quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Desnutrição e obesidade: faces contraditórias na miséria e na abundância


Dixis Figueroa Pedraza

Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Ciências da Saúde. Departamento de Nutrição. Cidade Universitária, Recife, PE, Brasil CEP: 40.670-901


Desnutrição e obesidade: faces contraditórias na miséria e na abundância. Sueli R. Tonial. Recife: IMIP; 2001. 189p. (Série: Publicações Científicas do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP, n.2).

Direto, objetivo, sintético, cuidadoso, ameno, agradável, interessante, científico, útil, entre outros, são os termos que se pode usar, com toda propriedade, para adjetivar o trabalho da professora Sueli R. Tonial, editado na Série de Publicações Científicas do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP. A autora é uma nutricionista paranaense, hoje professora pesquisadora do Departamento de Nutrição da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). O livro oferece ao leitor frutíferas e atualizadas informações e levanta questões de indiscutível importância na ciência da nutrição. É o resultado de um árduo trabalho junto à professora Maria Cecília de Souza Minayo da Fundação Oswaldo Cruz, responsável pelo excelente e contagiante prefácio do livro, não permitindo ao leitor outra coisa senão esperar uma grande leitura.

O sentido do trabalho de Tonial foi penetrar nas dimensões simbólicas e culturais envolvidas nas questões alimentares que se refletem no estado nutricional. Foi um grande desafio profissional para a autora, pois no campo da nutrição são poucos os trabalhos nesta acepção, o que faz com que os profissionais da área quase sempre trabalhem de forma apenas técnica com os distúrbios, sem atentar para o fato de que tais problemas têm causas que ultrapassam a mera ingestão alimentar. Assim, a autora pretendeu servir aos que, como ela, procuram contribuir para mudanças necessárias no campo da nutrição no país.

Acreditamos que, se na hora de enfrentar os problemas nutricionais de diferentes populações, os estudos abrangessem a complexidade de fatores que neles atuam, incluindo a questão antropológica, com certeza nos dias de hoje mais da metade da população mundial não estaria sofrendo de mal-nutrição, seja por excesso ou por déficit. Este é o grande desafio do presente para os profissionais da nutrição e para aqueles que o serão. Eis a importância principal deste trabalho, eis a questão a enfrentar pelos nutricionistas que pretendam avançar e ser bem sucedidos em uma ciência que precisa de uma abordagem multidisciplinar.

O livro que Tonial nos apresenta é fruto da sua tese de doutorado, na Escola Nacional de Saúde Pública (instituição que consolidou o mais consistente grupo de antropologia da saúde da América do Sul), tendo como objetivos: 1) analisar aspectos quantitativos sobre indicadores antropométricos de diagnóstico da situação nutricional em mulheres/mães no município de São Luís e sua relação com a escolaridade e a renda familiar e 2) analisar aspectos qualitativos quanto às percepções da desnutrição, da obesidade e da alimentação. Assim, a autora, tenta produzir um saber que possa servir de instrumento aos profissionais de saúde e planejadores das ações e políticas públicas relacionadas às questões alimentares.

O trabalho baseou-se em dois pressupostos: 1) o entrelaçamento das questões nutricionais com as raízes sócio-históricas, socioeconômicas e culturais, envolvendo o acesso aos serviços de saúde e escolaridade; 2) as representações da obesidade e desnutrição formuladas por mulheres adultas, refletindo representações sociais do corpo.

O livro, com uma extensa e atualizada bibliografia, consta de uma introdução, cinco capítulos e considerações finais; é muito bem concebido e seqüenciado de forma lógica e amena que nos encaminha por uma ótima leitura. A introdução nos remete à justificativa e metodologia do estudo (anteriormente referidas). O capítulo I apresenta as suas bases históricas e metodológicas. O segundo capítulo descreve as condições históricas de consolidação das questões relativas às condições de vida dos maranhenses, buscando evidenciar, especialmente, aquelas relativas aos alimentos, à alimentação e ao corpo. O capítulo III trata, brevemente, da caracterização socioeconômica da população do Maranhão, analisando e discutindo os dados quantitativos de renda e escolaridade, com os índices de desnutrição e obesidade encontrados, e apresenta as condições de vida das mulheres entrevistadas a partir da pesquisa qualitativa. Já no Capítulo IV, a autora refere-se às tradições e hábitos alimentares dos maranhenses e, também, aos valores, conhecimentos e atitudes alimentares das mulheres entrevistadas frente às suas condições biológicas (de obesidade ou desnutrição) e sociais (de escolaridade, renda familiar, migração e acesso aos alimentos). No capítulo V são discutidas as representações do corpo obeso e as representações do corpo das mulheres desnutridas, e de como elas se percebem em seu ambiente. Nas considerações finais, a autora resgata os objetivos do estudo a partir dos pressupostos que, ao longo do trabalho, buscou ampliar, aprofundar.

As bases teóricas e metodológicas do estudo deixam claro que na hora de entender a problemática alimentar e nutricional deve-se ter presente os aspectos econômicos, sociais, históricos, culturais, políticos e as especificidades internas do grupo social. Também manifestam como o corpo representa uma categoria responsável pelo acesso ao mundo, no qual está presente o componente existencial, o modo de ser e de se manifestar ligado ao ser humano enquanto consciente de seu corpo.

O contexto histórico e econômico coloca a população maranhense adentrando-se no século XXI sob um "modelo" de "desenvolvimento econômico" altamente concentrador de riquezas para uma minoria, com políticas que, historicamente, expropriaram possibilidades que pudessem garantir a constituição de condições dignas de sobrevivência, incluídas aí as formas de subsistência, de valorização dos modos de vida e das questões culturais que se configuram nas representações sociais do corpo e dos alimentos.

A pesquisa ressalta que convivem num mesmo cenário mulheres com baixo peso e mulheres com excesso de peso, bem como um certo descompasso na transição de perfil nutricional (que vem acontecendo no Brasil e países da Latino América) das mulheres do estudo em relação aos índices nacionais, o que indica um rápido movimento de descenso da desnutrição e aumento da obesidade. Tal fato, segundo a autora, pode ser justificado pelas diferenças sociais e econômicas do Estado que, em comparação aos dados nacionais, tem sido indicado como o detentor da mais baixa renda média mensal do país, com uma imensa e persistente desigualdade na distribuição de riquezas. Comenta vários estudos que destacam o Maranhão como o estado com a pior situação nutricional do Brasil, o que reflete precárias condições de vida, e especialmente, situações de fome, manifestadas no consumo de chibé (mistura de sal, água e farinha) ou de larvas de besouros que se criam dentro dos cocos maduros ou velhos, assadas ou fritas, ou de mucura (espécie de roedor parecido com um rato grande).

A pesquisa, na sua parte qualitativa, confirmou a grande desigualdade de renda, de condições de vida e de moradia, entre as mulheres que tinham segundo grau completo ou escolaridade superior, daquelas que não possuíam escolaridade ou tinham escolaridade até o primeiro grau maior. Diante dessa situação, quando possível, uma rede de cooperação entre vizinhos e familiares parecia funcionar para garantir os alimentos mínimos. A maior parte das famílias estudadas estava totalmente fora do âmbito das políticas públicas de geração de emprego e renda, ou de programas compensatórios, como o de distribuição de cestas alimentares, que podem, pelo menos em parte, amenizar a situação de miséria absoluta.

Assim, a autora expõe as faces da desigualdade social, indica que se conviverá ainda algum tempo com a calamidade da desnutrição em adultos pela falta de alimentos para repor os gastos energéticos diários. Mas, também, com a situação não menos calamitosa dos obesos que não possuem qualquer condição de se alimentarem adequadamente. Para essa parcela da população existe, como Tonial metaforicamente fala, apenas uma moeda: pouca ou nenhuma opção alimentar que lhes permita uma nutrição adequada. Tais fatos se materializam num corpo frágil e desvalorizado: desnutrido ou obeso.

Por outro lado, há uma parcela muito pequena da população que, pelas condições socioeconômicas, convive com padrões nutricionais do chamado primeiro mundo. Entre esses, desenvolvem-se problemas crescentes de obesidade e de desnutrição em pequena escala, especialmente, entre as mulheres jovens. Para essa população, certamente, a questão maior não é a disponibilidade de comida, mas a existência de padrões alimentares influenciados por representações sociais dos alimentos e do corpo, que levam a alterações comportamentais nos modos de vida e, também, a problemas metabólicos.

"Muitas variedades, poucas moedas", é a frase que a autora utiliza para descrever os hábitos alimentares dos maranhenses e os valores, conhecimentos e atitudes alimentares das mulheres entrevistadas frente às condições biológicas e sociais.

A frase visa transmitir as diferenças entre os pobres e os da melhor camada social. Para os pobres, as variedades alimentares existem, inclusive no sentido de valorização de muitos itens - através do conhecimento fornecido pelo discurso oficial ou do status que tais alimentos podem lhes conferir - mas, diante da impossibilidade de acesso, eles figuram apenas como uma idéia de consumo. A camada social mais alta acaba pressionada para o consumo das novidades disponíveis no mercado, sendo conduzida a escolhas de um padrão alimentar excessivamente restrito ou recheado de calorias. Essa opção se entrelaça com os padrões de corpo, vinculados à estética e ao consumo.

Deste modo, as "moedas" são as impostas pelo mercado e pelas formas contemporâneas de vida. Quem as possui é uma pequena parcela da população, que tem poder de compra e incorpora a necessidade de consumir. Outra parte, muito maior, restringe cada vez mais as suas possibilidades de sobrevivência, sonhando com um ideal a ser buscado, incluindo aí o ideal de saúde, de nutrição, de corpo "necessário" para o trabalho.

Assim, além das questões culturais e econômicas que desempenham importante papel na configuração das práticas alimentares propriamente ditas, as representações do corpo também condicionam suas escolhas.

O estudo identifica que ao longo da história da consolidação da população maranhense houve, para a maior parte da população, diminuição de possibilidades alimentares. Tanto a desnutrição como a obesidade, encontram, socialmente, justificativas e símbolos positivos que amenizam ou respaldam, pelo menos em parte, a condição corporal. Os corpos representam espelhos da desigualdade.

Acredito que a autora conseguiu resgatar as dimensões simbólicas e culturais das questões alimentares que se refletem no estado nutricional, e triunfou neste desafio. Qualquer profissional da área que leia este livro compreenderá, refletirá e ficará alerta a tal desafio na hora de enfrentar o estudo dos problemas nutricionais: mudar o sentido eminentemente biologicista, enfrentando o entorno abrangente (sócio-histórico-econômico-cultural-político-específico) que nos coloca o campo da nutrição.
Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil

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