terça-feira, 6 de julho de 2010

Trabalho, Cultura e Bem-Comum


Metáforas do discurso único, metonímias das culturas do trabalho

Roseli Figaro

Enquanto o mundo for mundo
Enquanto o sal for compra-e-venda
Enquanto a vida vier com injeção de éter
Enquanto o poeta tiver
Vetiver cabeça tronco e membro
Os milagres farão chuvas de astros nos sonhos
O amor há de ser tudo e a carícia dos pratos
Além de alimentar despertará prazer...

(O carro da miséria, XII, Mário de Andrade, Poesias completas)

É PRECISO ter ousadia para desfazer as armadilhas que os asseclas do fim da história e da globalização, via o discurso único, disseminaram por todos os continentes. Trabalho, cultura e bem-comum (Leitura crítica internacional) é uma obra que atua nessa direção. Seu autor, Luiz Roberto Alves, mostra como os sinuosos discursos da autoridade de instituições como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), assessora do G-8, foram construídos para simular a unanimidade e a supremacia do mercado em contraposição ao Estado de Bem-Estar Social e às experiências dos trabalhadores na luta por direitos e dignidade. Tais simulacros discursivos açambarcaram governos e lideranças, jogando-os aos pés do Midas sistema financeiro, responsável pela atual crise internacional.

Nas palavras do autor,1

no processo estudado, entre 1990 e 2005, ocorreu um roubo de linguagens da sociedade ocidental, que vitimou – e vitima – exatamente os valores que poderiam reencaminhar as governanças saídas da guerra fria, isto é, os valores culturais do trabalho decente, dos bens sociais tornados bens comunitários e da diversidade sócio-política no tratamento da economia, das finanças e das políticas sociais.

Como salienta Alves, a linguagem é a arena onde se travam as batalhas sobre as estratégias persuasivas que transformam interesses privados em acordos econômicos e políticos a serem seguidos como manuais de boas condutas em nível internacional. O autor entra nessa seara para esmiuçar as camadas de sentidos que estão subsumidas por uma lógica que se tornou mito: o mais forte é o que sobrevive à concorrência do mercado. Este último, tido como entidade onipresente e onisciente, fator de seleção natural.

Buscar nos textos as lógicas comunicativas reveladoras dos lugares sociais dos quais falam seus enunciadores faz parte de uma tradição intelectual com a qual comunga Luiz Roberto Alves. Este, ao aplicar os referenciais da sociossemiótica aos objetos discursivos da OCDE, reunidos na série "Economic Outlook", mostra-nos como os fundamentalismos econômicos foram arquitetados como castelos de cartas, vazios da experiência coletiva construída no processo político de diversidade de vozes necessárias à civilização humanista.

Ao propor-se o empreendimento de desvendar os sentidos dos discursos da orientação neoliberal, buscou em Roland Barthes os aportes teóricos para demonstrar como o sentido de uma palavra ou de um discurso pode ser esvaziado, tornando-se mito ou mítico. Assim, nos municia de esclarecimentos e nos dá armas certeiras sobre como lutar nessa arena. O signo é uma materialidade das relações sociais e, como tal, diz respeito a condições concretas de enunciação. Um discurso torna-se mítico quando, esvaziado de seu sentido primeiro, simula um outro cujo objetivo é obscurecer ou obliterar as diferentes vozes e pontos de vista que circulam na sociedade.

O autor mostra como o discurso mítico da OCDE dissimula e obscurece as conquistas do Estado de Bem-Estar Social e os direitos dos trabalhadores conquistados por suas entidades representativas em lutas históricas. Sobretudo, ele demonstra como as orientações contidas nos documentos do "Economic Outlook" pretendem debelar as resistências e as vozes que enunciam discursos que se contrapõem à lógica da onisciência do mercado.

O apuro metodológico da análise, realizada por Alves, sustenta-se na abordagem criativa que ele faz das contribuições de Greimas e Jakobson a partir da característica básica da linguagem verbal de se constituir como rede de relações, na melhor tradição da semiologia saussuriana. Se entre os eixos do paradigma e do sintagma de estruturação da linguagem a rede de relações se dá na lógica da semelhança, cuja seleção permite os fundamentos de uma morfologia; e da contiguidade, cuja combinatória possibilita as relações de sentido e a noção de processo, para o autor esses eixos estão dissociados no discurso hegemônico contemporâneo. Tal dissociação se dá à medida que o paradigma se instituiu a partir de fundamentos cuja semelhança é simulada, não permitindo o progresso no sentido do bem-comum; e o sintagma está carente de elos para estabelecer nexos de sentido na sociedade globalizada, pois sua lógica tem os fundamentos falseados, o sentido encontra-se estilhaçado mais do que fragmentado.

O autor lê os discursos da OCDE como paradigma, no qual as metáforas tornam-se falseadas, haja vista o valor metafórico que vocábulos tais como reestruturação, reengenharia, reciclagem adquirem ao estarem no lugar de outros sentidos, simulando uma mudança que realmente não houve. Objetivamente, o sistema econômico hegemônico aprofundou as formas de exploração do mundo do trabalho e não as esvaeceu.

Se as metáforas, que mobíliam o espaço globalizado das transações neoliberais, constituem-se em mito; as metonímias da contiguidade sintagmática, dos discursos das centrais sindicais (CUT, brasileira; CGIL, italiana; e DGB, alemã) e dos discursos do Fórum Social Mundial, embora herdeiros de lutas vigorosas, mostram-se ainda desconectadas, pois os fundamentos dos valores que compuseram seu paradigma precisam ser reconstruídos, visto que as experiências metonímicas carecem tomar volume para enraizarem-se como eixo estruturante.

É do re-encantamento que se precisa, destaca Alves. Re-encantamento das experiências que, embora dispersas no eixo do sintagma, têm potencial para reconectarem as esperanças em torno da palavra de ordem trabalho decente. Expressão de sentido forte, pois cunhada em fóruns coletivos cujas práticas desenvolvem-se em torno da economia solidária, dos orçamentos participativos e dos conselhos comunitários de representação direta. Como conceito-chave, ela sintetiza experiências que têm em comum a presença das vozes dos interessados na enunciação discursiva que dá o status de cidadão àquele que se coloca na arena política.

Se há ou se houve uma avalancha de metáforas que tomaram o interesse privado pelo interesse público, aposta-se nas experiências concretas do movimento social dos trabalhadores, para o re-encantamento do trabalho e daqueles que trabalham. Experiências vivenciadas por gerações, consubstanciadas nas culturas do trabalho e atualizadas na dinâmica que se dá pela relação do passado com o presente.

A possibilidade de vida futura sustentável para os homens e para o planeta está em desconstruir os sentidos do trabalho como mito-monstro e como tripalium, com o qual se torturavam os escravos, para reavê-lo no sentido de atividade humana, aquela que torna o homem um ser genérico, ser de si e para si, cidadão, cuja relação transcende o dualismo ensimesmado para constituir temas e figuras capazes de dialogar com a coletividade na perspectiva da construção do bem-comum.

É desses sentidos que nos fala Luiz Roberto Alves em seu livro. Nas palavras de Adilson Citelli na apresentação "O trabalho em tempo de cólera", o autor realiza "um fino exercício analítico e intelectivo", expondo uma trajetória intelectual voltada à gestão mediadora de expressões comunicativas capazes de ressignificar e atualizar experiências solidárias.

Nota

1 Texto de divulgação do livro, Blog Alpharrabio: , acesso em 13 maio 2009.

Roseli Figaro é professora doutora na Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Trabalho, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP. @ – figaro@uol.com.br

Revista Estudos Avançados

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