Edição francesa do clássico Mitologias, de Roland Barthes, recupera imagens analisadas por ele nos anos 50 ao investigar os mecanismos de influência da sociedade de consumo no dia a dia das pessoas
Leda Tenório da Motta
Trinta anos depois de seu desaparecimento, Roland Barthes parece afirmar-se como o mais influente dos intelectuais ligados ao linguistic turn francês que chamamos "estruturalismo". É o que nos convida a pensar, primeiro, o jorro incessante de suas obras póstumas, que não acabam nunca de ser editadas, o que não é dado, por exemplo, aos legados de Michel Foucault e Jacques Lacan, por mais que possam ser expressivos. Segundo, o fato de que, entre seus contemporâneos de maior prestígio, ele é hoje o que mais se resenha, traduz, revê, interpreta, como atesta uma fortuna crítica que, de tão gigantesca, já começa a ser inadministrável, até mesmo para o pesquisador interessado num estado da arte barthesiana. Terceiro e mais importante, a coesão interna de seus escritos, tal como nos é retrospectivamente revelada. Ligada ao círculo virtuoso do desarme dos mitos, é principalmente esta última hipótese que vem derrubando a ideia do pensador errático, cujo único trunfo seria o estilo suntuoso.
Muitos tem ressaltado, além disso, a generosidade com que o mais refinado dos literatos voltou suas armas para a sociedade de consumo - inclusive para as imagens, objeto sempre desconfortável para letrados -, e notado como esse inesperado foco de interesse terminou por nos render um instigante pensador do mundo contemporâneo. E ainda, a extrema coerência com que o semiólogo versou sobre "a morte do autor", sem extrapolar as fronteiras da realidade simbólica em que escolheu se fixar, quando outros da mesma escola falavam da "morte do homem", e se envolviam em ambiciosos projetos anti-humanistas. Organizador dos atuais cinco tomos das obras completas de Barthes e certamente o maior conhecedor do colossal conjunto formado por elas, Éric Marty anotou aí, numa de suas apresentações, que ele foi um dos raros estruturalistas rigorosos, tendo escapado à tentação de fazer do estruturalismo uma anti-filosofia.
Em meio a essa recepção tardia febricitante, mal nos havíamos dado conta dos Carnês da viagem à China (elaborados quando da visita de um Barthes mais para ceticista ao país de Mao Tsé-tung, e só agora publicados) e de um derradeiro relato íntimo, o Diário do Luto (com notas inéditas de Barthes em torno da morte da mãe), e já somos surpreendidos por mais um acontecimento importante: acaba de sair a versão ilustrada de Mitologias. Estamos falando de um título da primeiríssima safra e do mais conhecido, do mais cultuado dos livros de Barthes. Daquele que pega bem citar mesmo quando não se leu. Sobre ele Philippe Sollers disse recentemente, num dossiê da revista Magazine Littéraire, que é "sublime, insólito, corrosivo". Outros lhe apontam o caráter fulgurante. Outros ainda, o castigat mores, o quadro da vida francesa cotidiana que descreve, do ângulo da falsa consciência da pequena-burguesia, aí flagrada através das mídias em que se dá em representação, verbal como visual. Trata-se de uma expertise imperdível. Neste sentido, meio século depois, os loucos por Barthes podem agora contemplar o universo visual do autor, a face visível de tudo aquilo que, nos alvores dos anos 1950, estava sendo alvejado.
Realizado por Jacqueline Guittard, outra grande especialista a trabalhar na França, o trabalho entremeia o texto integral de Mitologias com 120 ilustrações. Elas são diferentemente autênticas. Algumas remetem-nos à iconografia mesma com que Barthes trabalhou: tal publicidade do sabão em pó Persil, que diz que ele lava em profundidade, como se os tecidos fossem profundos; tal fotografia de tal celebridade na revista Paris Match, que diz que aquela pessoa é igual a todos nós, para melhor mantê-la em sua posição de intocável; tal coluna do jornal Le Figaro a propósito da presença francesa na África, que diz que a Argélia "é" francesa, essencializando a História... Mas, dada, por vezes, a impossibilidade de se chegar à imagem exata, outras restituem a imagem possível, aquela que Barthes bem pode ter tido sob sua mira ao escrever. O método é tão mais feliz quanto se sabe que o próprio Barthes - fazendo como Proust, cujas personagens condensam muitas chaves biográficas ao mesmo tempo - não partiu de uma única impressão, mas lançou sobre essa França da era da Guerra Fria o instrumento mais perscrutador de sua atenção flutuante. Assim, mais que um levantamento fotográfico, o que temos é algo sutil: o ar do tempo dos anos 1950.
O marxismo, como se sabe, foi uma paixão intelectual do século 20, e Barthes a representa plenamente, nesse momento, imediatamente posterior a O Grau Zero da Escritura, em que já trabalha sob a divisa do engajamento sartriano, tanto assim que este seu primeiro livro gira em torno do que chama "a moral da forma". É a esse parti pris de esquerda que alude Julia Kristeva, em depoimento ao jornal Le Monde, em outubro passado, ao observar que o papel de cada mitológica barthesiana é mostrar a ideologia que se dissimula sob o discurso supostamente inocente. Na mesma direção vão todos aqueles que assinalam que Mitologias explode, como nunca antes, os estereótipos sobre os quais se assenta a opinião pública, que Barthes renomeou "a Doxa".
Mas vale notar também quanto Marx já se vê aqui atravessado por Saussure, pois é nesse cruzamento que está toda a diferença. De fato, uma coisa é denunciar o valor ideológico da cultura de massa, outra é ir, caprichosamente, ao trabalho dos signos, inclusive ao falatório das legendas das imagens, supondo, com Saussure, que a língua tem profundidade, e trabalhando na faixa de ressonância das palavras, na bolha retórica das conotações, na jactância dos discursos. Como nos diz o próprio Barthes, neste trecho célebre do prólogo de Mitologias, que, aliás, ajuda a entender a nouvelle critique: "Eu acabava de ler Saussure e tinha a convicção de que, tratando as representações coletivas como sistemas de signos, podia esperar escapar da denúncia piedosa e dar conta, no detalhe, da mistificação que transforma a cultura pequeno-burguesa numa natureza universal". A crítica piedosa procede à da exumação do sentido, a crítica fina, à tentativa de demonstração das operações de construção do sentido opressivo. Bom motivo para saudarmos a reedição de Mitologias.
LEDA TENÓRIO DA MOTTA, PROFESSORA DA PUC-SP, É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE PROUST - A VIOLÊNCIA SUTIL DO RISO (PERSPECTIVA)
Jornal O Estado de S.Paulo
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