sistema internacional, normalmente aceito na disciplina, não pode ser usado em análises que se estendam em um espectro de tempo e espaço mais amplo do que aquele compreendido na história pós-Westphalia.
Desse modo, torna-se mais fácil compreender as razões para o silêncio das diversas teorias da área quando são chamadas a identificar e analisar sistemas internacionais ao longo da história mundial. Na verdade, diante de sistemas que não se limitam ao setor político-militar, cujas unidades dominantes não são homogêneas (e tampouco se parecem com o Estado) e onde a estrutura não é anárquica, essas teorias não teriam sequer o instrumental teórico necessário para identificá-los como tais. No entanto, esta é, segundo Buzan e Little, justamente, a configuração de muitos dos sistemas internacionais que existiram ao longo da história.
A solução proposta para o impasse parece, de fato, bastante lógica: a união da história com a teoria. Dotadas de um conteúdo histórico mais abrangente, as teorias de Relações Internacionais poderiam rever e reformular suas premissas e, conseqüentemente, seu objeto, para tornar o sistema internacional finalmente apto a assumir o papel de unidade de análise transdisciplinar que lhe é devido. Por outro lado, esse novo conceito também teria condições de fornecer a estrutura teórica necessária para sistematizar o estudo da história mundial, viabilizando, assim, um novo modo de se fazer sua periodização. Tomando as idéias que dão título ao livro, olhar para o passado com um conceito de sistema que escapa ao modelo westphaliano permitiria não só oferecer uma alternativa ao modo como normalmente a história mundial é narrada, como também refazer o estudo desses sistemas dentro da própria disciplina.
O casamento entre as teorias de Relações Internacionais e a história mundial é, de fato, uma das idéias centrais de International Systems in World History. Não se trata, na verdade, de algo novo, mas reconhecidamente da continuação - ou releitura - de um trabalho já desenvolvido pela Escola Inglesa - na qual os autores fortemente se baseiam -, só que, desta vez, com a pretensão de conferir-lhe bases teóricas mais sólidas. Buzan e Little acreditam que tal união seja mutuamente benéfica, "um ato essencial", para o desenvolvimento da disciplina e suas teorias e, sem dúvida, uma maneira de estruturar o estudo da história mundial (:385, 408).
Ainda que sejam claros para a disciplina os ganhos dessa junção entre teoria e história, é mais difícil perceber até que ponto as Relações Internacionais poderiam realmente favorecer a história mundial. A proposta de uma periodização tripartite da história, tendo como base a formação e o desenvolvimento - no tempo e no espaço - de diferentes tipos de sistemas internacionais, pode ser (e, muitas vezes, de fato é) bastante interessante1. No entanto, de certo modo ela parece representar muito mais um ganho para a própria disciplina (já que esta teria a possibilidade, até então inédita, de fazer um recorte próprio da história) do que um efetivo avanço para a história mundial.
Para as Relações Internacionais, as vantagens dessa conexão são, com efeito, manifestas. Ao contrário do que pensam Buzan e Little, no entanto, talvez a maior delas não seja a possibilidade de desenvolvimento e a afirmação da disciplina, mas sim o fato de a história tornar evidentes todas as falhas e insuficiências das teorias dominantes na área e, mais precisamente, as do neo-realismo2. Quando analisados sob uma perspectiva histórica, os sistemas internacionais podem assumir configurações bem diferentes daquelas ditadas pelas premissas neo-realistas, e é essa nova maneira de olhar que representa a grande possibilidade que a história pode trazer à teoria.
A presunção neo-realista de que as unidades do sistema são sempre iguais em sua totalidade, pode não se verificar. Em muitos momentos, tais unidades podem possuir diferenças não somente estruturais, mas também funcionais, a despeito da existência de forças de socialização e competição que tenderiam a homogeneizá-las. Este foi o caso das eras antiga e clássica quando cidades-estado, impérios, tribos e impérios nômades coexistiram durante muito tempo como unidades principais em um mesmo sistema internacional. Outra premissa neo-realista, de que a anarquia é uma característica constante do sistema, aliás, também cai por terra quando se analisa esse mesmo período. Em muitas instâncias, anarquia e hierarquia podem alternar-se em "fases" sem que, por isso, o sistema internacional deixe de existir. A idéia de que são modificações no plano da estrutura que levam a mudanças no sistema também pode ser questionada. De uma perspectiva histórica, as características das unidades e o modo como se estruturam internamente é que seriam as chaves para se entender o caráter e as transformações que podem ocorrer no sistema (ver nota 1).
Historicamente, torna-se mais interessante pensar não somente nos tipos de unidade dominantes, mas também nos diferentes tipos de interação (processo) e estrutura que podem ser construídos entre essas unidades. A diferenciação setorial - introduzida pelos autores no que chamam de seu "kit de ferramentas teóricas" - é essencial para perceber que, na verdade, em vez de um, vários sistemas internacionais podem coexistir em um mesmo momento da história mundial, ampliando dessa forma suas possibilidades de análise.
Em cada setor - seja ele político-militar3, econômico, sociocultural ou ambiental4 - haverá um tipo de processo e estrutura distinto, que freqüentemente se relacionam, mas cujo desenvolvimento não se dá ao mesmo tempo nem com a mesma intensidade. Dessa forma, para definir o caráter e a escala do sistema internacional, o setor econômico tende a tornar-se mais importante do que o político-militar, por exemplo. Esta seria uma tendência visível no sistema internacional global contemporâneo, em que os processos do setor econômico, por terem assumido maior abrangência e intensidade do que os de qualquer outro, acabam tornando mais fácil falar em "economia global" do que em governo ou sociedade global.
Essa diferenciação dos sistemas internacionais por setores, vale ressaltar, é o instrumento que permite que Buzan e Little resgatem as idéias da Escola Inglesa de distinção entre sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial, segundo três diferentes tradições (hobbesiana, lockiana e kantiana). Nessa releitura, os sistemas internacionais equivaleriam aos sistemas internacionais observados no setor político-militar (mais próximo também do sistema neo-realista); as sociedades internacionais, no setor sociocultural, e as sociedades mundiais poderiam ser entendidas como sistemas analisados no plano do indivíduo. A diferenciação dos níveis de análise é, aliás, outra ferramenta analítica introduzida pelos autores. Segundo eles, além do nível individual5, haveria outros quatro usados com freqüência em Relações Internacionais: os níveis do sistema, do subsistema, da unidade e da subunidade.
O último instrumento do referido "kit" consiste na separação das diversas "variáveis que explicam o comportamento", ou melhor, das fontes de explicação que podem ser encontradas em todos os sistemas, seja qual for o setor e o nível de análise. Tais fontes seriam três: a capacidade de interação (que corresponderia à quantidade de interação possível, tendo em vista as tecnologias físicas e sociais disponíveis em certo tempo e lugar), o processo (os padrões de ação e interação existentes, ou ainda, a interação que efetivamente ocorre) e, por fim, a estrutura, para a qual usa a definição clássica de Waltz (os princípios que definem como as unidades serão arranjadas dentro de um sistema, qual a diferenciação entre elas e também seu relacionamento, tendo por base suas capacidades relativas).
O que Buzan e Little propõem é que, com base nessas diferentes ferramentas teóricas, os sistemas internacionais possam ser observados em seus diferentes setores, cada um deles podendo ser analisado em níveis distintos, aos quais são conferidas fontes de explicação próprias. Com essa abordagem em mente, identificam três tipos básicos de sistema: os sistemas internacionais completos (abrangendo todos os setores), os econômicos (no qual tem maior relevo o setor econômico, sem, contudo, excluir o político-militar) e os pré-sistemas internacionais (com maior ênfase no setor sociocultural). Tal diferenciação não significa, contudo, uma separação ou corte radical. Porque fazem parte de uma mesma realidade, tais sistemas podem coexistir - e isto é o que com freqüência ocorre.
A maior parte dos argumentos apresentados até aqui - argumentos, aliás, sobre os quais o livro se baseia - são introduzidos já na primeira parte de International Systems in World History. A premissa central é que o conceito de sistema internacional, tal como formulado dentro da disciplina, não só impede que as teorias de Relações Internacionais possam descrever e analisar o modo como diversos sistemas internacionais surgiram e se desenvolveram ao longo da história mundial, como também impossibilita que o mesmo assuma seu papel de unidade de análise comum a todas as ciências sociais e à história mundial.
O "presentismo" (foco nas questões de história e política contemporânea), o "a-historicismo" (busca de leis e padrões imunes às variações históricas), o "eurocentrismo" (percepção da história mundial como uma extensão da experiência histórica européia), a "anarcofilia" (fixação em questões como anarquia e soberania) e o "estadocentrismo" (Estado encarado como unidade dominante, o que acaba vinculando o sistema internacional ao setor político-militar), arraigados nas teorias dominantes da disciplina, explicariam por que o conceito de sistema internacional não consegue libertar-se do modelo westphaliano e abranger diferentes experiências ao longo da história mundial (:17-22).
Para transcender tais fraquezas e, ainda, para dar conta da complexidade do tema, faz-se necessária a adoção de um pluralismo, tanto teórico quanto metodológico. Somente por meio de uma abordagem desse tipo seria possível formular um conceito capaz de abranger tanto a dimensão social quanto material dos sistemas internacionais, possibilitando, dessa forma, a conciliação de elementos de diferentes abordagens teóricas (no caso, o neo-realismo de Waltz, o construtivismo de Alexander Wendt6 e a Escola Inglesa) com elementos da história mundial.
Quando analisado com maior cuidado, contudo, o referido pluralismo guarda mais semelhança com a abordagem que a Escola Inglesa faz dos sistemas internacionais (segundo os autores, a única capaz de superar todas aquelas fraquezas já apontadas) do que como uma tentativa real de congregar elementos de diferentes teorias. Não se está querendo negar aqui que os postulados da teoria sistêmica de Waltz são, de fato, os fundamentos sobre os quais essa nova percepção dos sistemas internacionais será construída, ou ainda, que alguns elementos do construtivismo estejam presentes (ver nota 6). No entanto, são as idéias da Escola Inglesa que, como já foi dito, informam tal construção. Buzan e Little, por certo, reconhecem suas limitações (uma delas, seria o fato de a Escola Inglesa também não conseguir oferecer um conceito suficientemente abrangente para os propósitos do livro), mas a intenção dos autores é justamente superá-las, indo buscar na história mundial os instrumentos necessários para tanto.
Esse pluralismo metodológico, aliado às ferramentas de análise anteriormente mencionadas, são os elementos que, em grande medida, garantem a originalidade da proposta dos autores. Tendo em mãos esses instrumentos, Buzan e Little procuram estabelecer os critérios apropriados para a formulação de um conceito transhistórico de sistema internacional, capaz de expandir-se para muito antes dos quinhentos anos de Westphalia. O tipo e a quantidade de interação, o padrão, a escala, o tipo de unidade dominante, a relação existente entre elas, bem como a estrutura são os elementos necessários para que um sistema internacional possa ser identificado (:90-108). A intenção aqui faz lembrar o intuito de Waltz de construir uma teoria sistêmica parcimoniosa e elegante, capaz de explicar um grande número de eventos com o menor número de variáveis possível, resistindo ainda às variações e particularismos da história. Ao contrário de Waltz, entretanto, Buzan e Little pretendem levar as possibilidades de análise do conceito para além das fronteiras da disciplina, alcançando outras ciências sociais e, ainda (ou sobretudo), a própria história. Em vez de "rejeitar a história", como teria feito Waltz, pretendem "injetar história".
As três partes que se seguem no livro constituem justamente a aplicação desse novo conceito, buscando, assim, analisar o surgimento e desenvolvimento dos diferentes tipos de sistema internacional que existiram (e, freqüentemente, coexistiram) ao longo dos cinco mil anos de história mundial. Iniciando a narrativa com os pré-sistemas internacionais, passando pelos múltiplos sistemas internacionais dos mundos antigo e clássico até chegar no sistema internacional de escala global contemporâneo, Buzan e Little fazem especulações sobre as unidades dominantes, a capacidade de interação, o processo e a estrutura de cada um deles, em diferentes setores, considerando ainda distintos níveis de análise (especificamente, os do sistema, subsistema e unidade).
Na parte final, os autores voltam-se para o que chamam de "especulações, avaliações e reflexões", em que consideram as vantagens e possibilidades que o conceito de sistema internacional - formulado nessas novas bases - pode trazer tanto para as Relações Internacionais quanto para a história mundial. Sendo o conceito tão aberto à história, nada impede que este seja estendido também em direção ao futuro. Desse modo, Buzan e Little tentam desenhar o esboço de um provável "sistema internacional pós-moderno" - aceitando-se que o sistema internacional global contemporâneo esteja de fato sofrendo mudanças que o levariam a evoluir nesse sentido.
Alternando entre um tom futurista e a constatação de que previsões não são próprias das teorias das ciências sociais, a conclusão a que os autores parecem chegar não é de fato surpreendente. Segundo eles, ainda que possibilidades de transformação possam estar em curso, a médio (e talvez) longo prazo, não há nada de novo no sistema internacional westphaliano que conhecemos, além do fato de este se ter tornado global. O Estado ainda é a unidade dominante do sistema; a capacidade de interação, o processo e a estrutura chegaram ao seu limite de modificação e expansão, enfim, seja o que for que testemunhemos no futuro, será, em grande medida, algo bem parecido com o passado.
Se Buzan e Little efetivamente conseguiram refazer o estudo de Relações Internacionais é algo que se pode questionar. Por outro lado, talvez a contribuição mais importante do livro não tenha sido apresentar uma proposta de reformulação da disciplina, mas sim apontar suas deficiências, explorar suas contradições e expor suas falhas.
Notas
1. Buzan e Little (:386-406) apontam três pontos de mudança em que seria possível fazer uma divisão da história mundial: a formação dos pré-sistemas internacionais (entre 40 e 60 mil anos atrás), a formação dos primeiros sistemas internacionais (cerca de 3500 a.C.) e, por fim, as transformações que marcaram a formação do sistema internacional global moderno (por volta de 1500 d.C.). A idéia central é que não houve pontos de mudança radicais entre os diferentes sistemas, mas que estes coexistiram durante muito tempo, em diversos setores do contexto internacional, sendo progressivamente subsumidos uns pelos outros. O mais interessante dessa periodização é que ela parece contar, de fato, a história da contínua evolução e substituição das unidades dominantes desses múltiplos sistemas internacionais. Conforme tais unidades vão se tornando mais complexas e estáveis (vale dizer, à medida que o poder político e a hierarquia social vão se institucionalizando cada vez mais), convertendo-se também em unidades dominantes, as mudanças no sistema vão ocorrendo. Em outras palavras, são as mudanças que sucedem na estrutura interna das unidades dominantes (e não as que acontecem na estrutura do próprio sistema, como poderia prever a teoria sistêmica neo-realista) que, efetivamente, marcam os grandes pontos de mudança dos sistemas internacionais e, portanto, da história mundial.
2. Embora muitas críticas sejam dirigidas, de maneira geral, às chamadas teorias dominantes de Relações Internacionais, parece não haver muitas dúvidas de que o grande interlocutor de Buzan e Little é, de fato, o neo-realismo, referência constante no livro. Mesmo quando muitas vezes falam em "realismo", na verdade estão se referindo à sua versão "cientificista" e "sanitarizada", da qual Kenneth Waltz é o maior representante. Em grande medida, isso se justifica pelo fato de os autores estarem partindo das idéias neo-realistas para desenvolver seus próprios argumentos (:10), além de ser a obra de Waltz fundamental para quem pretende falar de sistemas dentro das Relações Internacionais. No entanto, o que pretendia ser uma reformulação, ampliação e convergência das diversas teorias sistêmicas da disciplina, acaba parecendo, ao final, um longo diálogo com o neo-realismo.
3. Vale notar aqui que, embora nesse momento inicial Buzan e Little separem o setor político do militar de forma bastante clara - e reafirmem, posteriormente, a diferença entre os dois -, ao longo do livro tal diferenciação parece diluir-se um pouco. Porque são "intimamente vinculados", ambos acabam sendo analisados como integrantes de um único setor, misturando, assim, relacionamentos baseados na coerção com aqueles fundados na autoridade, bem nos moldes neo-realistas.
4. Ainda que interessante, vale ressaltar, entretanto, que em muitos momentos a descrição dos processos e estruturas ambientais de diversos sistemas ao longo da história não é bastante clara, sendo questionável se os autores conseguem, de fato, fazer a análise a que se propõem (algo que, ao final, eles próprios acabam reconhecendo).
5. Embora seja possível afirmar que o nível individual é, de fato, fundamental para as ciências sociais, este não parece ser o caso em Relações Internacionais. Análises no plano individual podem ocorrer, mas tendem a ser mais exceção do que regra na disciplina.
6. É bastante curiosa por sinal essa leitura que Buzan e Little fazem do neo-realismo de Waltz e do construtivismo de Wendt. Grosso modo, este último corresponderia a uma abordagem sociológica dos sistemas internacionais, na qual elementos como interação, identidade, instituições, valores e normas comuns seriam realçados. O neo-realismo, por sua vez, teria uma perspectiva material (mecanicista), onde poder, anarquia, soberania, balança de poder e guerra seriam alguns dos elementos essenciais. Segundo eles, a posição teórica de Wendt caracterizaria as sociedades internacionais, enquanto a de Waltz os sistemas internacionais, tais como são entendidos pela Escola Inglesa (:39-45). Uma identificação desse tipo pode até ser verdadeira para o neo-realismo, mas revela-se falha no caso do construtivismo. Wendt, de fato, faz uma leitura "sociológica" das relações internacionais, mas tal afirmação não significa que as relações entre os Estados sempre serão caracterizadas como uma sociedade no sentido proposto pelos autores. A interação interestatal pode levar tanto à formação de uma sociedade baseada em regras, instituições e valores comuns, como também a um sistema internacional nos moldes neo-realistas. Tudo dependerá do modo como os Estados percebem a si mesmos e aos demais, e da maneira como estes constroem a anarquia. O fato de a própria estrutura do sistema internacional ser composta por normas não implica que este será uma sociedade, tudo depende do que tais normas informam. Talvez pelo fato de apenas um artigo de Wendt ter sido utilizado como fonte para suas idéias, ou talvez ainda por uma vontade de querer ver nestas uma relação de "inexorabilidade" com as idéias da Escola Inglesa (:43), a leitura que os autores fazem do construtivismo é bastante limitada. Buzan e Little dão grande relevância a elementos como a construção social, normas, intersubjetividade, mas a conclusão que parecem tirar daí é a de que a posição metodológica de Wendt caracterizaria melhor as sociedades internacionais. O que, talvez, tenha fugido à percepção deles, é que o construtivismo não elide a possibilidade de que um "sistema realista" exista. Sob um prisma construtivista, tal sistema também será social - porque socialmente construído, resultante da interação -, mas não necessariamente uma sociedade internacional nos moldes da Escola Inglesa.
Revista Contexto Internacional
Em que momento da história mundial surgiram os primeiros sistemas internacionais? De que modo eles se desenvolveram? Como o sistema internacional contemporâneo se tornou aquilo que é atualmente? Para que direção aponta seu futuro? À primeira vista, são perguntas dessa natureza que parecem ter instigado Barry Buzan e Richard Little, levando-os a escrever International Systems in World History. A leitura de suas primeiras páginas revela, no entanto, que não foram de fato as perguntas que os incentivaram a investigar o assunto, mas, em grande medida, a limitação e, não raro, a ausência de respostas que as teorias de Relações Internacionais poderiam oferecer a elas. Investigar as causas desse silêncio, e apresentar alternativas a ele, parece ter sido o ponto de partida para o livro.
O diagnóstico de Buzan e Little para o problema, além de bastante incisivo, ilustra com precisão o estado atual da disciplina. Perdida em meio a grandes debates, e com o foco de atenção voltado para questões atuais, nenhuma perspectiva teórica dentro das Relações Internacionais teria formulado um conceito de sistema internacional capaz de transcender as fronteiras de Westphalia.
Para a grande maioria delas, a referida história dos sistemas internacionais se resumiria àquela do sistema de Estados europeu e pouca coisa antes disso teria relevância para as pesquisas e análises produzidas na área. De fato, isto não está muito longe da verdade. Embora o interesse pela história não seja inédito na disciplina, a tendência é que esta seja usada anacronicamente para comprovar teorias e modelos do presente. Deve-se, sem dúvida, reconhecer que realistas clássicos, como Morgenthau, por exemplo, acrescentaram grande conteúdo histórico às suas análises; no entanto, isto parece ocorrer muito mais como uma tentativa de construir um passado clássico para o realismo do que como um desejo real de elaborar uma abordagem histórica abrangente da teoria.
Essa falta de perspectiva histórica (ou, ao menos, de uma perspectiva de mais longo termo), além de representar um entrave para o desenvolvimento dessas mesmas teorias, impede ainda que a área de Relações Internacionais consiga sair do gueto no qual se encontra confinada. Muito embora esta tenha, por natureza, tanto o potencial quanto a obrigação de exercer influência fora de suas fronteiras e, dessa forma, desempenhar o papel de macrodisciplina integradora das ciências sociais e da história, seu status atualmente ainda é o de uma disciplina periférica e atrasada em relação às demais (:33, 384 e 407). Os conceitos e abordagens que desenvolve - por estarem presos a uma experiência bastante particular, essencialmente moderna e européia - não teriam robustez e expressividade suficientes para suscitar o interesse de outras áreas, o que acaba aprofundando seu isolamento.
Para Buzan e Little, esta seria também a causa principal para o confinamento do conceito (e objeto) próprio das Relações Internacionais que é o "sistema internacional". Apesar de sua evidente qualidade de veículo capaz de estruturar uma perspectiva de história mundial, bem como de unidade para macroanálises nas ciências sociais, o sistema internacional continua sendo ignorado, normalmente preterido pelo conceito de sistema mundial, elaborado pelo sociólogo Immanuel Wallerstein (:5-9, 30-33).
A característica a-historicidade das teorias dominantes na disciplina - mais especificamente aquelas ligadas à tradição americana, como o neo-realismo - é que, em grande medida, teria levado à formulação de um conceito de sistema internacional restrito ao setor político-militar, dotado de unidades (em geral Estados) sem diferenciação funcional (i.e., unidades idênticas) e cuja estrutura é sempre anárquica. Com efeito, os autores parecem ter razão quando afirmam que, apesar de se pretender universal, esse conceito de sistema internacional, normalmente aceito na disciplina, não pode ser usado em análises que se estendam em um espectro de tempo e espaço mais amplo do que aquele compreendido na história pós-Westphalia.
Desse modo, torna-se mais fácil compreender as razões para o silêncio das diversas teorias da área quando são chamadas a identificar e analisar sistemas internacionais ao longo da história mundial. Na verdade, diante de sistemas que não se limitam ao setor político-militar, cujas unidades dominantes não são homogêneas (e tampouco se parecem com o Estado) e onde a estrutura não é anárquica, essas teorias não teriam sequer o instrumental teórico necessário para identificá-los como tais. No entanto, esta é, segundo Buzan e Little, justamente, a configuração de muitos dos sistemas internacionais que existiram ao longo da história.
A solução proposta para o impasse parece, de fato, bastante lógica: a união da história com a teoria. Dotadas de um conteúdo histórico mais abrangente, as teorias de Relações Internacionais poderiam rever e reformular suas premissas e, conseqüentemente, seu objeto, para tornar o sistema internacional finalmente apto a assumir o papel de unidade de análise transdisciplinar que lhe é devido. Por outro lado, esse novo conceito também teria condições de fornecer a estrutura teórica necessária para sistematizar o estudo da história mundial, viabilizando, assim, um novo modo de se fazer sua periodização. Tomando as idéias que dão título ao livro, olhar para o passado com um conceito de sistema que escapa ao modelo westphaliano permitiria não só oferecer uma alternativa ao modo como normalmente a história mundial é narrada, como também refazer o estudo desses sistemas dentro da própria disciplina.
O casamento entre as teorias de Relações Internacionais e a história mundial é, de fato, uma das idéias centrais de International Systems in World History. Não se trata, na verdade, de algo novo, mas reconhecidamente da continuação - ou releitura - de um trabalho já desenvolvido pela Escola Inglesa - na qual os autores fortemente se baseiam -, só que, desta vez, com a pretensão de conferir-lhe bases teóricas mais sólidas. Buzan e Little acreditam que tal união seja mutuamente benéfica, "um ato essencial", para o desenvolvimento da disciplina e suas teorias e, sem dúvida, uma maneira de estruturar o estudo da história mundial (:385, 408).
Ainda que sejam claros para a disciplina os ganhos dessa junção entre teoria e história, é mais difícil perceber até que ponto as Relações Internacionais poderiam realmente favorecer a história mundial. A proposta de uma periodização tripartite da história, tendo como base a formação e o desenvolvimento - no tempo e no espaço - de diferentes tipos de sistemas internacionais, pode ser (e, muitas vezes, de fato é) bastante interessante1. No entanto, de certo modo ela parece representar muito mais um ganho para a própria disciplina (já que esta teria a possibilidade, até então inédita, de fazer um recorte próprio da história) do que um efetivo avanço para a história mundial.
Para as Relações Internacionais, as vantagens dessa conexão são, com efeito, manifestas. Ao contrário do que pensam Buzan e Little, no entanto, talvez a maior delas não seja a possibilidade de desenvolvimento e a afirmação da disciplina, mas sim o fato de a história tornar evidentes todas as falhas e insuficiências das teorias dominantes na área e, mais precisamente, as do neo-realismo2. Quando analisados sob uma perspectiva histórica, os sistemas internacionais podem assumir configurações bem diferentes daquelas ditadas pelas premissas neo-realistas, e é essa nova maneira de olhar que representa a grande possibilidade que a história pode trazer à teoria.
A presunção neo-realista de que as unidades do sistema são sempre iguais em sua totalidade, pode não se verificar. Em muitos momentos, tais unidades podem possuir diferenças não somente estruturais, mas também funcionais, a despeito da existência de forças de socialização e competição que tenderiam a homogeneizá-las. Este foi o caso das eras antiga e clássica quando cidades-estado, impérios, tribos e impérios nômades coexistiram durante muito tempo como unidades principais em um mesmo sistema internacional. Outra premissa neo-realista, de que a anarquia é uma característica constante do sistema, aliás, também cai por terra quando se analisa esse mesmo período. Em muitas instâncias, anarquia e hierarquia podem alternar-se em "fases" sem que, por isso, o sistema internacional deixe de existir. A idéia de que são modificações no plano da estrutura que levam a mudanças no sistema também pode ser questionada. De uma perspectiva histórica, as características das unidades e o modo como se estruturam internamente é que seriam as chaves para se entender o caráter e as transformações que podem ocorrer no sistema (ver nota 1).
Historicamente, torna-se mais interessante pensar não somente nos tipos de unidade dominantes, mas também nos diferentes tipos de interação (processo) e estrutura que podem ser construídos entre essas unidades. A diferenciação setorial - introduzida pelos autores no que chamam de seu "kit de ferramentas teóricas" - é essencial para perceber que, na verdade, em vez de um, vários sistemas internacionais podem coexistir em um mesmo momento da história mundial, ampliando dessa forma suas possibilidades de análise.
Em cada setor - seja ele político-militar3, econômico, sociocultural ou ambiental4 - haverá um tipo de processo e estrutura distinto, que freqüentemente se relacionam, mas cujo desenvolvimento não se dá ao mesmo tempo nem com a mesma intensidade. Dessa forma, para definir o caráter e a escala do sistema internacional, o setor econômico tende a tornar-se mais importante do que o político-militar, por exemplo. Esta seria uma tendência visível no sistema internacional global contemporâneo, em que os processos do setor econômico, por terem assumido maior abrangência e intensidade do que os de qualquer outro, acabam tornando mais fácil falar em "economia global" do que em governo ou sociedade global.
Essa diferenciação dos sistemas internacionais por setores, vale ressaltar, é o instrumento que permite que Buzan e Little resgatem as idéias da Escola Inglesa de distinção entre sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial, segundo três diferentes tradições (hobbesiana, lockiana e kantiana). Nessa releitura, os sistemas internacionais equivaleriam aos sistemas internacionais observados no setor político-militar (mais próximo também do sistema neo-realista); as sociedades internacionais, no setor sociocultural, e as sociedades mundiais poderiam ser entendidas como sistemas analisados no plano do indivíduo. A diferenciação dos níveis de análise é, aliás, outra ferramenta analítica introduzida pelos autores. Segundo eles, além do nível individual5, haveria outros quatro usados com freqüência em Relações Internacionais: os níveis do sistema, do subsistema, da unidade e da subunidade.
O último instrumento do referido "kit" consiste na separação das diversas "variáveis que explicam o comportamento", ou melhor, das fontes de explicação que podem ser encontradas em todos os sistemas, seja qual for o setor e o nível de análise. Tais fontes seriam três: a capacidade de interação (que corresponderia à quantidade de interação possível, tendo em vista as tecnologias físicas e sociais disponíveis em certo tempo e lugar), o processo (os padrões de ação e interação existentes, ou ainda, a interação que efetivamente ocorre) e, por fim, a estrutura, para a qual usa a definição clássica de Waltz (os princípios que definem como as unidades serão arranjadas dentro de um sistema, qual a diferenciação entre elas e também seu relacionamento, tendo por base suas capacidades relativas).
O que Buzan e Little propõem é que, com base nessas diferentes ferramentas teóricas, os sistemas internacionais possam ser observados em seus diferentes setores, cada um deles podendo ser analisado em níveis distintos, aos quais são conferidas fontes de explicação próprias. Com essa abordagem em mente, identificam três tipos básicos de sistema: os sistemas internacionais completos (abrangendo todos os setores), os econômicos (no qual tem maior relevo o setor econômico, sem, contudo, excluir o político-militar) e os pré-sistemas internacionais (com maior ênfase no setor sociocultural). Tal diferenciação não significa, contudo, uma separação ou corte radical. Porque fazem parte de uma mesma realidade, tais sistemas podem coexistir - e isto é o que com freqüência ocorre.
A maior parte dos argumentos apresentados até aqui - argumentos, aliás, sobre os quais o livro se baseia - são introduzidos já na primeira parte de International Systems in World History. A premissa central é que o conceito de sistema internacional, tal como formulado dentro da disciplina, não só impede que as teorias de Relações Internacionais possam descrever e analisar o modo como diversos sistemas internacionais surgiram e se desenvolveram ao longo da história mundial, como também impossibilita que o mesmo assuma seu papel de unidade de análise comum a todas as ciências sociais e à história mundial.
O "presentismo" (foco nas questões de história e política contemporânea), o "a-historicismo" (busca de leis e padrões imunes às variações históricas), o "eurocentrismo" (percepção da história mundial como uma extensão da experiência histórica européia), a "anarcofilia" (fixação em questões como anarquia e soberania) e o "estadocentrismo" (Estado encarado como unidade dominante, o que acaba vinculando o sistema internacional ao setor político-militar), arraigados nas teorias dominantes da disciplina, explicariam por que o conceito de sistema internacional não consegue libertar-se do modelo westphaliano e abranger diferentes experiências ao longo da história mundial (:17-22).
Para transcender tais fraquezas e, ainda, para dar conta da complexidade do tema, faz-se necessária a adoção de um pluralismo, tanto teórico quanto metodológico. Somente por meio de uma abordagem desse tipo seria possível formular um conceito capaz de abranger tanto a dimensão social quanto material dos sistemas internacionais, possibilitando, dessa forma, a conciliação de elementos de diferentes abordagens teóricas (no caso, o neo-realismo de Waltz, o construtivismo de Alexander Wendt6 e a Escola Inglesa) com elementos da história mundial.
Quando analisado com maior cuidado, contudo, o referido pluralismo guarda mais semelhança com a abordagem que a Escola Inglesa faz dos sistemas internacionais (segundo os autores, a única capaz de superar todas aquelas fraquezas já apontadas) do que como uma tentativa real de congregar elementos de diferentes teorias. Não se está querendo negar aqui que os postulados da teoria sistêmica de Waltz são, de fato, os fundamentos sobre os quais essa nova percepção dos sistemas internacionais será construída, ou ainda, que alguns elementos do construtivismo estejam presentes (ver nota 6). No entanto, são as idéias da Escola Inglesa que, como já foi dito, informam tal construção. Buzan e Little, por certo, reconhecem suas limitações (uma delas, seria o fato de a Escola Inglesa também não conseguir oferecer um conceito suficientemente abrangente para os propósitos do livro), mas a intenção dos autores é justamente superá-las, indo buscar na história mundial os instrumentos necessários para tanto.
Esse pluralismo metodológico, aliado às ferramentas de análise anteriormente mencionadas, são os elementos que, em grande medida, garantem a originalidade da proposta dos autores. Tendo em mãos esses instrumentos, Buzan e Little procuram estabelecer os critérios apropriados para a formulação de um conceito transhistórico de sistema internacional, capaz de expandir-se para muito antes dos quinhentos anos de Westphalia. O tipo e a quantidade de interação, o padrão, a escala, o tipo de unidade dominante, a relação existente entre elas, bem como a estrutura são os elementos necessários para que um sistema internacional possa ser identificado (:90-108). A intenção aqui faz lembrar o intuito de Waltz de construir uma teoria sistêmica parcimoniosa e elegante, capaz de explicar um grande número de eventos com o menor número de variáveis possível, resistindo ainda às variações e particularismos da história. Ao contrário de Waltz, entretanto, Buzan e Little pretendem levar as possibilidades de análise do conceito para além das fronteiras da disciplina, alcançando outras ciências sociais e, ainda (ou sobretudo), a própria história. Em vez de "rejeitar a história", como teria feito Waltz, pretendem "injetar história".
As três partes que se seguem no livro constituem justamente a aplicação desse novo conceito, buscando, assim, analisar o surgimento e desenvolvimento dos diferentes tipos de sistema internacional que existiram (e, freqüentemente, coexistiram) ao longo dos cinco mil anos de história mundial. Iniciando a narrativa com os pré-sistemas internacionais, passando pelos múltiplos sistemas internacionais dos mundos antigo e clássico até chegar no sistema internacional de escala global contemporâneo, Buzan e Little fazem especulações sobre as unidades dominantes, a capacidade de interação, o processo e a estrutura de cada um deles, em diferentes setores, considerando ainda distintos níveis de análise (especificamente, os do sistema, subsistema e unidade).
Na parte final, os autores voltam-se para o que chamam de "especulações, avaliações e reflexões", em que consideram as vantagens e possibilidades que o conceito de sistema internacional - formulado nessas novas bases - pode trazer tanto para as Relações Internacionais quanto para a história mundial. Sendo o conceito tão aberto à história, nada impede que este seja estendido também em direção ao futuro. Desse modo, Buzan e Little tentam desenhar o esboço de um provável "sistema internacional pós-moderno" - aceitando-se que o sistema internacional global contemporâneo esteja de fato sofrendo mudanças que o levariam a evoluir nesse sentido.
Alternando entre um tom futurista e a constatação de que previsões não são próprias das teorias das ciências sociais, a conclusão a que os autores parecem chegar não é de fato surpreendente. Segundo eles, ainda que possibilidades de transformação possam estar em curso, a médio (e talvez) longo prazo, não há nada de novo no sistema internacional westphaliano que conhecemos, além do fato de este se ter tornado global. O Estado ainda é a unidade dominante do sistema; a capacidade de interação, o processo e a estrutura chegaram ao seu limite de modificação e expansão, enfim, seja o que for que testemunhemos no futuro, será, em grande medida, algo bem parecido com o passado.
Se Buzan e Little efetivamente conseguiram refazer o estudo de Relações Internacionais é algo que se pode questionar. Por outro lado, talvez a contribuição mais importante do livro não tenha sido apresentar uma proposta de reformulação da disciplina, mas sim apontar suas deficiências, explorar suas contradições e expor suas falhas.
Notas
1. Buzan e Little (:386-406) apontam três pontos de mudança em que seria possível fazer uma divisão da história mundial: a formação dos pré-sistemas internacionais (entre 40 e 60 mil anos atrás), a formação dos primeiros sistemas internacionais (cerca de 3500 a.C.) e, por fim, as transformações que marcaram a formação do sistema internacional global moderno (por volta de 1500 d.C.). A idéia central é que não houve pontos de mudança radicais entre os diferentes sistemas, mas que estes coexistiram durante muito tempo, em diversos setores do contexto internacional, sendo progressivamente subsumidos uns pelos outros. O mais interessante dessa periodização é que ela parece contar, de fato, a história da contínua evolução e substituição das unidades dominantes desses múltiplos sistemas internacionais. Conforme tais unidades vão se tornando mais complexas e estáveis (vale dizer, à medida que o poder político e a hierarquia social vão se institucionalizando cada vez mais), convertendo-se também em unidades dominantes, as mudanças no sistema vão ocorrendo. Em outras palavras, são as mudanças que sucedem na estrutura interna das unidades dominantes (e não as que acontecem na estrutura do próprio sistema, como poderia prever a teoria sistêmica neo-realista) que, efetivamente, marcam os grandes pontos de mudança dos sistemas internacionais e, portanto, da história mundial.
2. Embora muitas críticas sejam dirigidas, de maneira geral, às chamadas teorias dominantes de Relações Internacionais, parece não haver muitas dúvidas de que o grande interlocutor de Buzan e Little é, de fato, o neo-realismo, referência constante no livro. Mesmo quando muitas vezes falam em "realismo", na verdade estão se referindo à sua versão "cientificista" e "sanitarizada", da qual Kenneth Waltz é o maior representante. Em grande medida, isso se justifica pelo fato de os autores estarem partindo das idéias neo-realistas para desenvolver seus próprios argumentos (:10), além de ser a obra de Waltz fundamental para quem pretende falar de sistemas dentro das Relações Internacionais. No entanto, o que pretendia ser uma reformulação, ampliação e convergência das diversas teorias sistêmicas da disciplina, acaba parecendo, ao final, um longo diálogo com o neo-realismo.
3. Vale notar aqui que, embora nesse momento inicial Buzan e Little separem o setor político do militar de forma bastante clara - e reafirmem, posteriormente, a diferença entre os dois -, ao longo do livro tal diferenciação parece diluir-se um pouco. Porque são "intimamente vinculados", ambos acabam sendo analisados como integrantes de um único setor, misturando, assim, relacionamentos baseados na coerção com aqueles fundados na autoridade, bem nos moldes neo-realistas.
4. Ainda que interessante, vale ressaltar, entretanto, que em muitos momentos a descrição dos processos e estruturas ambientais de diversos sistemas ao longo da história não é bastante clara, sendo questionável se os autores conseguem, de fato, fazer a análise a que se propõem (algo que, ao final, eles próprios acabam reconhecendo).
5. Embora seja possível afirmar que o nível individual é, de fato, fundamental para as ciências sociais, este não parece ser o caso em Relações Internacionais. Análises no plano individual podem ocorrer, mas tendem a ser mais exceção do que regra na disciplina.
6. É bastante curiosa por sinal essa leitura que Buzan e Little fazem do neo-realismo de Waltz e do construtivismo de Wendt. Grosso modo, este último corresponderia a uma abordagem sociológica dos sistemas internacionais, na qual elementos como interação, identidade, instituições, valores e normas comuns seriam realçados. O neo-realismo, por sua vez, teria uma perspectiva material (mecanicista), onde poder, anarquia, soberania, balança de poder e guerra seriam alguns dos elementos essenciais. Segundo eles, a posição teórica de Wendt caracterizaria as sociedades internacionais, enquanto a de Waltz os sistemas internacionais, tais como são entendidos pela Escola Inglesa (:39-45). Uma identificação desse tipo pode até ser verdadeira para o neo-realismo, mas revela-se falha no caso do construtivismo. Wendt, de fato, faz uma leitura "sociológica" das relações internacionais, mas tal afirmação não significa que as relações entre os Estados sempre serão caracterizadas como uma sociedade no sentido proposto pelos autores. A interação interestatal pode levar tanto à formação de uma sociedade baseada em regras, instituições e valores comuns, como também a um sistema internacional nos moldes neo-realistas. Tudo dependerá do modo como os Estados percebem a si mesmos e aos demais, e da maneira como estes constroem a anarquia. O fato de a própria estrutura do sistema internacional ser composta por normas não implica que este será uma sociedade, tudo depende do que tais normas informam. Talvez pelo fato de apenas um artigo de Wendt ter sido utilizado como fonte para suas idéias, ou talvez ainda por uma vontade de querer ver nestas uma relação de "inexorabilidade" com as idéias da Escola Inglesa (:43), a leitura que os autores fazem do construtivismo é bastante limitada. Buzan e Little dão grande relevância a elementos como a construção social, normas, intersubjetividade, mas a conclusão que parecem tirar daí é a de que a posição metodológica de Wendt caracterizaria melhor as sociedades internacionais. O que, talvez, tenha fugido à percepção deles, é que o construtivismo não elide a possibilidade de que um "sistema realista" exista. Sob um prisma construtivista, tal sistema também será social - porque socialmente construído, resultante da interação -, mas não necessariamente uma sociedade internacional nos moldes da Escola Inglesa.
Revista Contexto Internacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário