Passado de amantes e bastardos
Os hábitos conjugais da alta nobreza de Portugal na Idade Média passavam longe do moralismo cristão vigente. Um livro expõe a profusão de filhos ilegítimos, laços consanguíneos e matrimônios políticos nas árvores genealógicas da época.
Por: Júlia Dias Carneiro
Publicado em 01/06/2010 | Atualizado em 02/06/2010
Detalhe da capa do livro mostra o casamento de D. João I com D. Filipa de Lancaster. Iluminura da 'Chronique de France e d'Angleterre', de Jean Wavrin, século 15, Museu Britânico, Londres (imagem: reprodução).
No imaginário popular, costuma-se associar a nobreza a alguma linhagem de ‘sangue azul’. Depois de ler Amantes e bastardos: As relações conjugais e extraconjugais na alta nobreza portuguesa no final do século 14 e início do século 15, de Sérgio Alberto Feldman, vê-se o quão híbrido pode ser o sangue dos nobres. Pelo menos no momento histórico analisado no livro: o período tardio da Idade Média.
O cristianismo ditava as regras para os laços conjugais. Para a igreja medieval, o prazer carnal era pecado, a castidade era valorizada como um caminho para a elevação espiritual e o matrimônio era o ‘mal menor’ em que, fosse o espírito fraco demais para resistir ao celibato, as relações sexuais eram permitidas com fins à procriação.
A partir do Concílio de Latrão, de 1215, “as relações extraconjugais, a poligamia e o divórcio serão definitivamente proibidos, mantendo-se o eixo que começou com Jesus e (o discípulo) Paulo”, relata Feldman.
O historiador parte da descrição dos valores em que se baseava a sociedade feudal, “com uma rígida concepção de casamento monogâmico e indissolúvel, e sua firme condenação do adultério”, para mergulhar nas contradições da vida como ela de fato era: “com a existência de um sem número de filhos ilegítimos no seio da nobreza e da casa real”.
No princípio, o adultério
Feldman começa por citar dois exemplos emblemáticos: tanto a casa de Avis (uma das dinastias vigentes no período estudado pelo livro) quanto a de Bragança, posterior, são originadas por filhos ilegítimos de reis portugueses.
O adultério, claro, era fortemente condenado – desde que fosse cometido pela mulher. A traição por parte do homem não parecia se enquadrar como tal, e poucos eram os reis que não tinham amantes ou barregãs (concubinas). Os filhos bastardos, por mais que em teoria fossem condenáveis, podiam ser aceitos por méritos diversos – como atos heroicos nos campos de batalha.
O casamento era uma aliança política, forjada de acordo com interesses estratégicos do reino, fosse para selar acordos de paz ou agregar terras. Enquanto isso, as relações extraconjugais eram o refúgio para o prazer.
“O verdadeiro amor ocorria fora do casamento e os filhos naturais eram às vezes mais amados pelos seus pais, pois eram o fruto de relações espontâneas e de fundo afetivo e não de meros casamentos cuja motivação era dinástica”, escreve Feldman.
O escritor percorre as relações das dinastias de Borgonha e de Avis. Acompanhar as novelas que foram os casamentos e descasamentos da época já seria o bastante para justificar o livro, mas o escritor vai muito além, descrevendo todo o pano de fundo da época.
Ele dedica capítulos à tradição cristã e à forma como os casamentos (e o sexo) eram vistos pela igreja; aos costumes e à política de casamentos; às relações extraconjugais fora da nobreza, nas práticas do ‘povo miúdo’; e à forma como o amor era retratado na literatura medieval portuguesa. Ainda que de forma disfarçada, trovadores aludiam às relações extraconjugais: “a Arte espelha a realidade da vida, ainda que fizesse uso de sutis metáforas e hábeis disfarces líricos”, aponta ele.
Novelas reais
O livro tem seus trechos mais interessantes ao passar do geral para o particular e contar histórias individuais. Acompanhar a sucessão de casamentos, traições, manobras para anular matrimônios, ciúmes entre irmãos legítimos e bastardos, ou entre esposas e amantes... É aí que temos acesso à matéria-prima bruta e humana que compõe a história.
O caso mais célebre é o romance de D. Pedro 1º e Inês de Castro. Ela era dama de companhia de sua esposa, D. Constança Manuel, e depois virou sua amante. A esposa legítima morreu e o caso prosseguiu por mais de dez anos, até o que o rei D. Afonso 4º, “desejoso que o príncipe tornasse a casar-se com alguma princesa digna de sua linhagem e estado”, manda matar Inês.
D. Pedro é feito rei, manda arrancar o coração dos dois algozes de sua amante e queimá-los à sua frente, e nunca mais se casa. Passa a punir de forma truculenta os envolvidos em casos de adultério. A história marcou a literatura portuguesa, sendo retratada em Os Lusíadas, de Camões, na tragédia Castro, de Antônio Ferreira, e numa trova de Garcia de Resende.
Com Inês, D. Pedro 1º tivera quatro filhos. Mas é seu primogênito legítimo, D. Fernando, que o sucede, e gera uma crise que põe fim à dinastia de Borgonha. Veja a trajetória amorosa de D. Fernando: primeiro, ele tem um caso com sua meia-irmã Beatriz, filha de Inês de Castro. Depois, acerta um casamento político com D. Leonor de Aragão.
Como o casamento não se consuma devido à pouca idade da infanta, rompe a união e combina de se casar com D. Leonor de Castela, interessado em obter um acordo de paz com Castela. Durante os arranjos para o casamento, se apaixona por uma terceira Leonor, D. Leonor Teles, que era casada e já tinha um filho.
Não conseguindo torná-la sua amante, D. Fernando desfaz mais um laço de matrimônio e consegue desposá-la. O povo se revolta: além de tomar para si uma mulher que já fora casada, objeto de suma reprovação, ele se deixa levar pela paixão em vez de firmar um casamento político. D. Fernando se safa em vida, mas após a sua morte a sucessão de seus herdeiros é questionada, e é então que desponta a dinastia Avis.
Tendo reunido matéria-prima tão saborosa, é pena apenas que Feldman a tenha exposto de forma bastante árida, com um texto pouco fluido e revisão nem sempre cuidadosa.
A sucessão de ‘Leonores’ acima é emblemática da repetição de ‘Pedros’ e ‘Joões’ e ‘Afonsos’ que compõem as dinastias portuguesas, o que às vezes torna um desafio a tarefa de acompanhar a história. Vêm à mente os 17 Aurelianos de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.
Mas o fato de amantes e bastardos serem mencionados nas crônicas e documentos da época ilustra o quanto essa prática era aberta. Feldman diz que a inclusão dos bastardos nos registros históricos justamente “reforça a impressão de que as relações extraconjugais eram comuns e aceitas ‘na prática’ antes dos séculos 14 e 15”. Isso, pelo menos, nos escalões superiores da sociedade, completa.
Sérgio Alberto Feldman
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