segunda-feira, 5 de julho de 2010

Raça como retórica: a construção da diferença


Mônica Treviño

MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Cláudia Barcellos (orgs.). Raça como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.

Esta coletânea é o resultado do Programa Raça e Etnicidade, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado entre 1994 e 1997. Os autores dos diversos artigos e as duas organizadoras apresentam um novo olhar sobre a questão racial no Brasil – ou melhor, sobre as questões que surgem em torno de idéias/conceitos como "raça", "racismo" e "identidade racial" no contexto brasileiro, numa perspectiva comparativa. O objetivo é enriquecer os debates que, segundo as autoras, teriam se tornado rígidos demais nos anos 1990.

Os diversos artigos enfocam os temas a partir de pontos de vista múltiplos, tanto temporal como geograficamente. As perspectivas disciplinares incluem antropologia, historia e etnografia. Assim, os temas selecionados abarcam a época colonial e os períodos moderno e contemporâneo, com estudos de caso situados no Brasil, na África, na Europa e nos Estados Unidos. Esta amplitude de enfoques permite enfatizar as dimensões múltiplas do que significa e pode significar o conceito de "raça" do ponto de vista cultural, social, político ou mesmo moral.

A intenção declarada das organizadoras é a de questionar as interpretações essencializantes da "raça" que tinham se tornado, se não dominantes, pelo menos estavam "na moda", no início dos anos 1990. A partir daí, sugerem que sejam repensadas as avaliações e as propostas para as políticas públicas ante as desigualdades raciais, apontando particularmente – embora não explicitamente – a tendência a utilizar alguma forma de ação afirmativa no Brasil a partir da metade da década de 90 (p. 21)

Cada um dos artigos aponta a complexidade, a fluidez e a ambigüidade das categorias raciais, e, de maneira geral, das categorias de classificação social, não só no Brasil contemporâneo, mas na maioria das sociedades desde, pelo menos, os séculos XVI-XVII. Assim, na Amazônia colonial, "índios", "negros", "africanos" e "pretos" convivem, combatem, se identificam ou se separam de forma dinâmica, variada e variável, dependendo das circunstâncias dos encontros, como aponta a contribuição de Flávio dos Santos Gomes.

De maneira similar, nos grandes centros urbanos do Brasil contemporâneo, o encontro entre "asfalto" e "morro", "sangue-bom" e "alemão", "funkeiro" e "morador da Zona Sul", fazem positivas ou negativas identificações como "preto", "negro", "moreno" ou mesmo "branco". Em todas as circunstâncias, porém, o ponto de partida é a negociação e constante renegociação das identificações e identidades em questão, do ponto de vista do status social e das relações de poder – concretas ou pressupostas – dos participantes do encontro, e do seu lugar na mitologia da "identidade nacional brasileira". As complexidades destes encontros são discutidas e apresentadas em diversos contextos nos artigos de Olívia Maria Gomes da Cunha, Livio Sansone, Robin Sheriff e John Norvell.

A multiplicidade das identidades raciais e, particularmente, das identidades "negras", é enfatizada também por John Burdick. À tendência de alguns setores dos movimentos negros do Brasil a demonizar o pentecostalismo como uma religião de brancos (e por isso, alheia), atomizante e passivizante, Burdick opõe as evidências do desenvolvimento de uma maior auto-estima entre os afro-brasileiros pentecostais. Aliás, aponta a uma tendência – reconhecidamente minoritária, mas real – à problematização das desigualdades raciais desde um ponto de vista cristão. Assim, o fato de essencializar o que seria "a cultura negra autêntica" pode impedir ações conjuntas contra o racismo.

Para complicar ainda mais o spectrum racial do Brasil, o artigo de Guy Massart apresenta as experiências de estudantes cabo-verdianos no Rio de Janeiro e demostra, de forma inegável, que "africano" e "afro-brasileiro" não compartilham uma "essência cultural". De fato, os estudantes cabo-verdianos se fazem, por assim dizer, mais cabo-verdianos, mantêm sua identidade de "estrangeiros" e têm um vocabulário muito diferente sobre as identificações raciais, embora, aparentemente, falem a mesma língua que os brasileiros.

Os artigos de José Luís Cabaço sobre a construção de identidades em Moçambique, e de Verena Stolcke sobre as noções de nacionalidade e cidadania na Europa moderna, mostram dois pontos fundamentais para a análise das questões de identidade. Primeiro, coexistem sempre múltiplas interpretações e fontes das "raízes" da identidade, que não se separam nitidamente; ao contrário, se cruzam, se contradizem e se superpõem. Assim, a "identidade nacional" vem da "cultura", do "sangue", do "solo", da "vontade individual/coletiva"... Essas fontes poucas vezes são mutuamente exclusivas, e nem sempre precisam combinar-se em sua totalidade.

O segundo ponto sublinhado por esses autores é o papel do Estado-nação como instituição moderna. De fato, é a aparição do Estado moderno, com suas pretensões democráticas – sejam republicanas ou liberais – que impõe a necessidade da politização e da exclusividade das identidades, assim como o final das suas características dinâmicas e mutáveis. Ao final, o Estado moderno precisa de um demos ao qual representar, e de estabilidade para "sistematizar" e institucionalizar suas atividades. A importância desses dois pontos é que permite ver claramente o paradoxo da institucionalização de uma forma de classificação social – a identidade – que é fundamentalmente instável.

O artigo de Verena Stolcke ainda mostra explicitamente como o sistema de nacionalidade é fundamentalmente baseado na necessidade de excluir o "Outro", o estrangeiro. Além disso, a exclusão do outro opera, pelo menos parcialmente, através da marginalização da mulher. A relação entre a exclusão com base na nacionalidade, etnicidade e/ou raça, e a exclusão com base no gênero explicita, mais uma vez, a complexidade dos sistemas de classificação social. Assim, uma das perguntas iniciais desta coletânea, "raça ou classe?", exige ser reformulada: "até onde raça, até onde classe, até onde gênero?", sem falar dos outros muitos eixos de classificação social como orientação sexual, religião etc. É preciso falar, como faz Patricia Hill Collins, numa "matriz de dominação", na qual os diferentes eixos se mesclam e se superpõem.

A contribuição de Ciraj Rassool e Patrícia Hays sublinha também o laço estreito entre "raça" e gênero na utilização da imagem de uma mulher bosquímana para simbolizar o controle europeu sobre os "primitivos" colonizados. Não é à toa que a fotografia "científica" que virou "cartão" foi a de uma mulher quase nua, e não a de um homem. Muitos estudos têm enfatizado a relação entre a submissão dos povos das Américas, da Ásia e da África, e a submissão das mulheres. A contribuição mais interessante deste artigo, a meu ver, diz respeito à relação entre ciência e dominação, e ressalta uma das questões centrais da coletânea.

A fotografia que suscita o artigo foi inicialmente feita com intenções "científicas" de desenvolver uma classificação antropológica, como se fosse a botânica ou a química, ou seja, fazer do conhecimento da espécie humana uma "verdadeira" ciência, ao estilo positivista do início do século XX. Essa intenção introduz um vocabulário "científico" reificado e essencialista para definir e classificar as "raças" humanas que, como todo vocabulário, não ficava livre da bagagem cultural e política das sociedades – brancas/européias – das quais emergiu.

O poder das palavras, da "retórica", é igualmente o tema central do texto de Vincent Crapanzano, particularmente no âmbito do discurso acadêmico. Embora seus exemplos sejam tirados do discurso "do dia-a-dia" da interpretação de fenômenos sociais nos Estados Unidos, sua preocupação central é o perigo de essencializar e reificar os sistemas de classificação social ao tentar estudá-los "cientificamente". Existe um perigo, sugere, de reproduzir e naturalizar o esquema de classificação baseado na idéia de "raça", se o acadêmico utiliza a palavra sem problematizá-la. Esse perigo é particularmente nocivo pelo fato de as categorias raciais serem mutáveis entre sociedades, e dentro delas.

A orientação desta coletânea fica, até certo ponto, cristalizada neste artigo teórico. Assim, falar em "raça", "racismo", "identidade racial", "identidade negra", reificaria uma realidade muito mais complexa, muito mais flutuante e muito mais variável segundo o contexto social específico no qual acontece o encontro entre indivíduos e/ou grupos diferenciados socialmente. Além disso, esses conceitos não permitem perceber facilmente as flutuações possíveis das relações de poder, nem as formas, muitas vezes sutis, irônicas, de resistência daqueles cuja posição social aparece como subordinada.

Mas as perguntas sobre se as relações raciais no Brasil são mais harmônicas ou mais cruéis que em outras sociedades, e sobre se é desejável utilizar uma linguagem bipolar na concepção das políticas públicas contra as desigualdades raciais, recebem, a meu ver, respostas diferentes das sugeridas (pelas organizadoras) no capítulo inicial.

Assim, embora seja verdade que existem constelações de identificações e de classificações raciais no Brasil, isso não significa que a hierarquização e a exclusão não sejam claras, nem que a sociedade brasileira seja um caso único, ou mais difícil de enfrentar do que outros. De fato, como aponta Íris Young (1990), todas as identidades sociais são múltiplas e mutáveis. A negação deste fato para aqueles que são socialmente construídos como "outros" ou "diferentes" faz parte da sua opressão. Mas ninguém argumenta que não é desejável/possível organizar, por exemplo, um movimento feminista, pelo fato de as mulheres não serem todas exatamente iguais e não compartilharem uma identidade única, nem que a existência de tal movimento automaticamente gere uma reificação das mulheres. E a existência de mulheres de classe alta, média e baixa não impede o reconhecimento da tendência geral a localizar as mulheres socialmente como inferiores aos homens.

Eu argumentaria também que, mesmo se toda instituição importada (e a questão da "importação" das políticas de ação afirmativa no Brasil é discutível) precisa se adaptar à sociedade específica na qual vai ser utilizada, é possível aprender com as experiências de outras sociedades e outros movimentos.

Por outra parte, a pretendida harmonia ou cordialidade das relações raciais no Brasil não consegue sobreviver à análise aprofundada. Como demonstram os artigos de Sheriff, Sansone, Cunha e Norvell, ao serem interrogados com persistência a quase totalidade dos entrevistados terminaram por reconhecer a existência da discriminação e da hierarquização raciais no Brasil. Além disso, muitos deles explicitam que, mesmo se existem muitas "cores", o fator subjacente é a diferenciação de duas, ou três, "raças": branca, negra, índia.

Seja ou não problemática e diferenciada a utilização da palavra e do conceito "raça", a sociedade brasileira tem, inegavelmente, um problema racial que não difere estratosfericamente dos problemas raciais de outras sociedades. A reticência a falar em "raça", como mostraram Skidmore (1974), Hanchard (1994) e Winant (1994), entre outros, faz parte da negação e da exclusão dos negros no Brasil. Ao contrário de Crapanzano, eu argumentaria que as desigualdades raciais no Brasil, como, por assim dizer, o problema do alcoólatra, só podem ser resolvidos se o problema é reconhecido e nomeado como o que é: racismo.



Referências

HANCHARD, M. G. (1994). Orpheus and power: the Movimento Negro of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton, Princeton University Press.

SKIDMORE, T. E. (1974). Black into white: race and nationality in Brazilian thought. Oxford, Oxford University Press.

WINANT, H. (1994). Racial conditions: politics, theory, comparisons. Minneapolis, University of Minnesota Press.

YOUNG, I. M. (1990). Justice and the politics of difference. Princeton, Princeton University Press.

Revista Estudos Afro-Asiáticos

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