domingo, 20 de junho de 2010

O NASCIMENTO DA CULTURA AFRO-AMERICANA: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA


Petrônio Domingues
Professor de História da UNIOESTE Doutorando em História Social-FFLCH/USP


MINTZ, SIDNEY W. E PRICE, RICHARD. O NASCIMENTO DA CULTURA AFRO-AMERICANA: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA. TRAD. VERA RIBEIRO. RIO DE JANEIRO: PALLAS/UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES, 2003, 138P.

A Escravidão em Migalhas

Sidney W. Mintz é professor de antropologia da Johns Hopkins University, autor consagrado da área que trata da cultura e da história afro-americana. Richard Price também é antropólogo de formação. Autor de mais de uma dúzia de livros, lecionou nas universidades de Yale, Hopkins, Stanford e Princeton, nos EUA. Hoje, vive na área rural da Martinica, onde realiza pesquisa etno-histórica. Price também é uma sumidade em questões que envolve relações raciais e a consciência histórica afro-caribenha. Recentemente, ele veio ao Brasil, para participar de eventos acadêmicos e divulgar o lançamento de O Nascimento da Cultura Afro-Americana. O livro foi publicado em 1976, causando grande polêmica nos meios acadêmicos estadunidense. Em 1992, ele foi relançado, com algumas atualizações pontuais. É a tradução dessa versão que chega ao público brasileiro.

O livro foi escrito em forma de ensaio, no biênio 1972-1973, no contexto da luta pelos direitos civis do movimento negro, de um lado, e introdução da disciplina estudos afro-americanos nas universidades estadunidenses, de outro. Na ocasião, os estudos afro-americanos estavam marcados por polarizações. O africanismo estava em voga, assim como uma visão maniqueísta da história da escravidão e das relações raciais. Para responder à essas questões, os autores resolveram escrever o ensaio O Nascimento da Cultura Afro-Americana. O texto era uma espécie de manifesto a favor de uma produção acadêmica que ficasse à altura da complexidade que envolve o estudo da escravidão e da história da cultura afro-americana. Como os próprios autores escrevem, o texto "pretendeu ser uma profissão de fé e um manual" (p.7). Devido ao clima de afirmação do africanismo - por parte do movimento negro e da produção acadêmica -, o livro foi alvo de muitas críticas. Ele foi acusado, dentre outras coisas, de negar a existência de uma herança africana nas Américas. Os autores lembram, no prefácio, que o clima era de acirramento " 'pró' ou 'contra', com respeito à preservação de formas culturais africanas" (p.8). E, apesar do discurso militante ser menos comum hoje em dia, eles fazem questão de ressaltar que a disputa continua: "por mais inocentes que sejam, as suposições a respeito do que parece e não parece (ou tem ou não tem jeito de ser) culturalmente 'africano' continuam a atormentar os estudos afro-americanos" (p.9).

Apesar de Sidney W. Mintz e Richard Price estarem escrevendo endereçado ao mundo acadêmico dos EUA, esse diagnóstico também é válido para o atual estágio dos estudos sobre a escravidão e a história da cultura negra no Brasil. Estar em voga estudar a escravidão no Brasil à luz do africanismo. Na antropologia, alguns pesquisadores buscaram (e ainda buscam) compreender as manifestações da cultura afro-brasileira como produto, quase que mecânico, da herança africana. Com os estudos da história da escravidão no Brasil, opera-se fenômeno semelhante. A palavra de ordem agora é: entender a cultura escrava como extensão da cultura africana. Cada vez mais os historiadores mergulham no universo cultural africano, do século XVI ao XIX, para encontrar o sentido do comportamento escravo no Brasil. Coincidentemente com o que aconteceu nos EUA, a nova abordagem acerca dos estudos da cultura afro-brasileira e história da escravidão ganha vigor justamente num momento de ascensão da luta do movimento negro no país, quando se opera uma mobilização sem precedentes na sociedade brasileira para discutir o problema do racismo e, ao mesmo tempo, são implementados os primeiros programas de ações afirmativas. Do ponto de vista da grade curricular, o Brasil também discute, atualmente, a implementação do estudo da história e da cultura afro-brasileira.

O livro está dividido em seis pequenos capítulos (o modelo do encontro; contato e fluxo socioculturais nas sociedades escravocratas; o setor escravo; primórdios das sociedades e culturas afro-americanas; o que foi mantido e sobreviveu; por fim, parentesco e papéis sexuais). O objetivo do ensaio é oferecer "uma abordagem antropológica geral do estudo da história da cultura afro-americana", a fim de examinar "a instalação inicial dos africanos no Novo Mundo". Tal instalação é vista "como uma espécie de 'linha basal', com as formas que as comunidades africano-americanas viriam a adquirir posteriormente" (p.19).

O surgimento e a consolidação das colônias do Novo Mundo foram marcados por contrastes, em termos de cultura, poder e status. Uma pequena minoria de europeus e seus descendentes exerciam o poder, de um lado, e uma grande maioria de africanos eram dominado, de outro. Mas, segundo os autores, não havia uma separação tão radical. A interpenetração cultural imprimiu a tônica da colonização desses dois grupos no Novo Mundo, resultando no surgimento das chamadas "sociedades crioulas" (p.23). Em outro momento, eles reiteram o argumento de que os processos de formação cultural no Novo Mundo não foi unilateral, ou seja, processos pautados na imposição de formas culturais européias a receptores africanos passivos.

Para Mintz e Price, os africanos que povoaram o Novo Mundo não compartilhavam da mesma cultura. Eles conceituam cultura como um "corpo de crenças e valores socialmente adquiridos e padronizados, que servem de guias de e para a conduta num grupo organizado (numa 'sociedade')" (p.26). Se os grupos de colonos europeus já representavam tradições culturais nacionais específicas, os africanos seriam desprovidos dessas tradições. Estes eram retirados de diferentes localidades do continente africano, de numerosos grupos lingüísticos e étnicos e de múltiplas sociedades das diversas regiões. Assim, não seria plausível afirmar que os africanos transplantaram para o Novo Mundo uma única cultura. A começar, porque era incomum grupos de africanos de culturas específicas poderem viajar juntos ou se instalarem no mesmo local ao chegarem no Novo Mundo. Não havia uma cultura africana no singular, mas, de uma perspectiva transatlântica, "conglomerado etnicamente heterogêneo" de indivíduos com sua cultura específica.

Um modelo de abordagem comparativa entre a heterogeneidade étnica dos africanos e das sociedades do Novo Mundo postula uma ligação direta: a cultura de determinado povo africano passou a corresponder a de determinada colônia ou sociedade do Novo Mundo (o Suriname ou a Jamaica aos achantis, o Haiti aos daomenaos, e assim por diante). Tal metodologia é, segundo Mintz e Price, perigosa e, muitas vezes, equivocada, dada a escassez de conhecimento que se tem tanto da cultura dos escravos nessas colônias quanto da dos grupos étnicos africanos nos séculos da escravidão. Essa crítica serve como admoestação para os novos estudos sobre a escravidão no Brasil, os quais buscam resgatar a cultura escrava pelo olhar da África. A transmissão cultural dos grupos étnicos africanos para os escravos no Brasil não se processou de maneira direta ou linear, mas foi marcada por mediações, conforme cada contexto histórico específico. Em outras palavras, os africanos não teriam transportado, de maneira intacta, sua tradição cultural para o Novo Mundo. Esta foi elaborada e reelaborada no novo meio.

O modedo teórico que defende uma única cultura africana como fonte de uma dada tradição teria um outro problema: escamoteia o dinamismo dos complexos processos culturais de adaptação dos diferentes grupos étnicos africanos uns com os outros e com seus dominadores europeus no Novo Mundo. Ademais, os "africanos que chegaram ao Novo Mundo não compuseram grupos logo de saída. Na verdade, na maioria dos casos, talvez fosse até mais exato vê-los como multidões, aliás multidões muito heterogêneas. Sem diminuir a importância provável de um núcleo de valores comuns e da ocorrência de situações em que alguns escravos de origem comum podem, efetivamente, haver-se agregado, a verdade é que estas não foram, a princípio, comunidades de pessoas, e só puderam transformar-se em comunidades através de processos de mudança cultural" (p.37).

Os autores entendem que os escravos, apesar das diferenças étnicas, compuseram um mundo específico, dentro das margens de manobra definidas pelo monopólio de poder senhorial: "Que a classe senhorial tanto funcionava como mestra – e intimidadora – dos escravos quanto como reguladora de sua conduta sempre foi aceito como um dado banal, e sem dúvida costumava ser verdade. Mas o papel que tinham os desprovidos de poder, afetando e até controlando partes importantes da vida dos senhores, também era típico das colônias escravagistas e não tem recebido atenção suficiente" (p.52). Para Mintz e Price, o modelo teórico fundado na dicotomia escravo versus senhor é simplista, pois não permite responder à diversidade que caracterizou os "contatos" entre os escravizados e os livres. Além de uma relação de subordinação, a escravidão teria forjado laços de "contatos" mais íntimo entre os escravos com os grupos de homens livres. Os autores até sugerem que os referidos "contatos" geraram um estado de dependência dos senhores em relação aos escravos. Apesar da história de dominação a que os escravos foram submetidos, existiriam informações que indicam que eles se engajaram, inclusive, em atividades econômicas relativamente independentes (p.100).

Os autores assinalam que, de modo algum, pode-se imaginar que a ruptura do escravo com o passado africano foi irrevogável. Há vários exemplos que demonstram que os escravos, em alguns aspectos, deram continuidades à identificação cultural herdada das civilizações ancestrais. Mas o que deve ser enfatizado, segundo Mintz e Price (p.70), é que a história da Afro-América é marcada "por renovações dessa identificação, em muitas ocasiões e sob várias formas: sentimentais, políticas, literárias, etc". Os escravos não só reformularam práticas culturais tradicionais, como formularam outras novas.

Os autores insistem na tese de que a população escrava não reproduziu no Novo Mundo o mesmo padrão cultural da África. Seu sistema religioso, por exemplo, não sobreviveu, inalterado e intacto, no novo contexto. Assim, "não mais parece suficiente afirmar que o culto dos gêmeos no Haiti, a adoração de Xangô em Trinidad ou na Bahia, ou o uso de oráculos no Suriname são simples exemplos de uma transposição da África, ou mesmo de continuidades culturais étnicas específicas" (p.63). As continuidades formais diretas da África teriam constituído mais uma exceção do que a regra em qualquer cultura afro-americana. A tarefa do historiador, portanto, seria entender como o material cultural, que foi preservado, serviu para os escravos construírem (e reconstruírem) uma identidade específica e conquistarem certo grau de autonomia face ao domínio senhorial.

Segundo Mintz e Price, as culturas africano-americanas plenamente formadas desenvolveram-se nos primeiros anos de povoamento de muitas colônias do Novo Mundo. Tal processo, fundado no dinamismo e criatividade dos africanos escravizados, resultou no surgimento de uma "nova cultura" (p.76). Este enfoque não é fortuito. Como os autores justificam, "se parecemos desenfatizar o passado africano para frisar a natureza móvel da Afro-América, é, em parte, porque a ênfase usual parece ter sido a inversa". Foram muitos os pontos de interação cultural entre as pessoas escravizadas e livres. Segundo Mintz e Price (p.88), a cultura afro-americana - na música, linguagem ou religião – foi produzida de maneria "altamente" sincretizada em termos de suas origens africanas, bem como em termos das contribuições provenientes das fontes européias (ou de outras procedências). Ela possuíria um dinamismo interno, uma criatividade e uma "acentuada capacidade de adaptação a condições sociais mutáveis".

Para finalizar, os autores reconhecem que a opressão esteve onipresente no sistema escravista, mas que tal opressão não se deu de maneira igualitária e tampouco os escravos reagiram da mesma maneira à ela. Daí a necessidade de pesquisas em profundidade acerca da história do nascimento da cultura afro-americana, através da etnografia e do uso de documentos e registros históricos. Os africanos foram trazidos para o Novo Mundo e "de um Novo Mundo se trata, por certo, pois aqueles que se tornaram seus povos o refizeram e, nesse processo, refizeram a si mesmos" (p.113).

O livro, reiteramos, serve como alerta para os historiadores que, atualmente, concebem o africanismo como chave explicativa da cultura escrava no país. No limite, o africanismo nunca existiu. Ele não passa de uma construção mítica, com fins político-ideológicos. Da mesma maneira, o livro é uma advertência para o movimento negro brasileiro que, desde o final da década de 1970, propala um discurso racial essencialista, definindo, por exemplo, a cultura "negra" como herdeira fidedigna da cultura "africana". A cultura dos afro-americanos não poderia ser herdeira fidedigna da cultura africana, uma vez que esta, no singular, não passava de uma abstração. E o que se chama hoje de cultura "negra" jamais se revelou em seu estado puro. Desde a travessia transatlântica, os negros da diáspora forjaram sincretismos culturais. O livro Nascimento da Cultura Afro-Americana chega ao público brasileiro num momento mais do que oportuno, com muitos elementos para enriquecer tanto os paradigmas da pesquisa histórica quanto o debate nacional que se instaura em torno da questão racial.

Revista de História - USP

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