quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Mal que se Adivinha: Polícia e Menoridade no Rio de Janeiro (1910-1920)


VIANNA, Adriana de Resende B. 1999. O Mal que se Adivinha: Polícia e Menoridade no Rio de Janeiro (1910-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 198 pp.

Eline Deccache-Maia
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ


A questão do menor no Brasil tem sido objeto de um interesse que ganhou grande número de adeptos nas décadas de 70 e 80. Um debate caloroso e uma vontade de compreender os mecanismos de construção dessa categoria produziram diversos textos científicos que indicavam o universo jurídico como a instância social produtora e reificadora da categoria. Finda a década de 80, algumas questões pareciam já estar esclarecidas e um certo acordo tácito pairava em torno do tema. O livro O Mal que se Adivinha: Polícia e Menorida- de no Rio de Janeiro (1910-1920) surge como uma contribuição recente que acrescenta dados novos a partir de um recorte até então não realizado de forma tão metódica e profunda quanto o levado a termo por Vianna. Este recor-te ­ representado no próprio título do livro ­ se refere ao papel fundamental da ação policial na construção dessa categoria classificatória de parcela da população infanto-juvenil no início do século XX. Se alguns trabalhos já apontavam para o fato de que a situação do menor naquele período era uma questão de polícia, nenhum, contudo, se aprofundou tanto na ação dos agentes policiais para revelar como tal prática acabou construindo significados específicos em torno do alvo dessas ações: o menor. O retorno ao tema e a forma original e competente com que a autora o revisitou valeu-lhe o prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa de 1997, resultando na publicação do livro aqui tratado.

O esforço realizado se dá no sentido de demonstrar como um segmento do universo de crianças e adolescentes foi se constituindo como personagem social ­ o menor ­, através de uma dimensão processual, segundo a orientação eliasiana. Ao tentar entender a questão da menoridade dentro do movimento que a gesta, foi preciso partir de um período anterior ao da consolidação da visão do problema como uma questão social a ser tratada no campo jurídico. Se as discussões jurídicas travadas no início do século, e de modo mais contundente a partir da década de 20, se tornam uma referência, será a ação direta da polícia que dará o tom e, por conseguinte, pulsão ao conteúdo norteador. Não se trata, no caso, de construir o perfil desse personagem social, mas de entender como ele foi fabricado. Segundo a própria autora, o interesse da investigação é compreender os mecanismos simbólicos que tornaram possível o surgimento do menor. Como o agente policial era aquele que manipulava diretamente tal classificação, na medida em que era o seu olhar detector que definia quem se encontrava na condição de menoridade, ele acabou desempenhando um papel fundamental na construção e consolidação do significado em torno dessa representação. Nesse sentido, é o movimento que se está privilegiando, e é a partir do mesmo que será possível perceber as nuanças existentes na definição da menoridade que, à primeira vista, aparece como um bloco monolítico.

Uma vez tendo privilegiado o movimento/processo, o material analisado busca dar conta da captação de tal movimento. Nesse sentido, a escolha dos registros policiais é justificada por Vianna como o material que poderia melhor revelar o cotidiano da relação estabelecida entre a polícia e o menor e a representação deste último aí tecida. Os registros analisados ­ mais de 1.800 circunscritos ao período de 1910 a 1920 ­ não se apresentam de forma organizada e articulada, como, por exemplo, os textos jurídicos, mas é exatamente a não elaboração dos mesmos que possibilita a obtenção de elementos que subsidiam o resgate de uma prática cuja dimensão temporal não permite mais observá-la diretamente. A natureza do material eleito e a forma com que foi tratado nos remete a uma discussão em torno da conjugação entre história e antropologia. A relação estabelecida pela autora com os dados revela-nos a possibilidade de pensar o trabalho etnográfico em arquivos, uma vez que se está dialogando com documentos como se estes fossem "discursos nativos", cujas narrativas devessem ser articuladas e reordenadas pelo próprio investigador sem, no entanto, abafar aquilo que é "dito". Este é, inclusive, um aspecto a ser ressaltado no trabalho.

Os registros policiais adquirem maior substância quando é resgatado o papel atribuído a esses agentes na organização e controle do espaço urbano no período analisado. A rua e a população que dela faz uso passam a ser foco das ações policiais. É a infância que se encontra nas ruas, solta e desassistida, que é classificada como menor ­ e, por conseguinte, retirada da sua condição mais abrangente ­ e que deve ser controlada e "reformada" nos moldes de nação que se delineavam nos primeiros anos da República. A lógica de ordenação da cidade era orientada por saberes científicos, como o dos médicos, engenheiros etc. Vianna mostra como de tal perspectiva também eram objeto dessas reformas as instituições sociais, dentre elas a própria polícia, no sentido de promover uma uniformização nas práticas adotadas. A Escola de Polícia fundada em 1912 é um exemplo claro da busca de padronização e le- gitimidade das intervenções policiais uma vez que as mesmas eram revestidas de uma certa aura científica.

Dotada de um saber específico e exercendo papel de destaque no controle e promoção da ordem social, delega-se à polícia um poder significativo. Dentro dessa dinâmica, é demonstrado como o dia-a-dia do agente policial é pleno de procedimentos que interferem na vida dos indivíduos postos sob suspeição. A intervenção policial não se restringia apenas à intercepção dos menores, mas a uma série de ações encadeadas ­ detecção, detenção, classificação tipológica e encaminhamento. Esta última etapa era feita enviando os menores às instituições existentes. Abre-se, assim, mais um aspecto a ser escrutinado pela autora, uma vez que é percebida a estreita ligação entre a polícia e as "instituições-destino", não só no que se refere à operacionalização, mas, fundamentalmente, porque a partir do conhecimento da natureza e mecanismo interno dessas instituições se obtém mais elementos para a compreensão da lógica de classificação dos menores. Sua análise concentra-se em quatro instituições: Colônia Correcional de Dois Rios, Escola Premonitória Quinze de Novembro, Escola de Menores Abandonados e os patronatos agrícolas. Todas elas, à exceção da Colônia Correcional, buscavam a regeneração dos menores através de atividades laborais. Ressalta-se aí o aspecto valorativo do trabalho como a via mais apropriada para a educação e a inculcação de valores morais importantes que resultassem na metamorfose de menores em um "tipo específico de trabalhador nacional".

Uma vez apresentados os elementos que compõem os dois pólos da dinâmica que envolve a questão do menor no período analisado, a saber, a polícia e as "instituições-destino", era preciso mapear quais critérios definiam os diferentes destinos possíveis para os menores. É nesse momento que são explicitados os matizes em torno da categoria. Se no ato do recolhimento o que opera é uma classificação mais abrangente, o processo de triagem que se seguia era feito a partir de "um esforço simbólico capaz de ordenar diferenças", como a-firma Vianna, gerando assim uma tipologia. Embora nos registros policiais analisados apareçam informações concernentes à identidade individual, o que se observa é um movimento de conversão da mesma em uma identidade social tipificada. Serão os adjetivos recebidos ­ abandonado, vadio, pivete, ladrão, dentre outros ­ que maior peso terão na definição dos destinos desses menores. Tais adjetivações eram realizadas a partir de uma crença na eficácia do saber policial como produtor de classificação e, por outro lado, da posição que o menor assumia como sujeito classificado, o que denotava de forma contundente a relação de poder assimétrica estabelecida. O espaço de defesa do menor era quase inexistente, sendo este um personagem social completamente submetido à estrutura de poder delineada. Nesse contexto, os pais desses menores também eram submetidos à autoridade policial caso fosse considerada a ausência de controle e "pulso forte" destes sobre seus filhos, o que deixa entrever que a intervenção da polícia também se dava na esfera privada.

Todo o poder da polícia que vai sendo demonstrado no decorrer do livro é entendido dentro de uma crença mais abrangente de que existiam tendências degenerativas em indivíduos oriundos de determinados meios sociais. As idéias vigentes de hereditariedade e de contaminação informam e dirigem procedimentos profiláticos. Era preciso evitar o mal que se adivinha. O que estava em jogo não era o ato praticado pelo sujeito "contaminado", mas aquilo que ele supostamente traria como potencial detectado a partir de marcas distintivas portadas, como, por exemplo, a condição racial do sujeito observado.

Em todo o período analisado a autora constatou que a polícia tinha autonomia em suas ações e que pouca intervenção era feita pelo Judiciário. Com o passar dos anos, contudo, a questão da menoridade vai ganhando uma nova dimensão. O Código de Menores de 1927 é um marco nesse sentido. Nessa altura, Vianna alcança o ponto final de sua análise e retoma as questões iniciais levantadas. Ao chegar até o Código de Menores e, portanto, à esfera jurídica, a autora reafirma, após comprovar no decorrer dos cinco capítulos que compõem o livro, que a representação da menoridade expressa no Código é influenciada pela lógica forjada na interação cotidiana de menores (sujeitos classificáveis) e policiais (sujeitos classificadores). Tal percepção suscita uma polêmica com a produção teórica existente até então que afirma que a categoria menor advinha do mundo jurídico, reificada pelo Código de Menores. Por se tratar de um aspecto importante na análise, creio que vale a pena citar um trecho do livro: "procuro demonstrar como o Código de Menores, que poderia ser o ponto de partida emblemático de uma investigação sobre as formas de normatização e as sanções envolvendo a menoridade, está impregnado de uma lógica absolutamente policial, formalizando e cristalizando práticas que já tinham lugar assegurado no cotidiano das delegacias." (:169). O forte empenho demonstrado por Vianna na reconstrução do cotidiano da polícia na época estudada acaba por desfocar o objeto de análise da literatura com a qual ela dialoga e polemiza. Ao frisar que a questão do menor é anterior à sua consolidação no campo jurídico, Vianna deixa de seguir uma pista importante que ela mesma levanta em seu trabalho: que à polícia cabia a parcela de menores que ocupava o domínio público ou que não estivesse dentro dos padrões de conduta esperados. Mas, e os menores que estavam nas fábricas e demais esferas de trabalho? Eram estes menores circunscritos no mundo do trabalho o tema de debates entre empresários e juristas desde os primeiros anos do século XX. Este era o segmento que a Justiça cuidava para que não se convertesse em "casos de polícia". São exatamente esses menores trabalhadores o objeto de análise de alguns dos autores aos quais Vianna se contrapõe. Nesse sentido, muito mais do que uma oposição, creio que o livro O Mal que se Adivinha é uma análise que fornece novos dados que complementam a inteligibilidade em torno da questão da menoridade

Por fim, cabe ressaltar o modo como o material foi ordenado e entrelaçado com os trabalhos teóricos pertinentes aos diversos ângulos com que foi olhada a questão. O cuidado em respaldar suas afirmações tornou o texto produzido rico em detalhes, riqueza esta impossível de ser reproduzida no espaço de uma resenha.

Revista Mana

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