quarta-feira, 30 de junho de 2010

Travesti: Sex, Gender and Culture among Brazilian Transgendered Prostitutes

KULICK, Don. 1998. Travesti: Sex, Gender and Culture among Brazilian Transgendered Prostitutes. Chicago: The University of Chicago Press.

Cecília McCallum
Profª Visitante de Ciências Sociais, UFBA


Esse estudo dos travestis de Salvador da Bahia pode ser lido sob várias perspectivas: como uma etnografia lírica e extremamente bem escrita, um ensaio teórico sobre a relação entre representação corporal e subjetividade ou uma contribuição importante à antropologia de gênero. Desde o momento em que o leitor pega o livro e começa a ler as primeiras frases, experimenta uma sensação rara na antropologia. Torna-se difícil parar, como um romance policial bem feito ou uma história de horror. Kulick tem jeito com as palavras, suga o leitor para dentro do imaginário e da vida diária dos travestis, que fazem parte de todas as páginas do livro. O autor teve acesso a esse imaginário por intermédio de uma pesquisa de campo durante a qual conviveu com um grupo de travestis. Morou junto com eles, ficou na rua esperando clientes com eles, e fez parte das suas vidas durante um ano. Tal convívio resultou em uma visão inusitada dessas pessoas, pois reúne um conhecimento de aspectos particulares das suas vidas com uma forte empatia entre pesquisador e pesquisados que marca fortemente o livro. A combinação de conhecimento e afeto sustenta a qualidade literária da obra que, no entanto, não dispensa uma acuidade teórica e uma discussão bem travada com temas centrais na antropologia cultural.

Além do efeito positivo do método clássico de observação participante, Kulick fez uso de técnicas desenvolvidas na antropologia lingüística, aperfeiçoadas na sua monografia baseada em pesquisa de campo na Papua Nova Guiné (publicada pela Chicago Universiy Press). O texto incorpora e discute trechos de dezesseis entrevistas em profundidade e vinte horas de interações espontâneas cuidadosamente transcritas e traduzidas, dando voz a um grupo de travestis de uma forma que o leitor também pode analisar os seus discursos e a etnografia que os contextualiza.

Os travestis consideram-se homossexuais plenamente assumidos, e não falsas mulheres ou mulheres em pele de homens. O livro elabora um retrato do contexto da vida dos travestis em uma área de baixa renda no antigo Pelourinho. Mostra o processo de tornar-se travesti, desde os primeiros contatos homossexuais quando ainda meninos, até a entrada na prostituição na adolescência. Faz uma descrição detalhada das modificações corporais com hormônios e silicone, e a própria prática da prostituição que pode levá-los até a Europa. Descreve a vida amorosa dos travestis, seus casos e casamentos com homens, as relações sociais com outros travestis e com seus vizinhos, a ruptura com a família de nascimento e a relação com a mãe. Detalha, nas palavras dos informantes, o prazer sexual que sentem com clientes e outros, e o prazer de representarem com êxito o papel de mulheres e, assim, se sentirem "mulheríssimas". Kulick não deixa de lado os jogos de poder dos travestis, entre eles e os clientes, de um lado, e os namorados, de outro, fazendo uma análise sutil da dinâmica da vida privada e profissional deles. O capítulo final trata da questão da subjetividade "engenerada" (gendered subjectivity) e defende a proposta analítica central do livro, que aborda o sistema de gênero brasileiro.

Kulick enfatiza a perspectiva etnometodológica, tentando privilegiar a construção coletiva de uma realidade entre os travestis, em relação à qual eles se orientam no curso da sua ação. Nesse sentido, o livro é basicamente o estudo de um pequeno e bastante singular grupo de adolescentes e jovens (e algumas pessoas mais velhas) e da sua cultura, autoconcebida como "individualista" e pouco orientada para a construção de laços sociais (capítulo 1).

No entanto, o livro pretende ser muito mais do que apenas um estudo de caso. Ambiciona o "explicitar a lógica não-expressa que sustenta interações contextualmente situadas" (:17). Para Kulick, essa lógica é, no seu âmago, cultural. Faz parte do sistema de gênero brasileiro, que se baseia em uma visão não-essencialista e dinâmica da pessoa e do corpo. O autor defende a proposta que no sistema brasileiro a construção de gênero é travada na prática da sexualidade e que o gênero não é tido como um atributo inerente de corpos vistos como biologicamente diferentes. A distinção entre pessoas com e sem órgãos genitais masculinos entra no discurso dos travestis, mas, segundo argumenta Kulick, a distinção de gênero principal está baseada na posição adotada no ato sexual, e não em uma noção cultural do sexo do corpo. Assim, a distinção básica será entre homens (que penetram) e não-homens (que são penetrados), e não entre homens e mulheres. O gênero pode mudar da noite para o dia, se um "homem verdadeiro" cede à tentação de assumir a posição passiva. Assim, vira um "viado" e pode então ser rotulado com os termos do gênero feminino - "ela, menina, bicha" etc. Os corpos masculinos podem ser transformados em corpos altamente femininos, mediante manipulações cirúrgicas, bio-químicas e estéticas, utilizando todo o repertório da representação da feminilidade em que os travestis são mestres.

Isso não é surpreendente enquanto se trata de uma etnografia da masculinidade e da homossexualidade brasileira. No entanto, Kulick tenta demonstrar que esta é a essência do sistema de gênero brasileiro como um todo. Para ele, os travestis cristalizam as noções que sustentam a distinção entre homem e mulher, e sintetizam as principais mensagens sobre gênero no Brasil. Este ponto representa uma crítica àqueles estudos e interpretações que tratam os travestis como perversos, ambíguos ou como operando inversões no sistema de gênero no Brasil. Kulick insiste que em vez de inverter o sistema, os travestis o aperfeiçoam. Há que se admitir que o poder do argumento, desenvolvido sem trégua em um texto tão completo e de agradável leitura, é forte. Porém, vale colocar algumas ressalvas.

Esse estudo é uma etnografia moderna. Longe dos excessos do estilo pós-modernista, incorpora avanços e críticas de recentes trabalhos teóricos que fazem parte ou se inspiram nesse movimento. Gênero visto como processo, construído nas práticas e nos discursos, é fruto desse enfoque, como também é a incorporação, dentro da análise culturalista, da discussão da subjetividade. A cultura, nesse livro, não aparece como uma rede geertziana de significados ou símbolos, flutuando acima dos sujeitos que a constroem, e sim como gerada em cada momento das suas vidas diárias. Nesse sentido, não há como rebater a tese de que esses travestis-prostitutas fazem uma síntese do sistema cultural brasileiro de gênero, pois todo grupo social no país que participe dos mesmos discursos hegemônicos e da mesma história nacional de qualquer tipo pode fazê-lo também. A antropologia vive buscando as lógicas não-expressas atrás das práticas. Mas será que esse é um sistema global, no sentido de que todos fariam a mesma síntese? Um grupo de mulheres de baixa renda em Salvador, por exemplo? Até que ponto um estudo de um grupo pequeno e singular de homens pode representar significados culturais gerados por milhões de pessoas? De fato, Kulick reconhece plenamente essa crítica, e chama a atenção do leitor para a necessidade de mais etnografias de outras subjetividades "engeneradas", especialmente das mulheres. Desse modo, sua tese age como um desafio aos estudiosos de gênero, e um ponto de partida para um debate renovado.

Talvez venha a ser nas relações entre os sistemas do tipo que os travestis cristalizam que uma lógica maior se revelará. Por exemplo, a construção de gênero na vida diária das pessoas plenamente envolvidas no projeto de reprodução e parentesco (como a maioria das mulheres de baixa renda, e muitos homens também), ao ser relacionada com a análise efetuada por Kulick, poderia proferir uma dimensão de generalidade mais digna de ser chamada de "sistema de gênero brasileiro". Assim, poder-se-ia afirmar que os travestis cristalizam muito bem uma parte; uma análise que termina com a sua subjetividade, no entanto, não deixa pistas para outras diversas subjetividades no mesmo meio ambiente cultural. Talvez Kulick devesse evitar a expressão "sistema de gênero brasileiro", substituindo-a por outra, menos restrita e mais aberta a outras subjetividades.

Claro que só se pode fazer tal comentário como uma resposta à clareza e à força do argumento de Kulick, que faz da sua etnografia o seu palco e a sua artilharia teóricos. Resta fazer algumas pequenas críticas. O livro mereceria uma atenção maior da equipe editorial, que deixou escapar um número inaceitável de erros. Na capa ocorrem outros erros, como por exemplo o comentário de Scheper-Hughes que situa o Pelourinho na Cidade Baixa, quando o correto, sabemos, seria na Cidade Alta. Espera-se que estes detalhes sejam corrigidos na segunda edição, que seguramente sairá em breve.

Revista Mana

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