sexta-feira, 25 de junho de 2010

O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo


GIUMBELLI, Emerson. 1997. O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 326 pp.

Patricia Birman
Profª de Antropologia, UERJ


A pergunta mais pertinente a respeito desse trabalho minucioso, feito com raro empenho em explorar antropologicamente fontes historiográficas, talvez seja a mesma que a sociedade dirige a seus religiosos ditos e reconhecidos como "espíritas": vale mesmo o que está escrito? Ou, em termos equivalentes, será que o sentido dos textos psicografados que, frase após frase, contam histórias de personagens famosos, atribuem um sentido moral a certos comportamentos, explicam certas curas e os procedimentos a seguir deve ser buscado nos princípios da mediunidade, ou seja, na fonte que permite entender e acreditar na psicografia?

Para os espíritas, com efeito, a escrita dos médiuns é reveladora porque se parte da pressuposição de que o seu sentido advém de fonte sobrenatural. Assim, o médium não faz nada mais do que transcrever o que o espírito lhe dita e esse conhecimento transmitido é passível de ser incorporado mediante um trabalho de exegese feito por seus seguidores que mistura, em doses indiscerníveis, a interpretação que realizam com tudo aquilo que acreditam lhes chegar diretamente, sem contaminações, desse emissor do Além. Por mais que, portanto, naturalizem o texto psicografado, os espíritas reconhecem a existência de premissas que o validam, bem como de uma interpretação que lhe dá sentido.

Quando aproximo os documentos psicografados dos processos analisados por Emerson Giumbelli quero, para além de uma brincadeira, colocar em discussão o lugar que nos últimos se concede à interpretação. Certamente, os critérios interpretativos que conduzem a pesquisa etnográfica a hipóteses interessantes não são os mesmos daqueles aplicados pelo espiritismo diante de textos "psicografados", mas tanto espíritas quanto antropólogos reconhecem, por vezes com evidente dificuldade, que os dados não falam por si mesmos e que, portanto, é preciso dotá-los de sentido. Dessa maneira, reconhece-se a polissemia que os habita, enfronha-se em uma rede de discursos contraditórios e ambíguos para, finalmente, construir uma mera versão. A incerteza, pouco tranqüilizadora, a respeito dos resultados alcançados não deixa nem espíritas nem antropólogos descansar em paz. O mundo dos mortos e as comunicações que resvalam de antigos textos lhes acompanhará para sempre.

Deixemos por ora essa aproximação para expor em linhas gerais esse importante trabalho sobre o espiritismo no Brasil. Com um recorte preciso em uma enorme massa de material, Emerson manuseia fontes diversas para discutir a constituição do espiritismo no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro. Ele parte da suposição de que o espiritismo é uma produção histórica e contextual, resultado de um processo que não continha, desde os seus primórdios, o traçado de seu caminho já delineado. Em outras palavras, a noção, hoje pouco relativizada, de que espiritismo é religião seria efeito, segundo o autor, de uma conjunção peculiar, de um encontro de diferentes estratégias discursivas desenvolvidas por agentes sociais diversos. Nesse processo, atuaram de maneiras contextualmente também diferenciadas as instituições médicas, jurídicas, os meios de comunicação, os agentes religiosos espíritas, católicos e outros, além das forças policiais. Com distintas estratégias discursivas esses grupos, ao se enfrentarem e por vezes também se alinharem, instituíram categorias, forjaram polaridades (como aquela que opôs "místicos" e "científicos" entre os espíritas de diferentes facções), estabeleceram jurisprudências, práticas diversas que hoje são difíceis de apreender (e, portanto, desnaturalizar) como efeito de um processo. A formação do espiritismo, tal como o conhecemos, no presente é efeito desse processo desenvolvido em um certo campo de forças, do entrelaçamento que se produziu entre discursos e poderes que foram capazes de fazer valer não somente algumas versões, mas também instituir certas práticas.

Giumbelli, nesse sentido, analisa a dinâmica e os atores sociais presentes no final do século passado e início deste que redimensionaram o lugar dos discursos médicos, transformaram as fronteiras identitárias dos grupos religiosos e redefiniram, sucessivamente, os papéis atribuídos ao Poder Judiciário e à polícia para, a partir da análise desse contexto e desses embates, compreender o espiritismo como resultado disso tudo. Contexto é, pois, uma palavra-chave. Produto de um campo de lutas em que se definiu competências médicas e jurídicas, emerge como lugar possível para o espiritismo aquele concedido à religião. Criam-se, portanto, novos lugares e novos papéis. O autor explica, assim, como, a partir de um certo momento, cristaliza-se uma crença por meio da qual o espiritismo construiu o seu lugar. Este teria se subordinado ao monopólio de cura conquistado pela medicina e se aliado ao poder policial para garantir, no campo "religioso", seu papel privilegiado em relação ao baixo espiritismo, à macumba, ao candomblé, ou seja, aos cultos de origem africana em geral.

Segundo a hipótese desenvolvida por esse trabalho, a construção histórica desse campo e o formato que veio a adquirir, em função do jogo de forças e estratégias discursivas que o traspassaram, concederam ao espiritismo, no Rio de Janeiro, comparativamente, um lugar de referência, um ponto de ancoragem em torno do qual todos os conflitos religiosos passaram a se expressar, e o metro a partir do qual passaram a se hierarquizar. O espiritismo no Rio de Janeiro teria tido, desse modo, papel equivalente àquele desempenhado pela africanidade nagô na Bahia, construída por uma aliança entre intelectuais e certos grupos de culto que passaram a ter o poder de legitimar, segundo seus critérios e medidas, os outros cultos de possessão. Mais do que um operador de distinções, o espiritismo teria sido capaz, portanto, de instituir práticas e critérios por intermédio dos quais os grupos religiosos associados à possessão passaram a se regular, obedecendo, assim, às injunções históricas que deram ao espiritismo kardecista um poder auxiliar de polícia e fizeram da Federação Espírita Brasileira (FEB) um regulador doutrinário tanto para "dentro" dos grupos espíritas quanto para a sociedade.

As conclusões a respeito do espiritismo no Rio de Janeiro são alcançadas mediante uma análise que se desdobra em torno de diferentes momentos históricos e debruça-se sobre práticas institucionais diversas. O papel e o perfil da FEB resultam tanto de um esquadrinhamento de suas práticas quanto dos efeitos dos confrontos aos quais foi sendo submetida no interior desse campo. O privilégio concedido à formação da FEB teve como resultado colocar em relevo a sua formação e, ao lado disso, também permitir entender o papel de outras instituições no Rio de Janeiro em alguns momentos decisivos, como as instituições sanitárias e judiciárias no processo de urbanização da cidade, os procedimentos judiciários associados à formação da República, os sucessivos lugares e diferentes definições do charlatanismo, os códigos penais e as jurisprudências estabelecidas etc.

Esse plano analítico pôde ser alcançado graças ao trabalho de investigação que envolveu diferentes fontes históricas. Cabe ressaltar o mérito, ainda raro na antropologia produzida no Brasil, do esforço de enfrentar essa modalidade de pesquisa, distante da perspectiva tradicional da disciplina com o seu privilégio atribuído ao trabalho de campo e à observação participante. A pesquisa fundamentou-se, essencialmente, no estudo de quatro processos-crimes instaurados com base nos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890. A partir desses processos, o autor busca examinar como se estruturou a repressão ao exercício ilegal da medicina, como se fizeram presentes as acusações relativas ao espiritismo e à Federação Espírita Brasileira. Além disso, foi beneficiário das fontes pesquisadas no Arquivo Nacional, relativas tanto a esses processos quanto a outros, por Yvonne Maggie em Medo de Feitiço, tese de doutorado também do Museu Nacional, posteriormente premiada e publicada pelo Arquivo Nacional em 1992 (como ocorreria mais tarde com O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo).

Voltemos agora à questão mencionada de início sobre o lugar da interpretação. Como disse, tanto os textos psicografados como os processos não falam por si. Essa aparente obviedade, por vezes, parece ser diluída na análise que o autor faz dos processos penais. Talvez, por conta disso, ele não cumpra o que promete, em função de um discreto nominalismo que atravessa a elaboração do seu argumento. Com efeito, ao construir sua hipótese a respeito da aceitação do lugar de religião que o espiritismo da FEB promoveu, Giumbelli se apóia no que está dito nos processos sem, no entanto, articular inteiramente esse dito com o contexto discursivo presente nos processos e também fora destes. Texto e contexto operam separados em momentos importantes de sua análise. Com efeito, este último parece funcionar mais como um quadro de fundo do que como uma articulação analítica que permitiria justificar a interpretação dos discursos referidos. Destaquemos um exemplo, entre outros que poderiam ser citados. Na análise que empreende dos processos, Emerson Giumbelli não os toma como um texto composto de múltiplas intervenções e confrontos que se apresentam - como depoimentos, provas documentais, testemunhos, relatos, descrições etc. Os processos são apresentados, fundamentalmente, através do discurso elaborado pelo advogado de defesa da FEB. Como pano de fundo temos uma análise do campo médico da época e suas questões, como, por exemplo, o lugar atribuído à hipnose, ao magnetismo, à sugestão. Sem dúvida, aquilo que designo como pano de fundo se refere ao contexto, mas revela pouco das articulações discursivas que foram operadas por esses interlocutores no próprio processo e, muito menos, os deslizamentos de sentido que foram sendo operados pelos diferentes interlocutores no curso desse confronto. Assim, o contexto, aquele que nos daria as estratégias discursivas empregadas pelos agentes sociais que se fazem presentes no processo e fora dele, a partir dos lugares e interesses diferenciados, está ausente. As relações de sentido, em lugar de emergirem de uma análise dessas relações contextuais e, portanto, das redes de sentido que se tramam, são deduzidas das práticas espíritas e das orientações adotadas pela FEB, como resultados alcançados posteriormente a esses processos, o que pressupõe uma relação direta entre a funcionalidade de certos comportamentos e o discurso elaborado pela defesa espírita. E o sentido do discurso espírita parece, assim, falar por si mesmo, dispensando um trabalho interpretativo que supõe a interlocução com os outros discursos e agentes sociais que em vários níveis se fizeram presentes.

Em decorrência dessas pressupostas articulações, o autor sustenta a criação de um modelo institucional que explicaria as atividades espíritas e o lugar (funcionalmente adequado) que a FEB viria a ocupar no Rio de Janeiro. Pergunto-me se essa sua hipótese, rica em conseqüências, não deveria se apoiar mais na análise das articulações discursivas que se propõe a fazer do que na funcionalidade que se torna um dos elementos mais importantes de sua comprovação.

O autor tem o mérito de não se furtar à discussão com os trabalhos que antecederam o seu. Por isso, como reconhecimento do seu esforço de esclarecer seus pontos de discordância, merece que levemos a sério seu livro, buscando também contribuir para o debate que inaugurou. É importante, por fim, frisar que somente os bons trabalhos como o seu são críticos e suportam críticas em razão do valor das questões que levantam e buscam resolver.

Revista Mana

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