quarta-feira, 30 de junho de 2010

Nurturing Doubt: From Mennonite Missionary to Anthropologist in the Argentine Chaco


MILLER, Elmer S. 1995. Nurturing Doubt: From Mennonite Missionary to Anthropologist in the Argentine Chaco. Chicago: University of Illinois Press. 225 pp.

Rosana Guber
Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones (Conicet) e do Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES)


Pretendo examinar o alcance da reflexividade na construção da pessoa do investigador-autor, analisando a autobiografia de um antropólogo norte-americano que, entre 1959 e 1988, realizou seus trabalhos de campo como missionário menonita e etnólogo junto ao povo Toba (Qom), nas províncias de Chaco e Formosa (Argentina). Como antropóloga argentina, esperava que essa história fosse uma via de conhecimento crítico aos mundos institucionais, culturais e políticos da Argentina, Chaco e EUA. Esta resenha trata do que encontrei no livro.

Nurturing Doubt segue a ordem dramática de uma ouverture, três atos divididos em cenas e um epílogo. A ouverture apresenta cinco episódios que ilustram a recíproca perplexidade entre os nativos e o autor-missionário-investigador. O primeiro ato, "Discurso Étnico, Sementes de Dúvida", apresenta a vida de Miller desde a sua infância, no Estado da Pensilvânia, até o seu treinamento para ser missionário no Chaco argentino. O segundo ato, "Primeira Experiência de Campo, Maturação da Dúvida", dá conta de sua presença e de suas reflexões na Argentina chaquenha, enquanto missionário menonita. No terceiro ato, "Discursos Profissionais e o Processo da Dúvida", o autor reconstitui o seu trabalho antropológico de campo e as etapas de sua teorização do mundo toba. No epílogo, intitulado Denouement, Miller compara os alcances e limitações da comunicação intercultural nos três segmentos de sua trajetória.

O eixo do livro é a certeza da qual os povos necessitam para viver, os missionários para evangelizar e os antropólogos para desconstruir. O título, Nutrir a Dúvida, assinala não apenas um aspecto da tarefa acadêmica, mas uma dimensão crucial do estar-no-mundo de Miller, um processo que abarca toda a sua trajetória pessoal, uma razão de vida desde que abandonou sua comunidade de origem, para a qual duvidar é questionar a verdade de Deus (:viii). No entanto, a dúvida não é apenas teológica. Nessa trajetória, expressa como uma épica de combate à certeza, duvidar é também um desafio ao dogmatismo teórico. Por isso, o autor apresenta um percurso simétrico, em que a dúvida original se sistematiza e recria, recaindo sobre a disciplina acadêmica que mais profundamente interrogou a verdade universal: a antropologia. O etnógrafo termina em uma solidão similar à experimentada nos seus questionamentos teológicos de juventude (:197-ss).

Se duvidar era anátema para os menonitas, o segundo sentido, que estrutura a autobiografia para Miller, está mais próximo à sua origem etnorreligiosa: "ser peregrino", não pertencer ao aqui-e-agora, estar de passagem para um mundo verdadeiro e transcendente. Segregação e transitoriedade definem os menonitas, assim como os antropólogos, que não costumam pertencer aos mundos que estudam. Entre a Universidade de Temple, na Filadélfia, e suas prolongadas estadias no Chaco, Miller transita por mundos familiares e exóticos, povoados por Toba, menonitas e antropólogos, mas não se converte em nenhum deles.

A simetria entre o antropólogo e o missionário, expressa na quase reversibilidade dos três atos, é o acerto e a armadilha de Nurturing Doubt. Seu potencial reside em permitir questionar a racionalidade científica ocidental como única fonte de explicação do cultural, neste caso, da obstinação etnorreligiosa toba. Como outras coletividades, os menonitas têm sua própria racionalidade científica, suas universidades, publicações, professores, corpos teóricos e experiências de campo. Quanto de missionário tem um antropólogo, e quanto de antropólogo tem um missionário, é a grande questão dessa autobiografia. No entanto, a postura adotada pelo autor para analisar essa relação não é submetida à crítica reflexiva.

Miller provê o contexto menonita no qual floresceu sua dúvida e se expandiu sua peregrinação, e explica o que significou para este ex-missionário menonita "converter-se à antropologia", mas não abandona completamente seu duplo pertencimento. Da mesma forma, não discute explicitamente a relação conflituosa entre quem duvida sempre — propriedade do sujeito racional — e quem não duvida em seu peregrinar — propriedade do sujeito dogmático-religioso. Em vez disso, mantém a tensão e conclui que a dúvida obriga a peregrinar por povos e teorias, e que essa peregrinação consolida a dúvida porque invalida todo pertencimento: "Ao revisar os processos de desenvolvimento implicados nesses escritos, o que me chama a atenção como talvez mais significativo foi meu esforço consistente em evitar a adesão a um determinado discurso por extensos períodos de tempo" (:196).

Compelido a duvidar e peregrinar, Miller produz-se enquanto uma pessoa individual, despolitizada e masculina, perdendo a oportunidade de usar sua reflexividade para examinar suas certezas. Isto fica evidente em relação à academia antropológica argentina, ao contexto político que a permeou e às condições de produção masculina de seu trabalho.

Do contexto acadêmico argentino, Miller cita os nomes daqueles antropólogos com quem conversou — etnólogos da Universidade de Buenos Aires, antropólogos sociais reunidos no Claso etc. — mas não os incorpora como interlocutores e inspiradores de seu percurso intelectual. A única ocasião possível se vê frustrada sob a acusação de mau uso (plágio?) de sua tese de doutoramento e, no início dos anos 70, na sua decepção por ter sido tachado de "antropólogo yankee". A réplica de Miller é sempre individual e defensiva. Diante da necessidade de se afirmar como indivíduo-investigador, não chega a mostrar que na academia argentina de então "a dúvida" equivalia à traição, os grupos de pesquisa a camarilhas que marginalizavam os dissidentes, e as teorias operavam menos como instrumentos de conhecimento e mais como profissão de fé política.

Concomitantemente, a anulação da dúvida teórica foi parte da dramática intrusão da política nacional no meio acadêmico. Miller, no entanto, não menciona o fato. É difícil aceitar seu silêncio sobre os estragos da violência política no âmbito universitário, assim como sobre a politização das ciências sociais, já que o autor se encontrava na Argentina em 1966, quando a "Revolução Argentina" interveio militarmente na Universidade. Da mesma forma, deixou de viajar a este país quando, em 1975-1976, se intensificava a repressão aos simpatizantes e ativistas chaquenhos das Ligas Agrárias, retornando somente com a democracia, em 1983. O que é passível de objeção aqui não é seu registro incompleto dos fatos do passado, mas o sentido despolitizado de uma realidade que a maioria dos argentinos lia a partir de uma chave política. Mais ainda, a forma pela qual os Toba expressaram a opressão militar dos anos 70, se nesta ou noutra chave, permanece obscura.

Este silêncio revela o lugar do nativo na imagem especular do autor. "A constante através dos meus anos de adulto como missionário e antropólogo tem sido a imagem de um si mesmo estreitamente identificado com as experiências de campo entre os Toba" (:199). Para Miller, o nativo é o Outro constitutivo da pessoa do antropólogo. Mas, em se tratando dos Toba, apresentados por ele como os que mais reagiram à intrusão branca, essa caracterização reforça a identificação do autor com um Outro alheio aos avatares do mundo terrenal-ocidental (imagem matizada até o fim do livro com a crescente presença do estado provincial na vida nativa). Assim, suas extensas seções ilustradas com notas de campo confirmam a afinidade entre o peregrinar toba e o do Miller-missionário e antropólogo, assim como a oposição entre o indivíduo Miller e o coletivo indígena. "Os Toba", ainda que com seus "indivíduos" xamãs, caciques etc., são o principal termo de contraste e confirmação da pessoa individual de Miller.

Esse individualismo se ratifica em um outro aspecto. Sem superar a ainda existente divisão sexual do trabalho (de campo) entre ele (por exemplo, predicando, curando, caçando) e sua esposa Lois (cozinhando, conversando com mulheres toba, acompanhando), esta não alcança o status de interlocutora na aventura intelectual do marido. Apesar de ter recebido seu próprio nome toba (:61), Lois é um pano de fundo que preserva em silêncio o mundo familiar privado menonita e norte-americano em meio a Tobas e chaquenhos. Nem a paternidade de Miller, que tem duas filhas mulheres, parece demandar-lhe uma reelaboração a respeito.

O peregrino menonita dos EUA e do Chaco renasce no peregrino-antropólogo que viaja sem pertencimento... nem étnico, nem teórico. É certo que a ficção do pensador como ave solitária, ainda que não por isso desinteressado das necessidades deste mundo, faz com que o peregrino, o menonita e o etnógrafo apareçam como três condições de uma mesma postura: o individualismo masculino sem sujeição ao império do Estado e à política. Mas Nurturing Doubt oferece material para reexaminar o quanto dessa lógica individualista já estava na prédica menonita, e quanto o próprio Miller retomou disto para dar sentido à sua experiência de ser antropólogo na Argentina. Talvez, isso se deva ao fato de esta autobiografia intelectual e de campo de nova geração ser uma peça aberta a outras interpretações; ou talvez, à dedicação e franqueza com que Miller resenhou sua apaixonante passagem por este mundo; e talvez, ainda, ao fato de ter tentado traduzir sua experiência de pertencimento a uma minoria religiosa no Norte, para a experiência de pertencer a uma minoria étnica no Sul.

Revista Mana

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