domingo, 18 de julho de 2010

Uma história do corpo na Idade Média


As tensões no/do corpo medieval
por Fernanda Luzia Lunkes*


Resenha:
LE GOFF, J. TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. [Tradução de Marcos Flamínio Peres. Revisão técnica de Marcos de Castro]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006 (207 p.)

A concepção do corpo, o lugar que ocupa na sociedade e sua presença no imaginário sofreram modificações com o decorrer da história, e Le Goff e Truong entendem que há uma grande lacuna histórica no que se refere ao corpo na Idade Média. A escolha deste período histórico, para os autores, deve-se, entre outros fatores, ao fato de que a Idade Média provocou uma revolução nos conceitos e nas práticas corporais desde o triunfo do cristianismo, nos séculos IV e V; porque a Idade Média aparece como a matriz do nosso presente mais do que qualquer outra época, ajudando-nos a compreender melhor nosso tempo, tanto por suas convergências surpreendentes como por suas irredutíveis divergências; porque é na Idade Média que as instituições farão uso das metáforas do corpo e o irão modelar.

Os autores partem da hipótese de que algumas “técnicas” vão traçando uma história para e no corpo, e que mesmo a vergonha, o constrangimento e o pudor têm uma história. É necessário, portanto, sair de uma perspectiva natural desses acontecimentos para um olhar político sobre o “civilizar o corpo”. E mostrar suas tensões na Idade Média, o qual era “glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado” (p. 29), das quais o cristianismo foi um dos grandes responsáveis.

No primeiro capítulo, “Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente”, os autores mostram como a Igreja buscava controlar os gestos corporais. O esperma e o sangue eram repugnados. Houve um intenso trabalho da Igreja no sentido de estabelecer a diferença entre o sangue de Cristo e o sangue “impuro” dos homens, inclusive o sangue menstrual da mulher. O sexo era controlado até mesmo entre os casais, cujo objetivo único era o de procriar. No entanto, citando Paul Veyne e Michel Foucault, os autores explicam que já havia um ‘puritanismo da virilidade’ antes da guinada decisiva do alto Império Romano (séculos I-II) em direção ao cristianismo. De alguma forma, o cristianismo foi o operador de uma reviravolta que já vinha sendo preparada, a qual condenava a luxúria, a gula e o excesso de bebida e de alimentação. O corpo, simbolicamente, era atravessado pela tensão entre o jejum sexual e alimentício da Quaresma com os excessos do Carnaval. Para os autores, no entanto, esta tensão estendia-se a todos os níveis do corpo.

O cristianismo também operou outra reviravolta: o choro e as lágrimas tornaram-se uma dádiva, uma renúncia da carne e que compensava o que era proibido, ou seja, os líquidos relacionados ao “pecado”. O riso, por sua vez, passou a ser relacionado ao demônio. Com o corpo dividido entre cabeça/espírito e ventre/carne, o riso foi silenciado dos séculos IV ao X, aproximadamente.

O segundo capítulo, “Viver e morrer na Idade Média”, aborda o desinteresse pelo amor. O amor não era um fundamento da sociedade medieval. A palavra, inclusive, significava paixão devoradora e selvagem. Na Idade Média desenvolveu-se um erotismo animalizado, cuja presença de floresta e de campos na sociedade moldou a realidade e o imaginário social, o que foi bastante combatido pela Igreja.

À época medieval também não interessavam a mulher grávida e a criança. Este quadro mudou quando a Igreja passou a promover o nascimento de Jesus, dando ao sacramento do batismo, um gesto corporal, um imenso valor. Foi a figura do pai que sofreu um declínio, desaparecendo também das representações artísticas da Natividade.

Como a expectativa de vida era baixa, a velhice era objeto de uma tensão “entre o prestígio da idade e da memória e a malignidade da velhice, a feminina em particular” (p. 104). A doença também não escapava à relação entre corpo e espírito. Nesta imbricação houve muita polêmica, porque havia os que defendiam a doença ligada ao corpo e aqueles que viam a doença como um castigo pelos pecados. Por isso, em geral, os milagres atribuídos aos santos são milagres de curas.

E neste sentido, a Igreja foi uma “crítica teórica da novidade” (p. 114). A medicina buscava meios para atenuar os sofrimentos físicos, mas mesmo assim permaneceu bastante estagnada, porque era inaceitável considerar o corpo sem a alma. A medicina era antes uma medicina da alma. Houve, todavia, importantes inovações técnicas, principalmente na área cirúrgica.

Foi a partir do tratado “dos cuidados devidos aos mortos”, de Agostinho, escrito em 421 e 422, que a Igreja inaugurou sua “carta funerária para o Ocidente” (p. 121). A Igreja passou a se encarregar dos mortos, ritualizando e regulamentando a morte. A morte passou a ser individualizada.

A presença dos mortos ganhou muitos significados na Idade Média. As narrativas com espectros passaram a ser difundidas pela Igreja após serem acusadas de supersticiosas e pagãs. O discurso cristão passou a apresentar o corpo dos mortos glorificado juntamente com a alma. Houve a redenção do corpo morto que era desprezado em vida. Mas uma questão atormentou teólogos e provocou muita polêmica na Idade Média: os corpos dos eleitos ficarão nus ou vestidos no paraíso? Em geral optou-se pela nudez. Pela nudez codificada, civilizada. A partir da segunda metade do século XII, surgiu um terceiro lugar além do céu e do inferno: o purgatório, uma espécie de “sala de espera” para os pecadores comuns.

As piores descrições dos sofrimentos e dos castigos infernais eram corporais, principalmente a danação, que priva o condenado de ver a Santíssima Trindade. Diversificaram-se os suplícios e procurou-se adaptar o castigo à falta cometida. A Igreja tentou negar o corpo, mas pela necessidade de dar “visibilidade” ao inferno, deu forma e volume aos corpos, não os excluiu.

No terceiro capítulo, “Civilizar o corpo”, os autores falam sobre a criação, pelo cristianismo e pela sociedade de corte nascente, de uma instituição das boas maneiras. Abordam também os modelos alimentares herdados pela Idade Média: a civilização do trigo e a civilização da carne e quais as conseqüências no imaginário medieval. Uma delas, bastante relevante, foi que “no lugar da oposição entre a civilização do pão e a da carne, que separava a civilização dos antigos e dos bárbaros, aparece então a oposição entre pobres e ricos, que, de algum modo, se reveza com ela e a substitui” (p. 137). Esta preocupação fez surgir os livros de culinária entre os séculos XIII e XIV. O alimento se transformou em cultura e a cozinha em gastronomia, dando à refeição um caráter social, codificado, hierarquizado.

Os movimentos e os gestos corporais eram centrais na vida social na Idade Média, acentuando a tensão de uma sociedade na qual o corpo oscilava entre o glorificado e o desprezado. A nudez, por exemplo, encontrava-se no limiar entre a inocência anterior ao pecado original e a luxúria. Houve uma significação na passagem da nudez à roupa, principalmente nos personagens iminentes da sociedade, e a nudez tornou-se cada vez mais associada à selvageria. A beleza feminina dividia-se entre Eva, “a tentadora”, e Maria, “a redentora”, personagens que constituíram os pólos da beleza feminina na Idade Média.

Os esportes na Idade Média eram praticados, embora não apresentem “nem o caráter de referência à sociedade de organização institucional, nem as condições econômicas que foram as do esporte na Antigüidade ou quando de seu renascimento, no século XIX” (p. 149). Os exercícios físicos na Idade Média foram uma contribuição ao processo de civilizar o corpo.

No capítulo “O corpo como metáfora”, os autores mostram como na Idade Média se enraíza o uso da metáfora do corpo para designar uma instituição, seja na religião, na ciência, na literatura. Há um trabalho político em associar certos órgãos e lados com melhor e pior, superior e inferior. O coração tornou-se o lugar do sofrimento, por exemplo, enquanto o fígado foi associado às partes inferiores, vergonhosas. A mão repousou sobre uma grande tensão: representava a proteção e o comando ao mesmo tempo em que era um instrumento de penitência, de trabalho inferior.

O discurso político também se apropriou da metáfora do corpo, utilizada com mais entusiasmo no século XII, principalmente nos tratados. De modo geral, a cabeça foi associada a permanecer ou a se tornar líder do corpo político. A metáfora corporal estendeu-se também à cidade, cuja idéia é a da “necessidade solidária entre o corpo e os membros” (p. 172), representando um conjunto funcional de solidariedades das quais o corpo foi o modelo.

Le Goff e Truong conseguem abordar as práticas políticas institucionais com relação ao corpo e desconstruir noções cristalizados na sociedade atual. É certo que o corpo não foi ignorado por algumas instituições que, cientes de sua importância, tiveram o cuidado de controlá-lo, de civilizá-lo. A obra consegue, sem dúvida, atentar para um perigoso jogo político com relação ao esquecimento do corpo na história.

* Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. Integra os Grupos de Pesquisa CNPq: GELCE: Grupo de Estudos – UEM; NECOIM-Memória, Cultura, Oralidade e Imagem – UNB. E-mail: flunkes@gmail.com
Revista Espaço Acadêmico

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