sábado, 5 de junho de 2010

O mercado de trabalho livre no Brasil



Sergio Adorno
Departamento de Sociologia - FFLCH/USP

GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo; Brasiliense, 1986. 221p

Originalmente tese de doutorado defendida na London School of Economics and Political Science, o livro de Gebara enfoca as leis emancipacionistas, promulgadas no período de 1871 a 1888, que culminaram com a extinção da escravatura na sociedade brasileira. Sua tese é original e traz importante contribuição ao debate, recentemente reascendido, a propósito da escravidão negra e do penoso percurso de sua superação. De fato, ao invés de centralizar sua atenção nas leis em si, como se elas dispusessem de dinâmica própria e autonomia em relação a outras questões de ordem econômica e social igualmente candentes no período observado, aliás como de certo modo já o fizeram certas tendências de interpretação historiográfica, o autor procura demonstrar que o escopo dessas leis não era a abolição do trabalho escravo, porém a regulamentação, controle e organização do mercado de trabalho livre em emergência.

Sua tese sustenta-se em apreciável acervo de fontes primárias e em criteriosa, respeitosa e consistente revisão da literatura especializada, na qual se encontram presentes importantes referências bibliográficas estrangeiras, a par de outras já de domínio público entre os estudiosos que se ocuparam desse campo temático. Seu argumento principal consiste em demonstrar que a Lei do Ventre Livre (1871) se inseriu tanto no processo de transição que culmina com a Lei Áurea (1888), quanto constituiu estratégia privilegiada de que se valeram os grandes proprietários agrários para postergar a solução final, enquanto administravam o estabelecimento das relações de trabalho livre. 1871 significou a primeira intervenção do Estado no mercado de trabalho, uma intervenção que expressava a vontade de uma transição pacífica e gradual, que não provocasse grandes rupturas no domínio dos senhores sobre seus escravos e que promovesse confiança política em virtude de sua aceitação generalizada. Nesse processo, em diferentes momentos e com intensidade variável, a resistência escrava jogou papel decisivo no curso do projeto desescravizador. Os problemas que suscitou acabaram, cm meados da década de 80, promovendo a ruptura do consenso que se delineara no início da década anterior, estimulando mudanças substanciais nos mecanismos de controle, dos quais não foi poupada a população livre dos campos e das cidades.

Do ponto de vista expositivo, o livro está organizado em uma introdução, na qual o objeto enfocado é construído, seguida de quatro capítulos. No primeiro, o autor cuida de analisar o processo que conduziu à legislação de 1871, abordando seu contexto histórico-social e examinando criticamente as explicações parcelares, a respeito de sua promulgação, como sejam aquelas que sustentam o primado das pressões britânicas ou a influência decisiva da Guerra do Paraguai na resistência escrava e nas atitudes favoráveis à abolição por parte do exército brasileiro. Confere ainda ênfase às condições que propiciaram a implementação da lei, bem como os resultados alcançados.

O segundo capítulo mantém ligação orgânica com o anterior. Nele, seu autor presta-se a expor e analisar as conexões entre a legislação escravista e as experiências legislativas no terreno do trabalho livre, percorrendo as iniciativas empreendidas em 1830, 1837 e 1879. Essas iniciativas expressam ambivalências fundamentais da sociedade brasileira, uma sociedade que oscila perigosamente entre o contrato e a coerção. A análise indica os objetivos conflitantes das leis de regulamentação do trabalho livre. Por um lado, interesse em atrair imigrantes, mão-de-obra dócil, segura e estável. Por outro lado, preocupação em forçar o cumprimento dos contratos de trabalho, para os que não se resignaram em prever medidas coercitivas como penas de prisão. O capítulo comporta igualmente uma sugestiva análise do significado da Lei Saraiva-Cotegipe (1885), conhecida como Lei dos Sexagenários. Detendo-se no exame comparativo da conjuntura política do início da década de 70 e de meados da década seguinte, Gebara defende o ponto de vista, segundo o qual a última iniciativa deve ser lida tanto como continuidade ao processo de emancipação gradual da força de trabalho cativa, quanto como resultado do acordo rompido entre as próprias elites agrárias, para o que contribuiu a intensificação das rebeliões e protestos escravos.

Esse ponto de vista sugere que, embora o encaminhamento final da supressão da propriedade escrava não tenha traído os objetivos pretendidos com as reformas legislativas, foram a ruptura do consenso e as divergências entre os proprietários agrários das regiões de agricultura tradicional e seus congêneres das prósperas regiões cafeicultoras do novo Oeste paulista responsáveis pela extinção da escravatura. Essa sugestão é reforçada por um argumento de ordem histórica. A medida em que se intensificam as rebeliões escravas, promovem-se mudanças nos controles sociais. O estudo das posturas municipais indica, por um lado, tendência para substituir controles violentos, próprios de uma época de oferta abundante de trabalhadores escravizados, por controles sociais mais sutis, marcados pela vigilância do cotidiano e sobretudo pelo estabelecimento de uma rede de delatores civis. Por outro lado, tendência para a generalização dos controles repressivos da escravidão sobre a população livre pauperizada. Essas mudanças de orientação constituem vivas manifestações das dificuldades dos proprietários de escravos de oporem-se e resistirem às leis antiescravistas.

A análise de Gebara demonstra, portanto, que as rebeliões e protestos jogaram papel decisivo na mudança dos controles, na cisão entre as elites proprietárias, na generalização imprudente da repressão escravista sobre a sociedade, o que possibilitou que a população trabalhadora livre, vítima também dos rigores de uma violência que desconhece limites, se tornasse solidária à abolição.

Não sem razão, o terceiro capítulo cuida de examinar as fugas, as rebeliões e os protestos escravos. O argumento principal reside em demonstrar que os escravos não foram agentes passivos nesse processo; ao contrário, influenciaram o curso dos acontecimentos, intervindo na formação do mercado livre e na configuração das leis emancipacionistas e das posturas municipais. Embora o capítulo concentre sua atenção no estudo das fugas, o autor adverte que as outras formas de protesto - assassinato de feitores, roubos, suicídios - possuem significado político distinto e próprio. Não dispõem do mesmo alcance e não se reduzem a uma mesma e única estratégia. No mesmo sentido, adverte que as fugas não devem ser lidas de modo unilateral. Elas apontam para a complexidade dos mecanismos de controle judiciário, suas contradições e limites. Sob esse enfoque, elas devem ser examinadas em diferentes perspectivas porque a par de suas estreitas vinculações com a fazenda e com tudo aquilo que gravitava às suas voltas, elas guardam íntima solidariedade com a comunidade que acolhe os escravos foragidos, vale dizer, com o mundo urbano, locus da constituição do trabalhador livre. Ao demonstrar que o destino dos escravos foragidos era a cidade, disto resultando sua inserção em um mundo diferente, porque dominado por padrões de sociabilidade distintos da fazenda, porém desejável, porque espaço de liberdade, inserção da qual não estiveram ausentes marcas como a marginalização e o isolamento, Gebara descreve igualmente como esse processo acarretou mudança substantiva nas formas do controle e de repressão. Pouco a pouco, o imperativo de deter as fugas a qualquer custo promove o recrudescimento da repressão que, indiscriminada, se espalha pelo conjunto da população livre. Alvo discricionário de um poder violento que desconhece fronteiras, a população livre acaba solidária aos escravos foragidos, estimulando justamente aquilo que os controles pretendiam evitar, a união entre os dominados. Nesse momento, os próprios foragidos passam a explorar as potencialidades oferecidas pela nova ordem urbana em constituição, vinculando-se ao mercado de trabalho livre como quitandeiros, pescadores, nas docas e nas ferrovias. A estratégia conciliatória, organizada pelos grandes proprietários rurais em 1871, estava esgotada, embora seus objetivos houvessem sido atingidos. Tratava-se agora de formalizar a abolição, realizá-la no interior da ordem legal.

No último capítulo, o autor propõe-se examinar os momentos derradeiros da estratégia legalista e gradualista, que se firmara no início da década de 1870. O capítulo consiste em uma sugestiva análise das mudanças, que se operam nas posturas municipais, indicativas de que novos compromissos entre as elites proprietárias agrárias estavam em curso, os quais rebatem, no piano nacional, na edição de novas leis emancipacionistas uma vez equacionados os problemas relacionados à formação do mercado de força de trabalho livre. Á opção pela via parlamentar como estratégia de superação da propriedade escrava significava, antes de tudo, que o problema servil não mais subsistia. Cuidava-se agora de remover seus remanescentes, solucionar obstáculos regionais, abrandar o quanto possível os efeitos das rebeliões e protestos escravos. As leis de 1885 e de 1888 constituem episódios de menor importância face ao novo problema emergente: a disciplina do trabalho livre nas fazendas. Apesar de episódios de importância relativa, elas indicam, no curso do processo abolicionista, um significado próprio e marcante: se, por um lado, constituem o desenrolar da estratégia firmada em 1871, por outro lado, expressam o modo pelo qual as elites proprietárias lidam com movimentos de protestos e resistência, apoiando-se não somente nos meios repressivos de que dispõem à mão, mas sobretudo em uma estratégia que implica transição lenta, gradual e controlada. Um fim seguro, incapaz de comprometer a ordens social competitiva em sua consolidação.

Não são poucos os méritos do livro de Gebara. Primeiro, unia abordagem inovadora no estudo da história legislativa desta sociedade. Ao invés de ver a lei como um mecanismo exclusivamente coercitivo, negativo, que impõe restrições, que estabelece limites e fronteiras, o autor sustenta não somente seu caráter imperativo e sua eficácia simbólica, mas sobretudo a lei como um espaço positivo, vale dizer, espaço de criação, de disputa, de imposição e de resistência. Nessa perspectiva, as leis abolicionistas são interpretadas tanto como estratégias de controle e de repressão, porém igualmente como estratégias de criação do desejável.

Mas, há ainda outras inovações. Cabe relevar o modo como o autor trata as relações entre macro e micro estruturas sociais. Ele afasta-se seguramente das tendências em voga. Ao mesmo tempo que não concede privilégio às condições objetivamente dadas, às estruturas econômico-sociais como fio condutor da análise, não sustenta, em contrapartida, o primado das questões locais, da micro-textura social, do fazer cotidiano como o "segredo" sob o qual se tece a verdade da história. Sua paleta interpretativa é mais fina. Revela-se na maestria com que trata as relações entre as posturas municipais de controle escravista local e as leis emancipacionistas. A interação entre elas, complexa porque mediada por práticas dotadas de múltiplos significados, atravessadas por interesses que não são unívocos, implica em demonstrar como se articulam o local/regional com o nacional, como o cotidiano configura espaço de sociabilidade e de subjetividade que não se contém em si próprio e, como tal, institui formas que se pretendem generalizadas e normatizadoras. A propósito, há passagens meritórias. Conviria ressaltar as belas análises das páginas 166-167, na qual o autor apresenta um verdadeiro leque dos significados possíveis da imposição de posturas legais, subjetivamente reconhecidos por diferentes agentes, posicionados ou não do mesmo modo no interior da estrutura social. No entanto, a subjetividade, as alternativas possíveis abertas à ordem social não impediram que estratégias determinadas de controle em momentos conjunturais se divisassem como arranjos transitórios que, ao largo do horizonte histórico, encaminharam a superação da propriedade escravista sem antes transvesti-la de um caráter rompante que mal escondia seus fins escusos.

Nessa mesma ordem de interpretação, vale destacar o modo pelo qual o autor aborda as relações entre dominantes e dominados. Certamente, sua análise assume o ponto de vista deste último, mesmo poque outra postura jamais o traduziria às conclusões a que chegou seu estudo. No entanto, afasta-se também daquelas posturas que, em nome do resgate histórico do ponto de vista dos dominados, desqualifica os dominantes como meros atores de uma história, que se constrói como simulacro de farsas. Sua postura é mais sólida. Nunca duvida da força de sentido daqueles que se encontram inseridos em um campo de lutas. Se há lutas, há contentores. O problema é, então, menos o de saber quem ganha e quem perde, quem são os vencedores e os vencidos, porém saber como as lutas, desencadeadas de lado a lado, tecem quase silenciosamente a ordem social, definindo-lhe um perfil móvel, transitório e sempre sujeito a novos embates. A história da legislação abolicionista não pode ser vista sob outro ângulo. Esta postura não impede, no entanto, certos exageros, como um, particularmente anotado, na página 104, no qual, analisando os obstáculos legais, que se antepunham às possibilidades de inserção dos escravos na economia urbana e no comércio, chega a afirmar: "a eventual permissão dos escravos para comercializar esses produtos poderia não só desorganizar a comercialização, como também colocar em risco a própria estrutura da economia brasileira". No entanto, escorregadelas dessa ordem não turvam, por exemplo, o brilho das páginas dedicadas ao exame das formas de resistência e das formas de interação que se estabelecem entre os escravos foragidos e a população livre. Particularmente, importa por em relevo a análise do controle social operado por intermédio da vestimenta, análise que aproxima a história da antropologia, com resultados profundamente instigantes: mostra como a análise nas humanidades não pode, em nome do rigor do método ou do despotismo técnico, prescindir da imaginação e da instituição, fundamentos da criatividade intelectual.

Por fim, há outro mérito que não se pode ignorar. Trata-se do modo respeitoso com que o autor aborda a literatura especializada. Ao invés de desqualificar, ignorar ou silenciar a contribuição da historiografia, mesmo a mais convencional possível, cuida de dialogar com ela. Ao fazer isso, busca investigar seus fundamentos, entendê-la enquanto construção explicativa de sua época, o que não elimina suas ambivalências, contradições e limites.

Como toda obra no terreno das humanidades, que supõe portanto interpretação, a obra de Gebara não está isenta de problemas. O principal deles reside em reduzir a dinâmica social ao mundo do trabalho. Todo seu modelo explicativo repousa em um pressuposto: a construção da sociedade brasileira como sociedade de trabalho. Certamente, pôder-se-á objetar que não poderia ser de outro modo, porque o trabalho se constituiu como o elemento estruturador de todos os significados possíveis de uma ordem social fundada na competição e no mercado. No entanto, caberia indagar se todos os significados possíveis das leis emancipacionistas convergiram para um único e mesmo ponto: a constituição do mercado livre. Teria esse significado atravessado os mais diferentes poros da sociedade, os mais diferentes atores? Do ponto de vista dos escravos, a luta esteve marcada por um significado contíguo: a liberdade. A liberdade não enquanto abstração, enquanto princípio constitutivo de uma ordem contratual, mas a liberdade em sentido concreto e preciso, de liberação frente às condições que reduziam sua humanidade. Mesmo do ponto de vista dos grandes proprietários rurais, há que se suspeitar de outros significados que concorreram para postergar a edição das leis emancipacionistas. O medo de que a extinção da propriedade escrava significasse a extinção da propriedade em geral, possivelmente acossou o imaginário dos homens ilustrados desta sociedade, justamente aqueles que, letrados e burilados nas escolas de Direito, podiam saber o que acontecia às suas voltas, no mundo europeu, no curso do último quartel do século XIX. Hesitar frente aos acontecimentos não apenas significou postergar a superação do escravismo enquanto amadurecia o mercado de trabalho livre, mas também se transformar em espectador desses acontecimentos, verificar do alto do palco como as coisas afinal se encaminhariam. Algumas décadas mais tarde, um de nossos estadistas resumiria esta estratégia das elites dominantes em uma frase inesquecível e impar: deixa como está para ver como fica.

Finalmente, o título do livro parece inapropriado. Induz o leitor a crer que o livro aborda os modos pelos quais se constituíram o trabalhador e o trabalho livre na sociedade brasileira. Embora a tese não se distancie desta temática, o título parece sugerir algo distinto do estudo histórico da abolição da escravatura.

Revista de História - USP

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