sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil


LIMA, Antonio Carlos de Souza. 1995. Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes. 335 pp.

Marcos Otavio Bezerra
Prof. de Sociologia, UFF


A partir de documentação interna do Serviço de Proteção aos Índios e Localização do Trabalhadores Nacionais (SPILTN), Antonio Carlos de S. Lima desenvolve, em Um Grande Cerco de Paz, uma análise fina da organização e ação do primeiro poder estatal dirigido às populações concebidas como indígenas distribuídas pelo território historicamente denominado e imaginado como brasileiro. Criado em 1910, o órgão é transformado em Serviço de Proteção aos Índios em 1918 e extinto em 1967, sendo suas responsabilidades e acervo transferidos para a Fundação Nacional do Índio (Funai). Com uma história marcada por continuidades e descontinuidades em termos de organização funcional, atribuições, peso institucional e composição social, o órgão fez parte de distintos Ministérios: da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC, 1910/30); do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC, 1930/34); da Guerra (1934/39); e da Agricultura (1939/67).

As "diferentes formas de relacionamento entre populações indígenas e aparelhos de poder oriundos da invasão européia no continente" (:61) têm padecido da ausência de investigações construídas tanto do ponto de vista da historiografia quanto das ciências sociais. No que concerne às relações entre essas populações e o Estado brasileiro, os estudos realizados têm sido classificados comumente sob as rubricas "indigenismo" e "política indigenista". A análise das idéias e ações implementadas pelo Serviço a partir de um paradigma que ressalta a sua dimensão de aparelho estatal e matriz militar, o que leva a uma revisão do que foi elaborado em termos de "indigenismo" e "política indigenista", é uma das grandes contribuições do livro.

O estudo das ações estatais que incidem sobre as populações indígenas implica também uma ruptura com a história oficial, dominante e reproduzida acriticamente em distintos domínios sociais, acerca da origem e atuação do Serviço. Centrada na idéia da iniciativa pessoal de Rondon e no caráter humanitário do empreendimento, a versão oficial, que teve em Darcy Ribeiro seu principal propagador, é tomada como constitutiva do próprio Serviço, ou seja, instrumento de sua legitimação. Assim considerada, ela dá lugar a uma interrogação acerca da origem, estrutura e funcionamento do aparelho, sua composição e mudanças, suas orientações e seu lugar na totalidade da administração pública. Como parte desta, é destacado o fato de o Serviço contribuir para a criação de significados e a construção de uma comunidade política representada como nacional.

Essa forma de poder exercida a partir do SPI(LTN) é intitulada pelo autor "poder tutelar". Trata-se de um poder estatizado, exercido sobre populações e territórios, que busca assegurar o monopólio dos procedimentos de definição e controle sobre as populações indígenas. Para tanto, são meios importantes e ao mesmo tempo seus produtos, a formulação de um código jurídico acerca das populações indígenas e a implantação de uma malha administrativa instituidora de um governo dos índios. O exercício do "poder tutelar" sobre os índios possui características específicas que não devem ser confundidas com outras formas de poder dirigidas a essas populações. O "poder tutelar" é concebido como uma forma reelaborada - com continuidades lógicas e históricas - da "guerra de conquista". Enquanto modelo analítico, define o autor, a "conquista" é um empreendimento com distintas dimensões: fixação dos conquistadores nas terras conquistadas, redefinição das unidades sociais conquistadas, promoção de fissões e alianças no âmbito das populações conquistadas, objetivos econômicos e empresa cognitiva.

A criação do SPI(LTN) no quadro da administração pública é tratada na segunda parte do livro. Entre outros aspectos, esse movimento analítico permite perceber o quanto certas propostas, ações e contratempos enfrentados pelo órgão decorriam de sua posição relacional no conjunto da administração pública. "Trata-se de retirar da dimensão de 'empresa heróica' o que sempre foi parte da burocracia" (:112). Para compreender como o Serviço é constituído, Lima analisa a rede de relações que liga Rondon ao MAIC. Nesse sentido, são destacados os vínculos diretos e indiretos de Rondon com pessoas posicionadas no MAIC e no Museu Nacional, com membros do apostolado positivista, com militares e com simpatizantes da campanha presidencial de Hermes da Fonseca. A aproximação dessas redes ocorre em torno de algumas idéias como a de proteção. Entendida como defesa física e moral dos índios, a proteção devia ser exercida tanto junto às populações indígenas quanto aos demais grupos humanos dispersos pelo território nacional. Para tanto, o Serviço reivindicava o "monopólio e uso da violência legítima em prol das populações nativas" (:128).

Ponto de partida do exercício do poder tutelar e ao mesmo tempo seu produto, as classificações elaboradas pelo Serviço acerca dos índios estão na origem de suas ações. Concebidos pelo órgão como seres em transição, suas ações estavam voltadas para proporcionar a incorporação dos índios à categoria de trabalhadores agrícolas.

As "estratégias" e "táticas" mobilizadas pelo Serviço para alcançar seus objetivos são discutidas na terceira parte do livro. Articuladas com as classificações mencionadas acima, as ações estavam orientadas sobretudo pela idéia de fases. Com as expedições, buscava-se reunir informações sobre o virtual território de ação e elaborar um mapa social dos conflitos existentes e das alianças passíveis de serem estabelecidas localmente. Elas se prestaram, sobretudo, à instalação administrativa do SPI(LTN). Dentre as fases, a pacificação, pelos pressupostos assumidos acerca dos índios e pelo capital simbólico dela decorrente, era apresentada como ação exemplar do Serviço. À pacificação, seguia a atração, termo que remetia à tática de deslocamento das populações para as proximidades dos postos de atração e incentivo ao abandono das práticas indígenas, o que vinha acompanhado da criação de dependência em relação aos postos. As medidas voltadas para a destruição das formas nativas de organização socioeconômica e política estão na base da ação civilizatória, que objetivava fomentar a passagem dos índios a trabalhadores agrícolas. Por fim, a definição jurídica do status de índio é um "dispositivo" importante da ação estatal sobre as populações indígenas. Ao recuperar as discussões em torno do Código Civil (1917) e do Decreto 5484/ 28, o autor conclui que a legislação atende especialmente a interesses administrativos do SPI(LTN). Trata-se de instrumento para enfrentar as populações não-índias e as redes sociais presentes no aparelho de Estado com as quais não era possível estabelecer alianças.

Destaque-se que as indicações apresentadas acerca de como as ações do Serviço introduziram mudanças nas populações contatadas têm uma conseqüência importante, ou seja, o fato de as análises realizadas sobre as populações indígenas, ou a partir delas, necessitarem incorporar uma reflexão sobre os efeitos que têm sobre essas populações (sobre o seu modo de se autoconceberem, conceberem ao outro e se organizarem socialmente) as ações dos diversos poderes, em particular, o estatal.

A última parte do livro tem como foco de análise a estrutura organizacional do órgão e as tarefas desempenhadas durante sua inserção nos distintos Ministérios. A articulação do Serviço nos planos nacional (subdiretorias e seções), regional (inspetorias) e local (postos, povoações indígenas, centros agrícolas e delegacias) é discutida, assim como suas atribuições. Levar em conta na análise do Serviço sua inserção diferenciada nos Ministérios, permite ao autor perceber suas mudanças de status e orientações.

Produto de um conjunto de investigações desenvolvidas ao longo de onze anos, o livro de Lima traz à luz parte da história esquecida da relação entre poder estatal e populações indígenas. História que apesar de não ser objeto de reflexões (acadêmicas ou administrativas), e talvez graças, sobretudo, a isso, permanece presente nas opções, propostas e ações implementadas junto às populações indígenas. Longe de comprometer o livro, lamenta-se, contudo, a falta de uma revisão mais cuidadosa do texto. Em alguns períodos, palavras e frases soltas trazem um certo prejuízo à compreensão. Enfim, se o leitor me permite, sugeriria que a leitura fosse iniciada pelas fotos reproduzidas pelo autor no "Caderno Iconográfico". Embora não haja referências a cada uma das fotos, o fato de que quanto mais se avança na leitura do livro melhor se compreende o que está em jogo nas imagens, parece-me indicativo da força da análise produzida por Lima.

Revista Mana

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